A vida do morador em situação de rua é marcada por estereótipos, violência e exclusão social
A vida do morador em situação de rua é marcada por estereótipos, violência e exclusão social. Crédito: Romildo Neves

"É triste a pessoa nem te olhar”, diz morador em situação de rua do ES

Somente na Grande Vitória, 2.053 pessoas em situação de rua são atendidas por programas sociais das prefeituras. Especialistas alertam que essa população sofre preconceito e indiferença, sendo rotulada como inferior

Tempo de leitura: 8min
Publicado em 23/03/2022 às 17h21

O termo invisibilidade social se refere aos seres socialmente invisíveis, ou seja, pessoas afetadas pelo preconceito ou pela indiferença dos demais, rotuladas como inferiores. Essa é uma realidade presente nos espaços urbanos de diversas cidades do Brasil, incluindo as da Grande Vitória, no Espírito Santo. Segundo dados informados pelas prefeituras neste ano, pelo menos 2.053 pessoas vivem nas ruas — considerando as que são atendidas por programas sociais (número pode ser maior). Especialistas alertam para um fato triste, dizendo que grande parte da população, ao se deparar com um morador em situação de rua, o vê como mais um objeto na paisagem urbana e, desse modo, ele é facilmente ignorado.

Um morador em situação de rua, que pediu para ter sua identidade preservada, diz saber bem como é ser invisível. Ele, que vive no Centro de Vitória, disse que as pessoas parecem andar sempre apressadas. Segundo o homem, quando ele se aproxima de alguém, seja para pedir comida ou somente para dar um “bom dia” ou “boa tarde”, não obtém resposta.

X.

Morador em situação de rua do Centro de Vitória

"É triste a pessoa nem te olhar. Você dizer para a pessoa que você sente fome, e ela sequer olhar"

Em conversa com a reportagem de A Gazeta, o sociólogo Anderson Cardozo analisa que a invisibilidade social está associada ao desrespeito à cidadania e à consequente desumanização dos indivíduos. “É não ter garantida as necessidades básicas e uma vida minimamente digna”, afirma. Para ele, as pessoas que vivem nas ruas estão na condição de seres invisíveis socialmente e a paisagem das grandes cidades evidencia a normalização da invisibilidade.

Procuradas, as prefeituras informaram a quantidade de pessoas em situação de rua em cada município que são atendidas por programas sociais. Em Vitória, são 350 pessoas; Cariacica (237); Vila Velha (282); Serra (931); Guarapari (190); e Viana (63, que estavam de passagem pelo município).  Os dados consideram as pessoas atendidas pelos serviços municipais, portanto, a quantidade de pessoas nessa situação pode ser maior. 

Ao mesmo tempo que muitos indivíduos naturalizam a invisibilidade social e ignoram a presença das pessoas em situação de rua nos centros urbanos, outros as enxergam como um incômodo. Segundo o professor e membro da Comissão de Promoção da Dignidade Humana da Arquidiocese de Vitória e do Povo de Rua da Paróquia de Santo Antônio, Carlos Fabian de Carvalho, a invisibilidade é intencional e parcial, pois o sujeito é invisível quando diz respeito aos direitos humanos, mas é visível em relação à negação e ao processo de exclusão. Desta forma, ganha visibilidade quando incomoda.

Carlos Fabian de Carvalho

Professor e membro da Comissão de Promoção da Dignidade Humana da Arquidiocese de Vitória e do Povo de Rua da Paróquia de Santo Antônio

"Você diz que o morador em situação de rua é invisível até que ele esteja na sua comunidade, na sua rua ou na frente da sua casa"

O sociólogo Anderson Cardozo afirma haver uma estreita relação entre as pessoas em situação de rua e a questão racial, já que, segundo ele, grande parte é de indivíduos negros. Um levantamento realizado nos anos de 2021 e 2022 pelas secretarias de Assistência Social de Cariacica (Semas); de Trabalho, Assistência e Cidadania de Guarapari; e de Assistência Social da Serra e de Vitória comprovou o que afirma o especialista, apontando que grande parte dos entrevistados em situação de rua eram negros e pardos.

Em Cariacica, 23,6% pessoas consideram-se negras e 53,5%, pardas. Em Guarapari, 67% são negras. Já na Serra são 31% negras e 43% pardas. E, por fim, Vitória apresenta uma porcentagem de 54% pardas e 31% negras. Logo, o sociólogo considera que essas pessoas “sofrem mais fortemente as violências sociais, com a falta de oportunidades e desprestígios pela sua cultura”.

Pessoas em situação de rua ainda lutam contra a invisibilidade social no ES
Grande parte da população em situação de rua é composta por pessoas negras. Crédito: Romildo Neves

ESTEREÓTIPOS

O ex-morador de rua Elias Belmiro lembra da vida triste que teve durante sete anos passando fome, dormindo nas noites frias e sentindo medo embaixo de viadutos e pontes. “É um caminho árduo onde o que realmente se vive, é a aleatoriedade, um vazio, uma crise existencial”, expressa.

Belmiro revela ter observado a ingratidão e a perversidade advinda da sociedade que vê uma pessoa em situação de rua como um "bicho". Assim, faz menção ao poema intitulado “O Bicho”, de Manuel Bandeira, que leu na juventude e cuja reflexão se encaixa com a vida que teve. O poema diz: "O bicho não era um cão, não era um gato, não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem".

Para o sociólogo Antonio Alves, muitas pessoas têm um conceito preestabelecido extremamente negativo e preconceituoso em relação às pessoas em situação de rua. “Pensam que são violentas, que vão passar doenças, que podem roubar”, comenta. Esse é um preconceito que vai passando de geração em geração, mas pode mudar com o decorrer do tempo.

Antonio Alves

Sociólogo

"Antigamente, esses indivíduos eram chamados de ‘mendigos’, depois de ‘morador de rua’, e, hoje, o mais adequado é ‘pessoa em situação de rua’ "

Essa afirmação sobre o preconceito pode ser comprovada com a opinião dada por três moradores de Vitória, que não serão identificados. Eles acreditam que parte da população em situação de rua é bandida, drogada ou vagabunda. Por isso, não doam dinheiro porque imaginam que vão gastar com bebidas alcoólicas ou drogas.

Já outras quatro pessoas, ao serem questionadas se trocam de calçada ao verem uma pessoa em situação de rua no chão, responderam que "depende do momento" e "avaliam o risco". “Troco de calçada caso eu sinta que possa ser arriscado, no sentido de ser roubado”. “Mudo de calçada se vejo que estão ‘transtornados’ ou apresentando risco”. “Só se outras pessoas estiverem passando”. “Sigo normalmente, mas não tão próximo”, confessam.

Pessoas em situação de rua ainda lutam contra a invisibilidade social no ES
Pessoas em situação de rua ainda lutam contra a invisibilidade social no Espírito Santo. Crédito: Romildo Neves

MOTIVOS PARA VIVER EM SITUAÇÃO DE RUA

A pesquisa da Secretaria de Assistência Social da Serra, realizada em 2021 com 769 pessoas adultas em situação de rua, mostra que, entre os principais fatores alegados para estarem nessa condição, estão: problemas familiares (201), uso de drogas (180), perda de emprego (117), saíram em busca de oportunidade de trabalho (57), transtorno mental (41), perda de moradia (29), sofrimentos emocionais (28) e situação de ameaça (21).

O ex-morador em situação de rua Elias Belmiro admite não conseguir obter respostas exatas sobre o porquê de ter ido morar nas ruas. Segundo ele, o álcool bem como outras drogas o ajudaram a fugir de uma realidade cheia de solidão. Contudo, a esperança por novas conquistas ficou cada vez mais distante e incerta. 

Elias Belmiro

Ex-morador em situação de rua

"O amanhã de um morador em situação de rua que se apossa e faz uso das substâncias que ajudam a ‘camuflar’ tal situação torna-se apenas mais um amanhã"

O acúmulo de perdas na vida de uma pessoa é muito grande. Se nada for feito para ampará-la, o resultado é ver a rua como única saída. Apesar de ser papel do poder público implementar políticas públicas às pessoas em condição de vulnerabilidade social, o membro da Pastoral do Povo de Rua, Carlos Fabian de Carvalho, destaca que a sociedade civil também não pode abrir mão dessa contribuição, seja na fiscalização das ações e na solidariedade. “Esse é um problema histórico, milenar, social que se agrava com as nossas dificuldades econômicas e que só será resolvido com a articulação da sociedade civil e do Estado”, aponta.

Conversando com pessoas em situação de rua de Vitória, Carvalho afirma que já ouviu várias reclamações e angústias, a principal queixa delas é o descaso da população, que acredita que elas são uma ameaça. “Elas comentam sobre a ausência dos abrigos noturnos e de projetos de moradias, a violência de membros de forças de segurança”, decreve.

Para Carvalho, a invisibilidade só será resolvida quando forem enfrentados os problemas de desigualdade social, políticas de moradia e de assistência social, educacional, saúde mental, assim como de substâncias psicoativas. "Ou seja, tudo o que produz esses motivos de saída de casa devem ser vistos não como um problema individual, mas como um problema produzido socialmente", pronuncia.

Segundo ele, as dificuldades encontradas são incontáveis. Para uma moradora em situação de rua que vive embaixo da Segunda Ponte, em Vitória, mais difícil do que conviver com a falta de empatia da população, é ter frio e fome. 

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Moradora em situação de rua que vive embaixo da Segunda Ponte, em Vitória

"Se vocês puderem ajudar os moradores em situação de rua com alimento, roupa, coberta ou cesta básica, estarão fazendo um bem enorme"
Pessoas em situação de rua ainda lutam contra a invisibilidade social no ES
População em situação de rua ocupa diversos espaços urbanos da Grande Vitória. Crédito: Romildo Neves

O PAPEL DOS PROJETOS SOCIAIS

Embora a solidariedade não seja um ato de bondade constantemente praticado na sociedade, ajudar o próximo tornou-se parte do dia a dia de diversos projetos sociais que prestam assistência às pessoas que vivem nas ruas. Com o objetivo de amenizar essa situação de vulnerabilidade social, voluntários buscam resgatar a dignidade dessas pessoas que são consideradas invisíveis.

Entre os projetos realizados na Capital, o Grupo Ajude o Próximo (GAP) atende as pessoas em situação de rua há sete anos em Vitória. Segundo o presidente da instituição, Kelvim Amaral, a ideia de criar um projeto como esse partiu da necessidade de ajudar aqueles que mais precisam de atenção. 

Kelvim Amaral

Presidente do Grupo Ajude o Próximo (GAP)

"Comecei a realizar essa ação porque senti uma enorme vontade de fazer algo para amenizar a dor do próximo. Não adianta ficar somente lamentando e sentado sem fazer nada. Decidi colocar em prática"

Ao contrário do que muitas pessoas pensam, a rua tem saída. O município de Cariacica, por exemplo, lançou em julho de 2021 o programa Vida Nova Cariacica, que busca desenvolver chances de concretização de sonhos pessoais e profissionais para a população em situação de rua. O trabalho está sendo desenvolvido no Acolhimento Institucional para Pessoas Adultas em Situação de Rua, no bairro Campo Grande. Entre as ações, há cursos que preparam esse público para a inserção no mercado de trabalho.

Na Serra, existe a oferta de atendimento psicossocial, no Centro Pop, localizado no bairro Divino Espírito Santo, onde são ofertadas quatro refeições diárias, assim como a realização da higiene pessoal. A prefeitura disse que, diariamente, 70 pessoas em situação de rua são atendidas.

Pessoas em situação de rua ainda lutam contra a invisibilidade social no ES
Projetos Grupo Ajude o Próximo (GAP) tem o objetivo de promover uma melhor qualidade de vida para as pessoas em situação de rua. Crédito: Romildo Neves

O fundador do projeto Luz e Esperança, Rodrigo Bertoldi, diz acreditar na reinserção social e familiar das pessoas em situação de rua. Segundo ele, houve algum momento obscuro e complicado na vida dessas pessoas que as levaram a viver nessa condição de vulnerabilidade e fraqueza. “Foi um ponto crucial para elas deslavarem totalmente até chegarem às ruas, mas eu acredito que tem recuperação”, afirma.

Outra iniciativa que ajuda pessoas em situação de rua é o projeto Missão + Ação, criado em meio à pandemia da Covid-19. A coordenadora Daniela Karthellin estava assistindo ao jornal na televisão quando ficou comovida com uma reportagem sobre uma mulher catadora de materiais recicláveis que estava passando fome. “Quantas pessoas não estariam com fome naquele momento, com frio, e a gente no nosso conforto?”, questiona.

Com o tempo, o projeto conseguiu mais voluntários, mas não é possível estar diariamente nas ruas. Daniela ressalta que não é todo dia que a população em situação de rua se alimenta ou tem uma pessoa com quem conversar, por isso é importante que novos projetos sociais e governamentais surjam para prestar apoio e solidariedade.

Para Carlos Fabian de Carvalho, que atua há doze anos no apoio à população em situação de rua, as transformações devem ser cotidianas na vida de cada um. Para que a mudança ocorra, ele afirma ser preciso estar presente na vida dessas pessoas e fazer parte da rede de solidariedade, como de projetos sociais. “Se tivermos um olhar mais amoroso em relação ao próximo, e um olhar engajado de políticas públicas estruturantes para essa população, certamente conseguiremos inverter o problema da invisibilidade social”, finaliza.

Pessoas em situação de rua ainda lutam contra a invisibilidade social no ES
Projetos sociais de diferentes partes do ES servem alimentos às pessoas em situação de rua. Crédito: Romildo Neves

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