Antes mesmo de concluir a 2ª série do ensino médio em uma escola particular de Vitória, a estudante Mariana Chagas Barbosa Rezende, de 17 anos, resolveu testar seus conhecimentos e fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2021 como treineira. Mais do que descobrir suas habilidades nos conteúdos apresentados, a estudante do Espírito Santo constatou que cinco questões da prova verde - aplicada a candidatos com deficiência - foram diferentes daquelas relacionadas nos cadernos para os demais concorrentes.
Chama a atenção o fato de as questões aplicadas para os candidatos com deficiência terem relação com pautas sociais que não estavam na prova geral, como feminismo, machismo e racismo, contrariando posicionamento do governo federal. Em declaração na semana passada, Jair Bolsonaro disse que, se pudesse interferir, a prova vista no domingo (21), teria mais questões "objetivas" e também sugeriu que gostaria que o teste tivesse perguntas sobre a ditadura militar.
No início de novembro, funcionários do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), órgão vinculado ao Ministério da Educação (MEC) e responsável pelo Enem, pediram demissão devido a tentativas de interferência política na elaboração da prova.
Lúcio Manga, um dos professores de Mariana, até suspeita que a diferença na prova possa estar relacionada a essa denúncia feita pelos ex-servidores, isto é, questões originais podem ter sido trocadas nos demais cadernos, mas permaneceram na prova dos candidatos com deficiência. "É apenas uma suposição, mas considerando que o governo insiste na questão ideológica, de a prova ter a 'cara do governo', não acho improvável", opina.
O episódio envolvendo a estudante Mariana Rezende está relacionado ao primeiro dia de provas, em 21 de novembro, quando foram aplicadas a Redação e questões de linguagens e ciências humanas. A situação foi reportada no dia seguinte ao Inep, com a aluna solicitando uma análise urgente sobre os motivos para a diferença. Até esta terça-feira (30), entretanto, ela ainda não tinha recebido resposta.
Surda oralizada, Mariana tem o português como primeira língua e não precisa da tradução da prova em Língua Brasileira de Sinais (Libras) para fazê-la. No entanto, ela conta, precisou pedir atendimento especializado na aplicação do Enem, pois faz leitura labial para entender as instruções e usa aparelho auditivo.
"Por causa disso, eu sempre fico numa sala só para deficientes auditivos (geralmente sozinha). Nos outros vestibulares que eu fiz, o caderno que eu recebi era o mesmo que o resto dos estudantes. Porém, no Enem (primeira vez que eu fiz, e como treineira) eu recebi a prova de 'libras'. Isso porque quem pede a tradução da prova em libras recebe um arquivo com a videoprova e a prova física em português. No meu caso, recebi apenas a prova física que, para deficientes auditivos, é um caderno diferente (independentemente de ter pedido a tradução ou não)", lembra a estudante.
Interessada em saber sobre seu desempenho na prova, no dia seguinte Mariana procurou um gabarito extraoficial para o caderno verde na internet, mas só encontrou uma correção comentada com as questões escaneadas.
"Fui corrigindo questão por questão. Estranhei porque logo a questão 6 já estava diferente, mas relevei e continuei olhando a correção. Começaram a aparecer várias questões que eu não tinha feito. Chegando em casa - ela estava na escola - conferi com o caderno em mãos. De fato, cinco questões estavam diferentes. Eu fiquei sem saber como reagir. Sem saber se era coincidência, erro ou normal mesmo. Aí decidi ligar para o Inep no número que eles disponibilizam. A atendente disse que poderia haver a mudança de questões de caderno para caderno. Em seguida, eu mandei um e-mail pelo site do governo direcionado ao Inep relatando a situação e pedindo a análise dos cadernos e alguma resposta. Até hoje não me responderam", pontua.
Mariana conversou com a família e depois relatou o caso para professores, entre os quais Lúcio Manga, de Redação. Após análise, ele considerou que as questões apresentadas no caderno de sua aluna e dos demais candidatos com deficiência eram de resolução mais complexa e, portanto, com nível de dificuldade maior.
Para Manga, não deveria haver diferença e, mesmo que questões diferentes estivessem previstas no edital do Enem, deveriam testar as mesmas habilidades de todos os alunos, o que não foi o caso deste exame. Aliás, segundo o professor, a edição de 2021 foi a primeira vez em que se fez distinção de prova de candidatos com e sem deficiência.
As provas do Enem têm cadernos com cores diferentes (verde, rosa, amarelo, branco e azul), para evitar colas e outras fraudes, e cada qual tem questões apresentadas em uma ordem. No entanto, todas as perguntas são iguais. A exceção, neste ano, foi para os alunos com deficiência.
Em nota, o Inep diz que utiliza a Teoria de Resposta ao Item (TRI) para elaboração das provas e cálculo das proficiências dos participantes do Enem. Diferentemente de uma prova comum, a nota do Enem em cada área não representa simplesmente a proporção de questões que o estudante acertou na prova. Em cada uma das quatro áreas avaliadas, a média obtida depende, além do número de questões respondidas corretamente, também da dificuldade das questões que se erra e se acerta, bem como da consistência das respostas.
"Alguns itens utilizados para elaboração das provas regulares podem não ser adequados para o público com deficiência. As questões podem ter, por exemplo, algum tipo de imagem ou suporte que impossibilita a descrição para o participante, por ficar muito extensa ou até por apresentar a resposta correta do item. Também pode ocorrer de questões da videoprova em Libras não estarem adequadas para o público surdo ou com deficiência auditiva. Nesses casos, os itens podem ser substituídos para a prova adaptada. O objetivo é proporcionar o atendimento especializado com garantia de isonomia entre todos os participantes", justifica o Inep.
Ainda em nota, o órgão acrescenta: "A TRI permite a troca de itens sem que as provas percam a comparabilidade entre si, pois as questões são substituídas por outras com o mesmo grau de dificuldade. Além disso, o gabarito não é alterado, no intuito de facilitar a divulgação do arquivo final com as respostas corretas de cada item."
Na avaliação do professor Manga, contudo, a justificativa do Inep não corresponde ao que foi observado na prova. "Ele poderia se defender, se fossem questões para testar a mesma habilidade, mas são habilidades diferentes. Nâo levam para o mesmo raciocínio e teriam que levar."
Para exemplificar, Manga cita a apresentação de uma charge e de uma tirinha, que são elementos diferentes, mas que no enunciado cobram do candidato a mesma resposta - identificar a ironia - ou seja, ambos exigem habilidade igual. Outra situação é apresentar elementos diferentes e, em um, pedir para apontar a ironia e, no outro, o "eu lírico". Foi essa distinção, reforça o professor, o problema identificado na prova dos candidatos com deficiência.
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