A cada passo, o pé afunda. Não adianta ter pressa e é preciso estar atento. Um orifício sinaliza que o caranguejo pode estar ali, então é preciso se abaixar, praticamente deitar no terreno pantanoso, e enfiar o braço até o fundo da toca. A lama é o "escritório" dos caranguejeiros, uma das profissões mais tradicionais do Espírito Santo, mas que está ameaçada de extinção.
A rotina de trabalho artesanal dura de 4 horas a 6 horas. O cansaço imposto pela atividade braçal e o regime de marés determinam o tempo do expediente. Só que nessa função o requisito que conta é a relação com a natureza. A proximidade com o ecossistema é tamanha que somente de olhar a toca, os catadores são capazes de identificar o tamanho e o sexo do crustáceo.
Por anos, viver como caranguejeiro era algo comum em muitas comunidades do Espírito Santo, mas isso mudou com a degradação dos manguezais. Os que sobreviviam somente da cata se tornaram pescadores de oportunidade, trazendo do manguezal o que conseguem, quando conseguem.
“Antigamente o caranguejeiro pegava só caranguejo. Ocasionalmente, quando sobrava tempo, poderia pegar outras coisas. Agora ele pega tudo o que tiver, além de complementar renda com outras atividades: ele se tornou auxiliar de pedreiro, vendedor”, explicou o presidente do Instituto Goiamum, Iberê Sassi.
O caranguejeiro Joel Pereira, de 60 anos, aproveitou os tempos de fartura durante os 48 anos que viveu do mangue, em Maria Ortiz, Vitória. Aposentado na profissão, hoje ele entra esporadicamente na lama e enfrenta dificuldade para encontrar caranguejos grandes, até mesmo na região onde está o maior manguezal urbano do Brasil. “As áreas mais distantes são mais preservadas e têm qualidade, mas é preciso andar muito. Foi do mangue que criei todos os filhos. Ele era mais verde, limpo. Hoje tem muita poluição”, compara.
A experiência de vida do presidente da Associação de Moradores, Catadores de Caranguejo e Pescadores do Distrito de Nativo, em São Mateus, Pedro Ribeiro Clarindo, de 51 anos, marca a transição entre a fase da abundância e a escassez: nos anos 1990 ele conseguia se manter somente com a cata do crustáceo, mas com a redução do número de caranguejo passou a investir na plantação de aroeira e a vender churrasquinho.
Pedro Ribeiro Clarindo
Catador de caranguejo em São Mateus
"Antigamente o dinheiro do mangue dava muito mais que um salário. Mas a quantidade de caranguejo reduziu, principalmente depois da Doença do Caranguejo Letárgico, e temos dificuldade para vender. Sobreviver somente do caranguejo hoje é praticamente impossível"
FIM DE UM CICLO
O trabalho árduo, a redução em quantidade e em tamanho dos caranguejos também fizeram com que a nova geração perdesse o interesse pelo manguezal. Assim, o ciclo de uma atividade que passava de pai para filho está sendo rompido. Mário Júnior de Oliveira, de 56 anos, aprendeu a profissão com o pai e até tentou transmitir os ensinamentos para as quatro filhas, mas nenhuma delas quis seguir a profissão. “Eu fico triste, mas tem hora que eu dou razão porque não está dando para viver com o que sai do manguezal, antes tínhamos fartura”, lamenta.
Catador de caranguejo é profissão em extinção
A filha do caranguejeiro, Mariana Lapa de Oliveira, de 25 anos, diz que até tentou viver do manguezal, mas aos 20 anos tomou a decisão de ir para a cidade trabalhar com o marido de carteira assinada. “Meu marido e eu estávamos com dificuldade de achar caranguejo, passamos tanta dificuldade que fomos para a rua trabalhar. Hoje ele está no mercado, eu comecei com um emprego numa fábrica, mas agora estou tentando outra coisa. Falei com meu pai que, se a situação no mangue melhorasse, poderia voltar para lá, mas as coisas só pioram”, desabafa.
O pós-doutor em Ciências Sociais e professor do curso de pós-graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie (SP), João Clemente de Souza Neto, explica que essa descontinuidade da profissão pelos filhos traz diversos problemas: extinção da mão de obra qualificada, aumento de desempregados no mercado de trabalho tradicional e desequilíbrio do meio ambiente.
João Clemente de Souza Neto
Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie
"Isso pode levar a extinção da profissão desses povos tradicionais. Essas pessoas, que poderiam tirar o sustento desse ecossistema, partem para o mercado de trabalho na cidade, fazendo com que o número de desempregados e excluídos só aumente. Dessa forma, a gente vai desconstruindo as experiências e as vivências com a natureza"
O catador de caranguejo, Renildo Tomaz Borges, de 51 anos, também reclama da dificuldade de viver atualmente somente da cata do caranguejo e reforça que, por isso, muitos têm tentado dividir a atividade com outra fonte de renda ou até mesmo desistir da profissão.
“Eu tenho quatro filhos, o mais velho desistiu do mangue e está trabalhando na cidade. Não quero que eles sigam o que eu fui, quero que tenham qualificação para terem renda boa, o manguezal não dá mais dinheiro. A gente vendia cerca de R$ 500 a R$ 600 por semana para bar e restaurante, mas o povo hoje parou de procurar, tem muita gente com medo também por causa da lama da Samarco que chegou ao mangue”, contou.
De acordo com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento há no Espírito Santo 13.443 pescadores profissionais artesanais ativos. Pela legislação, o caranguejeiro é considerado pescador, por isso, não é possível saber quantos catadores ainda existem no Estado. Somente cinco das 15 prefeituras onde há manguezal fazem essa separação. Nesses municípios, são 555 profissionais.
Apesar desse número, a quantidade de profissionais que recebem o seguro-defeso do caranguejo-uçá está reduzindo drasticamente. Em 2008, ano que teve maior número de auxílios pagos, 798 pessoas recebiam o benefício, sendo 571 mulheres e 227 homens, já em 2019 o número de beneficiários caiu para 7, sendo três mulheres e quatro homens.
O seguro defeso do caranguejo-uçá é pago durante a proibição da pesca devido à reprodução do crustáceo. Ele é destinado a pessoas que têm a cata como única fonte de renda. O controle para pagamento é feito por meio do Relatório de Exercício da Atividade Pesqueira, que os pescadores entregam anualmente na Secretaria de Aquicultura e Pesca, indicando os produtos pescados por eles. Até 2015 os dados eram encaminhados para o até então Ministério do Trabalho, responsável pelo concessão do benefício.
“Descobrimos muitas fraudes no período, tinham pessoas que não realizavam a atividade e recebia. Teve, inclusive, servidor preso por isso. Mas também já encontrei catadores que sequer tinham o benefício por falta de instrução de como obtê-lo”, esclareceu o superintendente regional do Trabalho no Espírito Santo, Alcimar Candeias.
A partir de 2015 o benefício passou a ser de responsabilidade do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). O órgão explicou, por meio de nota, que como o seguro-defeso é pago somente para quem exerce a atividade como catador de caranguejo-uçá, a redução no número de benefícios têm sido ocasionada por diversos motivos: mudança de atividade dentro da pesca, abandono da profissão e corte devido à descoberta outras atividades remuneradas do pescador.
MANGUE: DESTRUIÇÃO E RESISTÊNCIA
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