Ely José Marçal tem 76 anos idade, é morador de Vila Velha e foi o primeiro integrante da família a descobrir uma doença rara, genética e fatal. O aposentado, que trabalhou trinta anos em uma distribuidora de energia elétrica do Espírito Santo, vive em uma cadeira de rodas e depende do auxílio da esposa, Jandira, e da filha, Giseli. Ely foi diagnosticado com amiloidose hereditária por transtirretina com polineuropatia (entenda abaixo os efeitos da doença). Os anos de dedicação à família e ao trabalho deram lugar a uma rotina em que ele é cuidado de perto 24 horas por dia. Além dele, dez familiares tiveram resultado positivo para a doença - duas sobrinhas, inclusive, já usam medicação para conter o avanço da amiloidose.
Ely, a esposa e a filha abriram as portas de casa, no bairro Aribiri, para a reportagem de A Gazeta e contaram com detalhes sobre a evolução da doença, desde as primeiras dores até o diagnóstico.
As dores no corpo o levaram a uma série de tratamentos e até mesmo uma cirurgia na coluna. Ele ainda tinha 68 anos de idade e muita disposição para cuidar da casa e da família. A esposa e a filha imaginavam que os desconfortos eram pontuais e que talvez tivessem relação com o trabalho realizado ao longo da vida.
Ely Marçal
Aposentado de 76 anos
"Eu trabalhava com elétrica, um serviço árduo, mas dava para trabalhar tranquilo. A saúde estava reinando. Mas quando chegou isso aqui, foi havendo a decadência, não deu para fazer mais nada. Essa doença vai levando a gente de mansinho"
A doença tem um nome extenso e difícil. Mas a explicação, segundo o médico autor da descoberta e o próprio paciente, é simples: Uma fraqueza compromete as pernas, depois os braços, também afeta o coração, o cérebro e os olhos.
Atualmente, Ely está em uma cadeira de rodas. No primeiro estágio da doença, o aposentado sentia dores nas pernas e chegou a andar com uma muleta. No estágio dois, as dores pioraram. No terceiro estágio, Ely precisou da cadeira de rodas.
O aposentado nasceu no Sul de Minas Gerais e veio para o Espírito Santo aos 20 anos, em 1968. Desde então, constituiu uma família. A esposa e a filha são capixabas. A família de Ely está espalhada pelo Espírito Santo, Minas Gerais e São Paulo. "Não consigo fazer nada. É ver televisão, mexer no celular... porque não consigo descascar um dente de alho. Não tenho força, não tenho equilíbrio", relata o idoso.
A fisioterapeuta Giseli Marçal, que é filha de Ely, lembra como foi o início do tratamento do pai.
“Passamos a ver que ele começou a ter dificuldade em outras partes do corpo. A gente começou a pensar que poderia ser algo mais difuso, fora da coluna. E um dos médicos disse que poderia ser uma doença desconhecida", comenta.
Caminho longo até o diagnóstico da doença
Até chegar ao diagnóstico, Ely passou por alguns médicos. Mas foi o neurologista capixaba Ryann Pancieri o autor da descoberta. O médico conversou com A Gazeta e explicou a gravidade do caso.
Ryann Pancieri
Médico neurologista
"Ely veio encaminhado de um outro médico. Na época, fizemos a solicitação do teste dele, que teve resultado positivo. Ele foi o primeiro paciente positivo que eu tive com a amiloidose hereditária"
Dr. Ryann Pancieri relatou que, assim como Ely, outros pacientes com esta doença demoram a chegar a um diagnóstico, ou seja, finalmente descobrirem a causa das dores. Ryann relatou que um paciente pode demorar até seis anos e passar por até dez médicos antes de receber o diagnóstico da amiloidose hereditária, considerando experiência semelhantes. No caso de Ely, foram mais de quatro anos até o diagnóstico. As dores começaram em 2016. Cinco anos depois, Ely descobriu a doença.
A doença está relacionada a uma mutação surgida em Portugal. De acordo com Ryann, a doença teria surgido em Póvoa de Varzim. E a relação de colônia do Brasil com Portugal seria o motivo para a quantidade de diagnósticos no país.
Doença compromete nervos autônomos e tem três estágios
O nome da doença faz referência aos amilóides, que são pequenas fibras de proteínas defeituosas. Isso causa a modificação em algumas partes do corpo. A estimativa é que uma a cada 100 mil pessoas no mundo seja diagnosticada com a doença, o que garante a classificação de doença rara.
A doença é dividida em três estágios, do inicial ao avançado. De acordo com a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (CONITEC), há a deterioração dos nervos ao longo dos anos, provocando fraqueza generalizada.
Após resultado positivo de Ely, família se mobilizou para realização de exames
Conforme explicado pelo médico Ryann Pancieri, a doença é hereditária, ou seja, há grandes chances de os filhos terem a mesma doença que o pai. Na família de Ely não foi diferente disso. Ao todo, 21 pessoas fizeram um exame de DNA que identifica a doença. Foram 11 resultados positivos, incluindo o idoso de 76 anos.
De acordo com o médico, a amiloidose tem, por característica, uma manifestação tardia. Isso significa que crianças, adolescentes e jovens dificilmente apresentam sintomas da doença. Apenas na fase adulta, ou com o paciente idoso, os sintomas aparecem.
Ryann Pancieri
Médico neurologista
"O teste genético é presente no cotidiano médico. Fazemos um raspado da mucosa da gengiva. Preservamos as células e mandamos para São Paulo. No laboratório, identificamos se há ou não mutação. O resultado demora entre 15 e 20 dias. Com o resultado, começamos a acompanhar o paciente"
Dr. Ryann Pancieri recomenda que pacientes que tenham casos semelhantes na família façam o teste, independente de terem ou não sintomas. É uma forma de, caso realmente tenham a doença, comecem o tratamento mais cedo.
Médicação no Brasil é oferecida para estágio 1; Ely não tem tratamento
Quem é diagnosticado com amiloidose hereditária por transtirretina com polineuropatia ainda no primeiro estágio tem tratamento oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo Ryann Pancieri, a medicação é acessível para os pacientes. Os problemas aparecem, no entanto, para pacientes dos estágios dois e três. E obstáculos por razões diferentes.
Pacientes do estágio dois tem uma dificuldade: Há medicamento, mas não é oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Os interessados devem comprar ou entrar na Justiça, provando a necessidade do uso. Quem encontra-se no terceiro estágio, porém, tem um outro problema: Não há medicamento. Portanto, pessoas como Ely Marçal enfrentam uma doença sem tratamento, sem remédios ou procedimentos que evitem o avanço da amiloidose.
Comissão abriu consulta pública para avaliar uso de remédio no estágio 2
A novidade recente no tema é a abertura de uma consulta pública pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) para avaliar um remédio que pode ser usado por pacientes do estágio 2. A consulta pública de número 24 foi aberta no dia 24 de maio, com publicação no Diário Oficial da União, e encerrada na quarta-feira (12). Foram mais de 900 contribuições - pessoas da sociedade civil que têm algum posicionamento sobre o assunto.
A inotersena é o medicamento analisado para tratamento da polineuropatia amiloidótica familiar relacionada à transtirretina em pacientes adultos no estágio 2. De acordo com um relatório do Conitec, o uso do remédio pode permitir que os pacientes vivam mais e melhor. A aquisição do inotersena teria um custo de no mínimo R$ 1,5 milhão por paciente - o valor não é referente a uma dose, mas ao tratamento como um todo. Caso o medicamento seja incorporado ao SUS, foi calculado um custo adicional de aproximadamente R$ 328 bilhões nos próximos cinco anos.
Relatório do Conitec sobre uso do medicamento em pacientes no SUS
A inotersena é o medicamento analisado para tratamento
Filha diz que Sesa negou medicamento; veja o que diz a secretaria
Durante entrevista à reportagem de A Gazeta, a filha de Ely, Giseli Marçal, afirmou que quando o pai ainda estava no estágio dois, foi solicitado medicamento para tratamento da doença. O pedido feito à Secretaria de Estado da Saúde, no entanto, foi negado. “Eu fiz isso [pedido] pela farmácia cidadã para o meu pai, só que, mesmo cumprindo todos os requisitos, alegaram falta de previsão orçamentária. Houve uma negativa”, afirmou.
A família, então, acionou um advogado e entrou na Justiça pedindo o remédio ao Ministério da Saúde. O pedido até foi atendido, mas oito meses depois, quando aquele medicamento já não era o ideal para Ely. O remédio pedido pela família não chegou a ser usado.
Procurada pela reportagem, a Secretaria de Estado da Saúde informou, em nota, que a Gerência de Assistência Farmacêutica (GEAF) recebeu dois pedidos do paciente para fornecimento do Tegsedi (Inotersena). O primeiro pedido foi feito em julho de 2021 e negado, segundo a secretaria, por falta de comprovação do diagnóstico da doença. Já a segunda solicitação foi realizada em agosto de 2021, e foi negada. Conforme explicado pela secretaria, o remédio não está na lista de medicamentos padronizados do Ministério da Saúde para o Sistema Único de Saúde (SUS).
"Vale ressaltar que a incorporação de qualquer produto é decidida pelo Ministério da Saúde", informou em nota.
O que diz o Ministério da Saúde
A reportagem de A Gazeta procurou o Ministério da Saúde na segunda-feira (10) para saber quantas pessoas tem o diagnóstico da doença no Brasil e em quais estágios elas estão. A Gazeta também perguntou quais são os remédios oferecidos e qual o prazo para a decisão de incluir ou não um novo medicamento no tratamento da doença.
Em nota, o Ministério da Saúde informou que considera a quantidade de diagnósticos menor do que os casos reais, ou seja, pode haver subnotificação de casos da doença. De acordo com a pasta, o diagnóstico, tratamento e acompanhamento de pacientes com amiloidose hereditária por transtirretina com polineuropatia no Sistema Único de Saúde se dá conforme Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas da doença.
Sobre a consulta pública aberta, o Ministério da Saúde informou que as contribuições recebidas durante o processo serão consideradas para a recomendação final sobre o tema.
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