Por quase 30 minutos, a médica intensivista do Samu, Ananda Sampaio Rampinelli, de 34 anos, juntamente da técnica em enfermagem Dandara Mariano e ainda o enfermeiro Fabio Litzkon, se revezaram juntamente com as demais equipes do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência nas tentativas de resgate das vítimas do desabamento do prédio de três andares em Vila Velha, ocorrido na manhã desta quinta-feira (21), após uma forte explosão no térreo.
Coube a Ananda, entretanto, ter acesso à adolescente Sabrina Morassuti, de 15 anos, que resistiu por horas em meio aos escombros. E foi justamente no que restou da edificação que Ananda entrou por uma fenda de aproximadamente 45 centímetros de diâmetro para medicar a jovem, além de fornecer oxigênio à garota.
O empenho dela, que chegou a ficar de cabeça para baixo enquanto era segurada pelos pés, foi reconhecido pelo público presente nas imediações da tragédia em Cristóvão Colombo e comoveu milhares de pessoas com o registro feito pelas lentes do fotógrafo Vitor Jubini, de A Gazeta.
Ainda perplexa com a intensidade do que presenciou ao longo de todo o dia e que adentrou a madrugada desta sexta-feira (22), quando a última pessoa foi retirada dos escombros, Ananda agradeceu as centenas de mensagens de apoio recebidas e o reconhecimento do público pelo esforço feito pela equipe dela e dos demais que fizeram de tudo para o socorro às vítimas. Além disso, ela relatou à reportagem que os momentos ali vividos dificilmente serão esquecidos.
Ananda vinha de uma jornada de 36 horas em um hospital, quando entrou no plantão do Samu às 7 horas da manhã, minutos antes do desabamento, e que se estendeu até as 19h.
Outras equipes com socorristas do Samu se revezaram desde o acionamento. Com os primeiros times já exaustos, ela e a equipe chegaram por volta das 16h para render os profissionais na cena do desastre. "Ocorreu a coincidência de ser justamente nós no momento em que a Sabrina foi localizada com vida". Ao todo, apenas do Samu, foram 6 equipes com 16 profissionais se revezando.
A rotina de um médico socorrista do Samu envolve situações complexas, mas a de ontem chamou muita atenção. Foi uma das situações mais desafiadoras/tensas que você já lidou enquanto no Samu?
"Tenho alguns anos de Samu e já tive muitos atendimentos que me marcaram, bem tristes, complexos e graves, até por conta da complexidade da cena local, mas o de ontem marcou a mim e minha equipe que estava lá. Diferentemente das outras situações em que a gente chega, existe alguém, nós abordamos, agimos, e mesmo com toda a nossa ação, por vezes não conseguimos salvar porque as situações eram muito graves, mas a de ontem não. Ontem tínhamos o quê, como e porque fazer. Tinha alguém conversando conosco... chego a me arrepiar... e a gente não conseguia ter acesso à ela. Então isso foi muito ruim, uma sensação de impotência diante de você ter o que fazer, ter tudo nas mãos para poder dar, mas a situação não lhe permite".
Além do oxigênio, o que mais você aplicou nela?
"Naquele momento, ela ainda estava conversando e a gente resolveu por deixar tudo preparado para caso conseguíssemos retirá-la nos próximos minutos e, assim, não perderíamos tempo preparando medicação ou outra coisa. Então, depois que a gente puncionou (pegar a veia), uma ampola era com glicose e a outra com adrenalina para caso ela tivesse uma parada cardíaca. Já estaria tudo preparado. Foram essas duas medicações, além do oxigênio".
Você chegou a ver como a Sabrina estava. Ela conversou contigo?
"A gente só teve acesso à mão dela. Ela colocava a mão para dentro e fora do buraco, e foi aí que conseguimos pegar a veia dela pela primeira vez. O acesso que tínhamos era só da mão, um pouquinho acima do punho. Eu ouvia a voz dela, ela pedia ajuda, pedia que tirássemos ela logo de lá. Tentamos conversar um pouco com ela, explicamos que éramos médicos e estávamos ali para ajudá-la, mas que era para ela poupar força, não gritar porque ela iria acabar cansando. Ela só nos pedia para tirar ela de lá logo. A gente tentou acalmar ela neste momento".
Recorda-se por quanto tempo você permaneceu nessa situação?
"Os bombeiros, que trabalharam brilhantemente, conseguiram tirar mais uma parte (dos escombros) e descobriram o braço inteiro dela (estava soterrado). Aí tivemos acesso a todo o braço, conseguimos chegar no nariz, um pouquinho do olho, a bochecha... e a gente ficou ali com oxigênio".
Quem mais estava com você naquele momento?
"Eu não estava sozinha. Comigo estavam a técnica (em enfermagem) Dandara, e o enfermeiro Fábio. Depois que vi que dava para pegar (a veia), a Dandara, que é ainda menor do que eu, entrou lá e ficou um tempo tentando pegar a veia dela com a ajuda do Fabio. Nesse revezamento todo, foram cerca de uns 30 minutos. Depois que ela parou de nos responder foi o pior momento, pois a gente precisava a todo custo ver se ela só havia desmaiado, se ainda estava viva, ou identificar o que havia acontecido. Foi nessa hora, quando entrei de novo, e os bombeiros me ajudaram. Eles me seguraram pelos pés para eu chegar até ela".
Ananda Sampaio Rampinelli
Médica do Samu
"Brilhantemente eles conseguiram pegar a veia dela com a ajuda e Deus, eu acho, naquele momento"
É possível explicar o que passa na cabeça naquele momento, de que a vida da pessoa também passa pelo o que você faz?
"Nesse momento a gente quer a qualquer custo fazer de tudo para poder tirar ela de lá. Na nossa cabeça fica o pensamento: 'será que posso fazer algo a mais do que estou fazendo? Tem alguma coisa que eu poderia fazer diferente, sabe?' Só que aí também entra outra a cena, pois não estávamos seguros. Era uma zona quente, em uma cena perigosa, então fica passando isso na nossa cabeça. Mas sabemos que fizemos tudo o que a gente poderia, demos o nosso melhor e o que tínhamos em mãos naquele momento".
A cena de você naquela situação de resgate comoveu e gerou muitos elogios. Como é receber este reconhecimento?
"Está sendo muito gratificante, mas eu não estava sozinha e não teria feito nada sem a minha equipe. No Samu, depois que a gente veste o macacão, não somos médicos, não somos técnicos, condutor ou enfermeiro. Somos um só, uma equipe. Eles estavam juntos, também entraram e brilhantemente pegaram uma veia impossível quase de pegar. Está sendo muito bom, óbvio (receber o carinho e reconhecimento do público), mas eu não faria nada disso sozinha e nunca estive sozinha. No Samu ninguém nunca vai estar sozinho. Em uma situação dessas viramos um só e não existe distinção de categoria".
Quando você foi colocada naquela fenda a sensação era de que um pouco mais de esperança se criou em relação à Sabrina. Infelizmente depois ela morreu. Como é lidar com isso?
"Depois que eu consegui ver um pouco mais do rosto, o pescoço... pela mãozinha a gente achou que ela não estivesse mais viva, é muito difícil falar sobre isso... Conseguimos ver o rosto, eu e a técnica (Dandara), e vimos que não tinha mais pulso, estava com a pupila fixa e ela já tinha ido a óbito".
Desabamento em Vila Velha
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