Ainda sem saber o tempo da nova gestação, Géssica da Silva Costa, 33 anos, carrega em seu corpo mais que o peso adquirido na gravidez. Ela traz consigo a preocupação de ter uma moradia digna para sua família, mas reside em uma ocupação em Vila Velha, de onde pode ser obrigada a sair a qualquer momento. A Vila Esperança, onde construiu com o marido, Maelson Monteiro, uma casa de paletes de madeira, é área disputada na Justiça.
Cenário que os coloca entre as 3 mil famílias em todo o Espírito Santo que correm o risco de ser despejadas do lugar no qual vivem, totalizando cerca de 12 mil pessoas que estão vivendo com essa ameaça.
Quando se mudou em junho deste ano para a ocupação situada em Jabaeté, na região de Terra Vermelha, Géssica, que já é mãe de duas meninas, não tinha ideia de que se tratava de terreno no meio de uma briga judicial. O desejo dela, naquele momento, era deixar para trás o aluguel, que tirava o seu sono todas as noites.
Com uma renda de pouco mais de um salário mínimo (R$ 1.212), a família gastava quase R$ 1 mil para se manter no local em que vivia, no bairro Boa Vista, ao somar o aluguel com as despesas de energia e água.
"Estava muito difícil pagar. Ou pagava aluguel ou comia. A gente teve que se sacrificar para fazer a casa para sair logo do aluguel", lembra Géssica.
Mesmo numa condição inadequada, ela considera que a realidade atual é melhor do que o período em que precisava pagar para morar no antigo imóvel. Géssica conta que, hoje, "consegue respirar" por não ter que ficar pensando na dívida permanente com moradia.
"Antes da pandemia, ainda dava para equilibrar as contas. Depois, ficou tudo muito caro, não estava dando. Eu me sinto mais aliviada só de tirar da mente que tenho que pagar aluguel", desabafa, acrescentando que, durante a crise sanitária da pandemia da Covid-19, também perdeu a renda que tinha como cabeleireira.
Informada sobre a possibilidade de despejo, Géssica demonstra tristeza, mas permanece confiante de que possa permanecer na ocupação. O marido, por sua vez, vai retomar o trabalho de açougueiro e espera que, com a remuneração, consiga juntar dinheiro para montar a estrutura de um salão no quintal da casa, para que, assim, a mulher consiga voltar a trabalhar. Tudo isso se a Justiça não determinar a saída da família da ocupação.
Ações de despejo
A ação de despejo na Vila Esperança, que reúne cerca de 230 moradores, se soma a outras medidas judiciais que podem afetar 12 mil pessoas em todo o Espírito Santo. Essa é a estimativa da Defensoria Pública Estadual, após levantamento de casos de famílias que vivem em prédios e terrenos privados ou do poder público, cujos donos buscam na Justiça reaver os imóveis.
Durante a pandemia, uma decisão do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu os efeitos das ações de despejo, para evitar o agravamento da crise, que também era social. A medida que beneficiou famílias em todo o país teve vigência até o fim de outubro e, agora, os processos podem tramitar.
Inicialmente, as ações foram suspensas por seis meses a partir de junho de 2021. No fim daquele ano, Barroso prorrogou a proibição de despejos até 31 de março de 2022. Depois, em uma terceira decisão, deu prazo até 30 de junho e, finalmente, estendeu até 31 de outubro.
No mesmo dia, o ministro decidiu permitir novamente a discussão do tema pelos tribunais, mas determinou que, ao tratar de casos de reintegração de posse, fossem instaladas comissões para mediar eventuais despejos antes de qualquer decisão judicial, segundo afirma a defensora pública Marina Dalcolmo, coordenadora do Núcleo de Defesa Agrária e Moradia (Nudam).
A assessoria do Tribunal de Justiça (TJES), por sua vez, informou que ainda não havia orientação do STF para a formação da comissão, mas assegurou que o Judiciário no Estado vai adotar as providências necessárias assim que for comunicada.
"Enquanto o TJES não criar a comissão, para que os processos passem por sessão de conciliação, não pode haver despejo", explica Marina Dalcolmo.
Apesar de a obrigação do procedimento poder barrar as reintegrações por ora, essa é uma situação temporária. Marina Dalcolmo preocupa-se com o futuro dessas famílias, que reúnem de crianças a idosos, todos sem acesso à moradia digna. Para ela, falta ao poder público instituir políticas habitacionais capazes de absorver a demanda da população mais vulnerável, que não tem onde morar.
Improviso
É o caso da costureira Luciana Pacheco, 45 anos, que deixou a casa em que morava, em Riviera da Barra, para também montar um barraco de madeira em Vila Esperança porque o auxílio que recebe do governo federal não é suficiente para pagar despesas com aluguel, água e energia. Na moradia improvisada com tapumes de madeira, ela vive com três de seus filhos e ainda mantém por perto a mãe, que também ocupa um terreno na região.
Se não bastassem as dificuldades cotidianas, as chuvas do fim de ano deixaram a situação mais crítica: entrou água na casa, estragando o pouco que a costureira tem. Ela precisou jogar fora o armário e até algumas roupas que ficaram mofadas. Luciana e a família vivem de doações.
"Quem está aqui (na ocupação), depende muito. Que Deus abençoe e nunca chegue a hora desse despejo porque vai afetar todo mundo, não é um só. Muita gente está passando aperto por causa disso", lamenta Luciana.
Terrenos em disputa
A grande área em que se instalou a Vila Esperança foi loteada e hoje tem, segundo Adriana de Jesus Paranhos, 39 anos, quase 2 mil unidades — 230 com moradores. Conhecida como Baiana, ela é uma liderança comunitária e está no local há cerca de três anos, época em que, conforme afirma, tudo ainda era mato e o terreno não era utilizado.
Adriana de Jesus Paranhos
Líder comunitária da ocupação Vila Esperança
"Eu vivia de favor, mas queria um lugar para minha família. Eu e mais quatro crianças. Por isso, eu vim para cá. Aí, a gente fica nessa batalha, mas essa luta não é só por mim. As terras estavam abandonadas, não davam nenhum tipo de rendimento nem para o Estado, nem para o município. Hoje, as famílias que têm lote estão cuidando, plantando, construindo"
A ocupação é vizinha de outra, chamada Vale da Conquista, com uma presença maior de moradores e que também é alvo de disputa judicial.
No relatório da Defensoria Pública, a equipe destaca que, no início da ocupação, a área estava vazia, sem atividade que pudesse comprovar a existência de posse prévia sobre o terreno.
Ocupação Vila Esperança
Na Vila Esperança, aponta o documento, parte das famílias foi surpreendida por remoção administrativa realizada pela Prefeitura de Vila Velha, em agosto de 2021, sem notificação prévia e desacompanhada de órgão de assistência social. Na ocasião, ainda segundo o relatório da defensoria, 12 barracos foram demolidos sob a posterior justificativa de que a área ocupada constituiria “reserva legal”, “zona de especial interesse ambiental” e “zona de amortecimento” de parque municipal, e de que estaria respaldada pelo “poder de polícia” da administração pública.
Questionada sobre as áreas, os procedimentos adotados pela prefeitura e qual a política habitacional voltada para esse público, a assessoria da administração municipal reafirmou, em nota, que os locais citados são propriedade particular e que caberia ao Judiciário notificar os ocupantes.
"A Secretaria de Assistência Social realizou recentemente um levantamento no local, sendo identificadas 624 famílias que se autodeclararam moradores ou possuir um terreno na área; 30% dos terrenos estão vazios; 12% das famílias identificadas possuem outros imóveis em Vila Velha; e 22% declararam pagar aluguel na área. O município orientou as famílias, informando que o terreno é particular. Ofereceu cadastramento no CadÚnico e está disponível ao diálogo. Importante ressaltar que novas invasões em áreas públicas ou de proteção ambiental estão sendo monitoradas em tempo real, com uso de tecnologia, e não serão aceitas mais na cidade", diz em outro trecho da nota.
Ocupações
O relatório da Defensoria Pública ressalta que há conflitos em toda a Região Metropolitana e também em municípios do interior, como Marataízes, Itapemirim e Anchieta, na área urbana, e Linhares e Aracruz, na zona rural.
Fora da Grande Vitória, Rodrigo Gonçalves, da direção do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra do Espírito Santo (MST-ES), pontua que, no momento, há cerca de mil famílias acampadas, sobretudo na Região Norte capixaba. São pessoas que, segundo ele, estão há décadas "debaixo da lona preta" sem assistência governamental.
Por outro lado, afirma ele, estão desenvolvendo experiência de acampamentos produtivos e autossustentáveis. Rodrigo conta que, no Natal de 2021, a produção dessas áreas ocupadas possibilitou a doação de 50 mil quilos de alimentos para pessoas em situação de vulnerabilidade.
Assim, na opinião de Rodrigo, os campesinos têm contribuído para a sociedade com suas plantações. Como contrapartida, ele defende que o governo crie assentamentos para regularizar a situação das famílias que vivem em acampamentos.
"Em todas as áreas rurais, as pessoas estão na iminência de ser despejadas. Até resolver a questão do assentamento, as famílias ficam ameaçadas de, a qualquer momento, ter que sair de lá", frisa Rodrigo Gonçalves.
Conciliação
A secretária estadual de Direitos Humanos, Nara Borgo, explica que, quando se trata de reintegração de posse, geralmente as medidas são judicializadas. Mas, como o procedimento é complexo, em 2019 foi criada uma mesa de conciliação de conflitos para que o Estado pudesse cumprir as decisões de forma a causar menos danos para as famílias.
Uma das iniciativas é negociar com as prefeituras para inscrever ocupantes no CadÚnico, bem como tentar identificar locais em que as pessoas possam ser acomodadas ao deixarem as ocupações. Ela afirma que, desde a instituição da mesa de conciliação, as desocupações têm sido menos conflituosas.
"A gente não atua diretamente na ponta, mas vai fazendo essa conversa. Tem toda a assistência social do Estado tentando fazer com que tudo aconteça sem que haja problemas. Do outro lado, cada município atua conforme a necessidade das pessoas e a capacidade orçamentária da administração. Tem município que paga o aluguel social, outro tem programa de construção de imóveis. Nossa função, enquanto Secretaria de Direitos Humanos, é fazer a mediação do governo com municípios."
LEIA MAIS
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.