Com a cabeça de um peixe cru em uma caixa de papelão, Fernando Martins chega ao local em que se abriga, nas imediações do Terminal de Vila Velha e de um ponto viciado de descarte de lixo, com um semblante feliz. Era fim de tarde e o jantar estaria garantido com aquele pedaço de comida, muitas vezes descartado, mas que ele havia recebido em uma peixaria. Naquela noite, Fernando não dormiria com fome, como em tantos outros dias, porque, para se alimentar, depende de doações. E a solidariedade nem sempre bate à sua porta.
Em situação de rua, Fernando lida com a dureza da vida ao relento com uma dose de generosidade, algo que quase sempre lhe é negado. A cabeça de peixe, planejava, seria partilhada com quem ele divide a calçada. "Como Deus é maravilhoso e dividiu um pão para um montão de gente, por que eu não posso dividir também?", questiona.
A despeito da alegria momentânea de Fernando pelo peixe que comeria, a fome é rotina e não força de expressão. Para ele e outros milhares. No Espírito Santo, mais de 1,1 milhão de pessoas estão na chamada linha da pobreza e outras 394 mil, na extrema pobreza - estas, no grupo das que não comem todo dia.
O contexto socioeconômico é definido por estudiosos pela renda familiar. Para essa parcela da população, entretanto, o que marca fortemente a sua condição é mesmo a falta de comida.
GELADEIRA VAZIA
É assim na casa que Vera Lúcia divide com o marido e quatro de seus filhos, em Vale da Conquista, ocupação na região de Terra Vermelha, Vila Velha. Por lá, a geladeira quase sempre está vazia e, no fogão, as panelas sinalizam a dificuldade cotidiana: sem renda fixa, não é raro que a principal refeição do dia seja a mistura de verduras de uma pequena horta que a família improvisou no quintal. Ela mesma já deixou de comer para garantir que as crianças tivessem alguma comida no prato.
Distante dali, no alto do morro da Fonte Grande, em Vitória, Gleiciane dos Santos Brito também já ignorou a própria fome para que os filhos não sentissem a dor de um estômago vazio. Sobrevivendo de “bicos” e de auxílio governamental, o dinheiro que junta no final de um mês de sacrifícios não é metade de um salário mínimo, hoje em R$ 1,2 mil. Com os cerca de R$ 450, paga contas e compra o que é possível.
Moradora de Cariacica e sem trabalho, Lucimara Souza, de repente, se viu revirando latões nas imediações da Central de Abastecimento do Espírito Santo (Ceasa), em busca de frutas e vegetais descartados.
Em cada relato, uma história de dificuldade diferente, mas algo comum a todos: a pobreza. E, nesse cenário, uma característica bastante evidente é a insegurança alimentar, seja pela incerteza de que vai poder comer naquele dia, seja porque realmente não tem alimento diariamente.
PANDEMIA
A pobreza vem aumentando no país desde 2015, aponta Daniel Duque, pesquisador da Economia Aplicada do FGV IBRE, mas a pandemia da Covid-19 acelerou o processo de empobrecimento da população brasileira.
Particularmente no Espírito Santo, em estudo recente que conduziu, Daniel Duque viu o nível de pobreza passar de 22,4% para 27,6% da população entre 2019 e 2021. Isso significa dizer que, de 1,1 milhão de pobres no Estado, 233 mil ingressaram nesse estrato social nos últimos dois anos e vivem com até R$ 425 mensais, conforme indicadores do Banco Mundial.
Mas há uma parcela em condição ainda mais vulnerável, a da extrema pobreza, que alcançou 9,6% dos moradores do Estado no ano passado. De 394 mil pessoas nesse contexto, sobrevivendo com uma renda de até R$ 146 por mês, 157 mil se afundaram na miséria no período da pandemia.
Assim, a faixa de renda de 37,5% da população capixaba varia de R$ 5 a R$ 15 por dia.
ENTRE OS CAPIXABAS
Com um olhar mais direcionado aos indicadores do Espírito Santo e analisando os dados do CadÚnico, o economista Eduardo Araújo aponta uma forte expansão da pobreza entre os capixabas, em alguns municípios superior a 50% no intervalo de dois anos, tais como Iúna, Ibiraçu, Piúma e Itapemirim.
O CadÚnico, cadastro voltado a pessoas de baixa renda para inclusão em programas sociais, também revelou para o economista cidades onde quase a metade da população é pobre. Em Apiacá, por exemplo, 43% foi identificada na pobreza extrema e, para piorar, não tinha acesso, até novembro, ao principal programa de transferência de renda naquele momento - o Bolsa Família.
Próximo dali, em Presidente Kennedy, a situação não se apresenta muito melhor. O município por onde circulam milhares de reais em royalties do petróleo tem 39% dos moradores também na extrema pobreza.
“Esse é um ponto importante de discussão. Um município com boa capacidade de arrecadação não é garantia de que vai conseguir exercitar boas políticas públicas para que as pessoas prosperem e saiam dessa condição”, ressalta Eduardo Araújo.
Nos municípios da Grande Vitória, aponta o economista, mais de um terço dos moradores também está na linha da pobreza. Na Capital, o aumento do grupo de pessoas em situação de vulnerabilidade foi de 21%, de 2019 para 2021.
Esses indicadores têm nome e endereço. Na casa da família de Leiliane Brito, na Fonte Grande, por exemplo, o poder aquisitivo diminuiu quando o marido perdeu o emprego. Foi um longo período sem ocupação formal e, quando voltou a trabalhar, a remuneração estava mais baixa.
Salário menor e custo de vida mais elevado, nem tudo a que a família tinha acesso, mesmo que de forma esporádica, continua cabendo no bolso. Ela já deixou de mandar o filho Ytallo para a escola por falta de fralda. Para Leiliane, entretanto, o mais difícil é negar ao pequeno as coisas de que gosta.
Leiliane Brito
Dona de casa
" Ele olha e me pede: ‘mamãe, biscoito’; ‘mamãe, iogurte’, mas o dinheiro é pouco, não dá para essas coisas"
SEM EMPREGO, FAMÍLIAS SOBREVIVEM COM DOAÇÕES
A pandemia também empurrou muitas pessoas para a informalidade e, com auxílios governamentais escassos, as famílias sobrevivem de doações de roupas, calçados e cestas básicas.
Na ocupação Vale da Conquista, na região de Terra Vermelha, o apoio aos moradores é resultado da mobilização de movimentos sociais e de igrejas.
Um registro dessa iniciativa foi captado pela reportagem de A Gazeta. Em uma tarde de outubro, o carro do pastor Enivaldo Justino e da cabeleireira Charliane Helena de Melo parou na rua de uma área próxima à associação comunitária. No porta-malas, caixas e sacolas carregadas de um pouco de esperança.
Ali mesmo, no meio da rua empoeirada, mulheres pegavam peças de roupas e calçados, crianças aguardavam por brinquedos. Também saíram dali pacotes de biscoito.
Com a filha de oito meses no colo, Rayani Monteiro procurava algo que servisse à família. Questionada sobre as dificuldades do dia a dia, a jovem reclamou da falta de emprego, mas agradeceu inúmeras vezes pelo fato de ter um ‘barraco’ para morar e de não passar fome porque recebe doações. “Se a situação fica mais difícil, a gente liga para o pastor para pedir ajuda”, conta.
Por lá, dificuldade também para cozinhar a comida que ganham. Com a elevação do preço do botijão de gás, tornam-se cada vez mais comuns situações como a da dona de casa Sérgia dos Santos, 40 anos, que passou a usar fogão a lenha.
Sérgia dos Santos
Dona de casa
"Quando não tem ninguém trabalhando em casa e acaba o gás, eu tenho que cozinhar na lenha, e se gente não encontra, fica mais difícil ainda"
AÇÃO SOLIDÁRIA
O alimento que chega às mesas das famílias por doações muitas vezes sai da Central de Abastecimento do Espírito Santo (Ceasa) onde, diariamente, agricultores entregam parte de sua produção para uma ação solidária organizada por funcionários.
Os produtos, então, são repassados a associações, entidades e grupos missionários que, após recolherem frutas, verduras e legumes, distribuem para famílias carentes.
Algumas pessoas também vão à Ceasa por conta própria, na expectativa de conseguir alimentos, mas a doação direta não é frequente.
Desempregada, Andressa Sarmento gostaria de ter prioridade nas doações, porém, a coleta junto aos produtores nem sempre é bem-sucedida. Mesmo assim, e por ter gêmeas recém-nascidas, vai constantemente ao local para tentar a sorte – e a comida.
Na mesma luta está Valdir Soares Silva. Aos 58 anos e vivendo de bicos, percorre os corredores da Ceasa com um carrinho de mão, sempre esperando a oportunidade para ganhar aquilo que o produtor não vai mais conseguir vender.
Para a dona de casa Lucimara Souza, a rotina também não tem sido fácil.
Lucimara Souza
Dona de casa
"Não é sempre que dá para ter um leite, um pão, um biscoito no café. A gente se vira como pode e com o que tem"
Ela é outra frequentadora da Ceasa em busca de doações e, quando não consegue, acaba revirando os latões de descarte de produtos em busca de frutas e verduras que ainda estejam boas para o consumo. O alimento que para alguns não serve é o que, para muitos, tem sido a única fonte de subsistência.
Pobreza no ES
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