Logo após o assassinato da médica Milena Gottardi, sua família encontrou, em meio aos seus documentos, uma carta registrada em cartório. Nela foram relatados suas angústias, as dificuldades em seu processo de separação e até o medo de ser morta. Milena fez ainda um pedido: se algo acontecesse com ela, que a guarda das filhas fosse entregue a seu irmão, Douglas Gottardi.
O documento foi entregue à polícia, que em outubro de 2017 confirmou, após realização de laudo grafotécnico, que a carta foi escrita e assinada pela médica. Ela foi confeccionada exatos cinco meses e nove dias antes do crime. O assassinato aconteceu em 14 de setembro daquele ano.
Milena deixou duas filhas que, à época do crime estavam com 9 anos e a outra com 1 ano e dez meses. A Justiça aceitou o seu pedido, expresso em sua carta, e a guarda das crianças foi entregue ao seu irmão.
Abaixo, veja vídeo com a jornalista da CBN Vitória, Patricia Vallim, lendo a carta deixada pela médica. O documento foi registrada no Tabelionato Castelo - 1º Ofício de Notas de Vitória.
O QUE DIZ O TEXTO DA CARTA
Ela começa a carta informando quem é, que é casada com Hilário, com quem tem duas filhas. E fala que está em processo de separação. Logo a seguir começa a descrever as dificuldades vividas com o então marido no dia a dia.
Relata que o ex-marido sempre “demonstrou um temperamento difícil”, que ele reagia com “agressividade em algumas situações” e que tinha “manias como de limpeza excessiva”, o que ela interpretava como sugestivo de “transtorno obsessivo compulsivo”, o que a deixava preocupada.
“Toda essa personalidade sempre me preocupou e me oprimiu porque nunca sabia como ele reagiria às situações do cotidiano”, relatou, acrescentando que a situação ficou mais grave a partir do momento em que Hilário começou a fazer uso mais frequente de álcool. “Ele era um etilista social (embora mesmo nos finais de semana sempre abusava da quantidade de álcool), o hábito se tornou diário”.
Assinala que ele sempre foi um bom pai, mas que com uma das filhas utilizava “palavras agressivas e castigos físicos”. Destaca que a relação com Hilário sempre foi de “posse”. “Ele sempre demonstrou muita obsessão à minha pessoa, mesmo antes do namoro”.
Segue informando que falhou nas suas tentativas de um acordo para dele se separar e que as conversas sempre partiam “para o lado das agressões”. “Falava que não sairia de casa, nem deixaria as meninas, que se um dia me separasse, ele declararia guerra, e se mataria”.
Na sequência faz um desabafo: "Me sinto uma refém dentro da minha própria casa. Está insuportável! Não quero brigar com ele, mas também não consigo ter uma conversa, um diálogo. Ele não permite isso".
Conta que pediu uma autorização judicial para sair de casa. “Não aguento essa situação, por isso pedi ao juiz a liberação para sair de casa com as meninas para me poupar e, principalmente, as minhas filhas de um ambiente hostil. No entanto, não sei qual será a reação dele”.
MEDO DE MORRER
Na sequência a médica Milena relata que seu medo era de que pudesse ser morta pelo ex-marido, mas que não o denunciava para protegê-lo.
Milena Gottardi
Trecho da carta que deixou
"Tenho medo que essa agressividade verbal se concretize em atitudes. Temo em ele tirar sua própria vida e, como vemos em muitos casos, tirar a minha vida também. Poderia ir à delegacia e relatar meus temores, mas não quero prejudicá-lo"
Temendo que algo acontecesse a elas, fez o pedido: “Venho através desta carta expor a minha vontade que, se acontecer algo de ruim comigo, por exemplo, se Hilário Antônio Fiorotti Frasson me matar e, pode ser que tente se matar também, eu desejo que minhas filhas fiquem sob a guarda do meu irmão Douglas Gottardi Tonini com a supervisão de minha mãe Zilda Maria Gottardi, porque assim ficarei em paz”.
Conclui a carta se despedindo das filhas. “O meu amor por vocês é infinito. Um dia vocês saberão que a mamãe tentou de todas as formas manter o casamento, mas não deu. E a separação foi a forma que eu encontrei de buscar a nossa paz e a nossa felicidade. Eu sempre estarei com vocês para protegê-las e amá-las”.
CRIME E JULGAMENTO
Seis pessoas foram apontadas como as responsáveis pelo assassinato da médica, dentre elas o ex-marido da vítima, Hilário Frasson, hoje um ex-policial civil. Todos vão ser julgados na próxima segunda-feira (23), no Fórum Criminal de Vitória, a partir das 9 horas. Confira:
O QUE DIZ O REPRESENTANTE DA FAMÍLIA
O advogado Renan Sales, que atua como assistente de acusação, representando a família da vítima, assinala que a carta deixada pela médica reflete um pedido de socorro. “Um pedido de socorro de alguém que, covardemente, foi vítima de violência pelo marido, com quem conviveu por anos”.
Destaca ainda a fragilidade de alguém que não noticiou a situação que vivia. “A carta demonstra a fragilidade de alguém que, seja por medo, seja pela preocupação com as filhas, nunca teve coragem de noticiar as agressões que sofria”.
Por último, o advogado observa que ela simboliza um recado. “Um recado para todas as mulheres, também vítimas de violência doméstica, para que noticiem tais práticas, de modo que condutas espúrias como as retratadas no processo nunca fiquem impunes”, assinala Sales.
MPES: “PROVA ROBUSTA E COERENTE PARA CONDENAÇÃO”
A expectativa do Ministério Público do Espírito Santo (MPES) é de que será feita Justiça no júri popular dos seis acusados pelo assassinato da médica. “A sociedade de Vitória foi muito afetada com a morte de uma pessoa tão boa. Neste julgamento vai ser demonstrado a concretização do mal que foi praticado”, assinala o promotor Leonardo Augusto de Andrade Cezar dos Santos, um dos três que acompanham o caso.
Ele recorda que Milena era pediatra oncologista e que, com ela, morreu a esperança de várias famílias de crianças com câncer por ela tratadas. “É um impacto para além da família da vítima. A maldade que consta nos autos é de desacreditar qualquer pessoa, pelo menosprezo com a vida humana. A prova contra os réus está robusta e coerente para uma condenação e o MPES está confiante”, assinala.
A DEFESA DOS RÉUS
O advogado Leonardo Gagno, que realiza a defesa de Hilário Frasson, informa que apesar das graves acusações e da complexidade do processo está confiante que a Justiça será realizada. “Durante o júri, a defesa terá a oportunidade de apresentar provas importantes, aclarar os fatos e demonstrar que a imagem do Hilário foi distorcida pela acusação.”
Leonardo da Rocha de Souza, que faz as defesas de Dionathas e Bruno, informou que fará uma última visita aos réus na próxima sexta-feira (20). “Será para uma conversa e orientação aos dois”, explicou.
Rocha relata que, em relação a Bruno, a expectativa será a sua absolvição. “Será o nosso grande desafio. Ele está muito angustiado e espero provar a sua inocência e que a Justiça seja feita em relação a ele”, destacou.
Já Dionathas, réu confesso, quer prestar os esclarecimentos. “Espero que ele tenha tranquilidade para esclarecer todos os fatos”, pontuou Rocha.
Alexandre Lyra Trancoso, que realiza a defesa de Valcir, assinala que ele não participou do crime. “Queremos reverter a situação. Entendemos que ele não atuou como intermediário do crime”, assinalou.
Os advogados Davi Pascoal Miranda e David Marlon Oliveira Passos, que fazem as defesas de Esperidião e Hermenegildo, respectivamente, não foram localizados. Assim que a reportagem conseguir o contato, esta matéria será atualizada com as informações deles.
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