A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que derrubou a tese do marco temporal, regra que delimitava a demarcação de terras indígenas até a data da promulgação da Constituição Federal em 1988, deve dar mais segurança às etnias tupiniquim e guarani residentes no Espírito Santo e que travam batalhas históricas pela posse das áreas onde vivem.
Por 9 votos a 2, a tese foi derrubada na última quinta-feira (21) pelo STF. Segundo lideranças indígenas, 65 hectares de terra estão em disputa no Estado desde a década de 1960 com base no marco temporal, e a expectativa é que, agora, possa haver uma resolução definitiva.
Além do território em disputa, o coordenador da articulação dos povos indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo, Paulo Tupiniquim, explica que, mesmo com as terras dos povos originários no Espírito Santo já demarcadas e devidamente homologadas, a tese do marco temporal fazia com que as áreas pudessem ser submetidas à revisão. "Isso nos preocupava muito. A maior parte do nosso território foi homologada após 1988 (ano da promulgação da Constituição Federal)", ressalta.
Para o vereador do município de Aracruz Vilson Jaguareté (PT), que é de origem indígena, a queda do marco temporal no Supremo dá aos povos originários uma sensação de justiça, mas permanece uma apreensão sobre o futuro. "No nosso caso, a preocupação é que ainda existe uma área que não foi expropriada e estão reivindicando, exatamente, essa tese do marco temporal", comenta Vilson sobre um território em disputa judicial.
Ele também manifesta medo com as possíveis indenizações. "Isso é um perigo e inviabiliza as demarcações", avalia. A possibilidade de indenizar proprietários no momento da desapropriação foi proposta pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF, e deve ser votada no Supremo nesta semana.
A mobilização de indígenas em todo país pelo fim da tese também se tornou um fato importante para os povos no Estado. A derrubada é vista por eles como uma vitória. "Nós estávamos aqui, aflitos, mobilizados, para fazer frente, somando a esses protestos que estavam no Brasil afora. Foi muito alívio e uma sensação de justiça, porque o marco temporal foi uma tese inconstitucional", ressalta Vilson.
A doutoranda em Antropologia Social Aline Moschen aponta que a política de demarcação fez com que esses povos vivessem em territórios reduzidos. "Essa política circunda e limita a possibilidade de essas pessoas ocuparem a terra. São populações que estão ali no limite com as indústrias."
O cacique da aldeia Nova Esperança Ka'agwy Porã, Marcelo Guarani, (Werá Djekupé, nome guarani) classifica o marco temporal como uma jogada política contra os indígenas. "Tentavam de alguma forma tirar nossos direitos, sendo que nós somos nativos nesse território Brasil e estavam tentando limitar nossa existência", critica.
"Existem outras leis que estão querendo aplicar, mas a gente vai continuar lutando, porque nós somos os guardiões da floresta. Nossa luta é proteger, cuidar e viver. Nós temos a nossa conexão espiritual com a floresta e com a terra. A riqueza dos indígenas é a floresta, a água e o viver, o entendimento que a gente tem com a natureza. A gente vai proteger isso", assegura o cacique Marcelo.
Depois da demarcação, em 2010, tupiniquins e guaranis retomaram trabalhos de preservação e reflorestamento, como conta Marcelo. "A gente retomou, então, a área que estava devastada. A floresta tinha dado espaço a outros tipos de monoculturas. Aí, quando foram devolvidas aos indígenas, a gente teve o trabalho de recuperação", lembra. Em 2021, segundo o cacique, as aldeias aceitaram ajuda de uma empresa para prosseguir com o reflorestamento.
Atualmente, a vegetação já conta com árvores de mais de três metros de altura, muitas delas frutíferas. "Já está tendo muitos animais silvestres, pássaros. Os animais, sabendo que tem muita fruta, estão aparecendo. Está uma maravilha", celebra Marcelo. Para ele, o reflorestamento influencia toda a vida dos moradores da aldeia.
"O reflorestamento traz vida de volta. Traz água, sombra, traz um solo melhor. Com ele, a gente vai preservando também a nossa língua, nossa história, nossos cânticos, nossas crenças no criador", afirma o cacique. A população não indígena também pode participar, apadrinhando uma árvore.
Apesar de a Suprema Corte ter derrubado a tese jurídica, o marco temporal também está na pauta do Senado Federal para ser votado. O Projeto de Lei (PL) 2903/2023 foi aprovado na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária no dia 23 de agosto e, atualmente, é analisado pela Comissão de Constituição e Justiça. A decisão do STF, no entanto, dificulta a implementação, caso o PL seja aprovado, já que entidades defensoras dos povos indígenas já anunciaram que entrarão com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin).
Segundo a tese jurídica do marco temporal, o direito à demarcação de terras para as comunidades indígenas só é reconhecido para aquelas que estivessem em sua posse em 5 de outubro de 1988, data em que a Constituição Federal foi promulgada. Também estão incluídas nesse direito as terras que, naquela época, estavam sob litígio comprovado, seja por conflitos físicos, seja por processos judiciais em andamento.
Aline Moschen destaca que o reconhecimento dos direitos dos indígenas no Brasil é uma conquista recente, validada em lei com a atual Constituição Federal. "Se os direitos indígenas são muito recentes, a titulação das terras é mais recente ainda. Depois da Constituição de 1988, ainda se leva um bom tempo para que homologação das terras indígenas saia, para que a titularidade seja reconhecida", explica.
A pesquisadora também esclarece como o marco temporal atinge os povos das aldeias capixabas. "Todo o processo burocrático de reconhecimento dessa titularidade não necessariamente coincide com o tempo em que aquele povo ocupa aquele espaço. É como se fosse a imposição de uma lógica tardia sobre povos que já ocupavam esses espaços muito antes desses mecanismos legais existirem", ressalta. "A tese do marco temporal fragiliza os direitos indígenas como um todo", finaliza Aline Moschen.
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