Kiusam de Oliveira já integrou a lista dos 10 escritores mais importantes para educação e formação de crianças, em direitos humanos pela ONU
Kiusam de Oliveira já integrou a lista dos 10 escritores mais importantes para educação e formação de crianças, em direitos humanos pela ONU
Kiusam de Oliveira

'Racismo faz a criança negra acreditar que vale menos'

Kiusam, que foi professora da Ufes até 2019, já integrou lista dos 10 escritores mais importantes para educação e formação de crianças, em direitos humanos pela ONU; confira a entrevista

Kiusam de Oliveira já integrou a lista dos 10 escritores mais importantes para educação e formação de crianças, em direitos humanos pela ONU
Vitória
Publicado em 18/11/2023 às 15h06

As pequenas violências diárias contra a população de pele negra acabam tendo efeitos devastadores no longo prazo. O racismo é internalizado ainda na infância e deixa marcas que podem se estender pelo resto da vida.

A avaliação é da professora Kiusam de Oliveira, que ministrou a disciplina Educação das Relações Étnico-Raciais na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) até 2019 e, atualmente, roda o Brasil atuando como palestrante e formadora de profissionais de educação nas temáticas educação, relações étnico-raciais e de gênero, com foco em uma educação antirracista.

Kiusam também é autora de obras infantis sobre questões étnico-raciais e diversidade de gênero. Suas obras já a levaram a integrar a lista dos 10 escritores mais importantes para educação e formação de crianças, em direitos humanos pela Organização das Nações Unidas (ONU). Em entrevista exclusiva à reportagem de A Gazeta, ela compartilhou sua visão sobre racismo e formas de combatê-lo. Confira.

Quais são os tipos de racismo mais predominantes na atualidade? De que forma se manifestam?

Por exemplo, racismo institucional é um dos que mais ouvimos falar, juntamente com racismo estrutural. Racismo individual, racismo internalizado, racismo recreativo, racismo ambiental, racismo religioso, racismo cultural. São os principais.

O que seria o racismo estrutural?

É a base dos países racistas, dos países ocidentais. No caso do Brasil, todo o progresso foi construído em cima do racismo estrutural, que é aquele que aprendemos na nossa base da vida, desde a infância. Ouvimos, enquanto crianças, adultos do nosso entorno, dizendo que pessoas negras valem menos, que são menos inteligentes, que não tem alma… Nesse sentido, racismo estrutural é aquele que está na base de todo o processo pedagógico da nossa sociedade, de olhar para negros, indígenas, e entendermos como pessoas que valem menos por conta da nossa cor da pele. E esse racismo acaba sendo internalizado.

De que forma?

Quando pessoas negras ouvem e vivenciam experiências racistas constantemente, acabam internalizando isso. Quando ouvimos, constantemente, que valemos menos porque somos negros, acabamos internalizando aquilo que o algoz diz. Na minha experiência de quase 40 anos em sala de aula, vi crianças com 4 anos dizendo: ‘não quero ser preta’. Do jeitinho delas, mas dizendo que não querem ser pretas. ‘Porque meus coleguinhas da sala de aula, não querem brincar comigo, dizem que meu cabelo é duro, que meu cabelo é ruim, que o pai e a mãe dela disseram que não é para brincar com pessoas pretas’. E aí começa a autoperseguição, o auto-ódio que a pessoa negra desenvolve por si mesma, isso começa lá na primeira infância, então é um racismo que é internalizado. De tanto ouvirmos uma determinada coisa, sem que tenhamos uma estrutura emocional para suportar aquilo, aquela carga negativa que estão jogando para cima de nós, nós sucumbimos a isso e passamos a acreditar nisso. É o que acontece com a criança negra, ela passa a acreditar que vale menos por conta da cor da pele, por conta do cabelo dela.

“Piadinhas” sobre a cor também têm impacto nisso, certo?

É o racismo recreativo, e o racismo recreativo também faz parte do racismo estrutural porque, como é que se dá a estruturação, a naturalização do racismo no nosso país? Através das piadinhas. As piadas, os ditados e os provérbios. É aquela coisa de: “Negro quando não faz na entrada faz uma saída.” “Hoje é dia de branco”, em relação à segunda-feira, dia de trabalho, como se negro não trabalhasse. “Hoje a coisa tá (sic) preta” para dizer que a coisa não tá legal. São essas piadinhas, os apelidos… O racismo recreativo vem envolvido de piadas, gracinhas, apelidos, em relação aos corpos negros. E os homens são os grandes atingidos pelo racismo recreativo. Percebemos que, logo no ensino fundamental, os meninos negros passam a não ter mais o uso do nome próprio nos espaços escolares. Eles passam rapidamente a ser chamados e conhecidos por apelidos. Eles viram o Pelé, viram o Negão, viram o Buiú, e assim por diante, envolvidos de piadinhas. Eles viram esse corpo que é alvo de piadas, e quando eles se chateiam, vão sempre dizer que “é brincadeira”. Mas o contrário não é verdadeiro, o contrário não acontece da mesma forma. O Horácio Nogueira falava do preconceito de marca. Esse preconceito de marca é real no Brasil. Quanto mais escura é a pele da pessoa negra, mais alvo será de todas essas categorias de racismo. E, juntamente com o racismo recreativo, existe o racismo religioso. O racismo religioso também vem, muitas vezes, envolvido no racismo recreativo, na piadinha. Dizem: “Olha lá, a neguinha da macumba”. Esse “neguinha da macumba” é um fenômeno muito comum nas escolas. E percebo que em diversos estados essa forma de se referir a uma menina que frequenta uma religião de matriz africana é recorrente, vem envolvido em piada, mas, no fundo, estamos falando do racismo religioso. Olhe o quanto as religiões de matriz africana são perseguidas no Brasil, né? (sic) E elas são perseguidas no Brasil, primeiro por uma falta de conhecimento total que envolve o pensamento colonial. E não podemos esquecer, que, no tempo de hoje, vivemos a colonialidade na contemporaneidade. E o que são? São práticas da época colonial vivas no nosso tempo, na contemporaneidade. Da mesma forma em que em 1600, em 1700, o candomblé, as religiões de matriz africana, as pessoas pertencentes às religiões de matriz africana eram perseguidas… Ou como nos séculos anteriores ao XXI,  a ligação com o candomblé, ou mesmo a capoeira ligada ao candomblé, foi motivo inclusive de Código Penal, de prisões.

É uma herança do período de escravidão, então?

Esse preconceito em relação às religiões de matriz africana surgiu iniciado pelo olhar do colonizador, o homem português que sequestrou, capturou negros, africanos, mulheres e homens negros, crianças africanas no período da escravidão, é um olhar que se mantém até hoje. As religiões de matriz africana são extremamente olhadas de uma forma pejorativa. As pessoas não entendem, mas também não estão a fim de entender, e assim não conseguimos falar e divulgar o quanto que há de libertador nas religiões de matriz africana, porque trazem um jeito de ser muito próprio e específico de África, coisa que com a aculturação, nós normalmente perdemos vivendo no Brasil, por conta do racismo e da estética branca, que é imposta como positiva e ideal, inclusive nos corpos negros, que, desde a infância, percebem esse jeito de ser que é colocado para nós como correto. É onde, desde cedo, as pessoas vão alisar os cabelos das crianças porque é o estar arrumadinho, é o estar arrumado, é o estar limpinho, ou vão prender muito apertado para deixar o cabelo baixo, não pode ter volume. Isso tudo está ligado a essa corporeidade imposta como correta, como a bonita. Enfim. Tem a ver com todas essas categorias de racismo, inclusive o religioso, porque o racismo religioso vem para impedir a altivez, e quem consegue entender um pouquinho da filosofia que envolvem, que são basilares nas religiões de matriz africana, vai entender o quanto de altivez que as pessoas que frequentam esses espaços negros desenvolvem. Então, ela precisa ser sufocada. Precisam tacar fogo, depredar, acabar com os terreiros, destruir o sagrado de um povo que apesar de sofrer todas as consequências de todas as categorias do racismo estão aí, resistindo.

Você fala em racismo. No que isso difere da injúria racial?

A injúria racial, ligada ao Código Penal Brasileiro, consiste em ofender a honra de alguém, valendo das características dela, cor, raça, origem, etnia, religião, então, vai ofender especificamente aquela pessoa. Foi o que aconteceu com o jogador Vini. Está classificado como injúria racial, porque está diretamente ligado à cor da pele daquele jogador, à etnia daquele jogador, à religião daquele jogador, à origem étnico-racial dele. No Brasil, a injúria racial está no artigo 140, no parágrafo terceiro do Código Penal. O nosso ministro Sílvio Almeida equiparou a injúria racial ao crime de racismo, a partir da lei 14.532, de 2023 e aumentou a pena, enquanto o racismo é previsto pela lei 7.716/89 e atinge uma coletividade de pessoas… Quando vemos aquelas mulheres, por exemplo, atacando entregadores de comida, dizendo que “todos vocês deveriam voltar para jaula, que todos vocês…” É o crime de racismo, que atinge a integralidade de uma raça, de um grupo inteiro. E é importante sabermos que tanto a injúria racial quanto o racismo são crimes, e são crimes passíveis de prisão, são crimes inafiançáveis. E, para mim, algo muito importante em que eu tenho trabalhado é no fortalecimento das identidades das crianças negras, porque as crianças negras precisam estar ligadas em tudo isso.

Como isso é feito?

Eu fiquei quatro dias em Porto Alegre participando da Feira do Livro, encontrando com crianças, indo para as escolas, e eu peguei uma turma grande de jovens de 13, 14 anos, e cheguei diretamente falando sobre como racismo é crime, injúria racial é crime, como ele disseram, e como aqueles jovens devem fazer para não deixar isso no silêncio, no esquecimento. Porque há formas recorrer, há formas de buscar a justiça para tudo isso que vivenciamos, no espaço escolar inclusive. Eu jamais direi que as crianças são racistas. Jamais direi e ninguém nunca me ouviu falar disso, porque a minha defesa é o que: elas são capazes de reproduzir a prática racista que elas vêem pais, mães, irmãos mais velhos, enfim, o entorno dela realizando. A criança reproduz. Agora, se ela não tiver o ciclo da violência racista cortado, ela poderá se tornar uma pessoa racista aos quinze, dezesseis anos, e aí vai sim dizer "não, porque é pobre", "porque é preto". Mas quando a criança está no processo de formação, há formas de interromper esse ciclo de violência racista.

135 registros

de racismo no ES, em 2023, até 13/11

Quais são as estratégias para interromper esse ciclo?

Para mim, é o seguinte. Há alguns anos, eu tenho muita dificuldade em tratar desses assuntos específicos com os adultos. Ninguém me vê em polêmica, em questões de briga de braço, de força, nas redes sociais, com pessoas, principalmente pessoas que eu não conheço, que chegam invadindo minha paz porque é uma página antirracista. Então eu simplesmente deleto, bloqueio, não entro em discussão. O meu campo de operação de práticas antirracista é com profissionais da educação, desde 1992, quando ministrei o primeiro curso de formação antirracista, e daí eu não parei. Eu tenho trabalhado nessa perspectiva incansavelmente. Eu trabalho focando no profissional de educação, como uma forma de inspiração para pensar, repensar suas falas, suas atitudes. Um exemplo do que elas ficam relatando para mim, constantemente, até hoje: “Professora, um aluno veio para mim e falou que o coleguinha tava (sic) xingando ele de ‘neguinho’.” Daí eu pergunto: “E o que a senhora fez?” “Ah, professora, eu falei para ele: ‘E você não é neguinho mesmo? Por que você não se assume?’” E (a professora) olha para mim e pergunta: “Por que a criança negra não se assume, não gosta de ser negra? A própria criança negra é racista.” Essa é uma ideia que faz parte do imaginário da população branca brasileira: “a própria criança negra é racista”. É mais perverso do que quando dizem que nós negros (adultos) somos racistas. Ora, se eu não considero as crianças brancas que reproduzem as práticas racistas como racistas, como é que são capazes de afirmar – impensadamente, talvez, ou pensadamente – da forma racista como estão acostumados a pensar, que a própria criança negra é racista contra ela mesma? Primeiro que não dá conta do conceito. Jamais uma pessoa negra será capaz de ser racista. Começa daí. E, então, vemos tanto o que está faltando há décadas quanto ainda é necessário continuar a falar sobre isso, porque a pessoa só ouve e só entende o que ela quer. A pessoa que é conflituosa, a pessoa que estigmatiza, a pessoa que discrimina, só consegue entender o que ela quer entender, o que é interessante para ela se manter na sua própria zona de conforto, na sua zona de privilégio, eu poderia dizer, inclusive. As crianças são reflexos. Se ainda vivemos situações de racismo, é porque os adultos continuam na chave de excluir pessoas por conta da cor da pele, por conta da sua orientação sexual, por conta da sua situação econômica. Quando é que os adultos vão conseguir virar a chave e transformar a realidade?

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