Mulheres se mudam para comunidades conflagradas para obter proteção de traficantes
Mulheres se mudam para comunidades conflagradas para obter proteção de traficantes. Crédito: Ilustração/Larissa Pereira

"O tráfico deu uma surra, botou ele pra correr", diz mulher agredida pelo ex

Áreas dominadas por traficantes são vistas por algumas vítimas de violência doméstica como porto seguro por conta das 'leis do tráfico'

Tempo de leitura: 6min
Publicado em 06/12/2023 às 07h59

Carolina teve uma faca pressionada contra seu pescoço em novembro deste ano. Não era a primeira vez que o marido era violento no relacionamento. Mas, naquele dia, o medo ficou mais forte e ela decidiu chamar a polícia.

Mesmo morando em um bairro sem domínio do tráfico na Grande Vitória, ela conta que a viatura demorou para fazer o atendimento. Chegou após a fuga do marido, que deixou para trás uma ameaça de morte.

Desesperada, decidiu ir embora enquanto ainda podia. Como não tinha dinheiro, Carolina contou com os vizinhos, que pagaram um frete para que ela se mudasse dali.

Sem sentir segurança de que o Estado daria a proteção que ela precisava, alugou uma casa em uma comunidade dominada pelo tráfico de drogas. No dia seguinte à mudança, o companheiro descobriu onde ela estava e apareceu no bairro à noite com um galão de gasolina para colocar fogo na casa — com ela dentro.

Carolina

Vítima de violência doméstica

"Quando ele chegou, o povo do tráfico deu uma surra nele, botou ele pra correr. Agora eu estou segura."

A história de Carolina é uma entre tantas ouvidas por A Gazeta de mulheres vítimas de violência doméstica que, sem conseguir acesso ao aparato de Justiça e repressão do Estado, veem na criminalidade o último recurso para se manterem vivas.

Este é o segundo conteúdo de uma série de reportagens sobre o tema, que revelam camadas de violência: as agressões e ameaças, o desamparo pelas políticas públicas, a proteção que só vem do poder paralelo. Nenhuma dessas mulheres será identificada, para protegê-las de eventuais retaliações. Os nomes usados nos textos serão fictícios. Idades e bairros também serão mantidos sob sigilo.

As leis do tráfico

Em vários pontos da Grande Vitória, as facções criminosas são conhecidas por manterem os moradores sob rédea curta. Nas áreas dominadas por traficantes, é proibido praticar roubos e furtos, por exemplo. Além disso, sob o argumento de “proteção à população”, toda atividade que possa promover a chegada inesperada e indesejada de forças de segurança, seja das guardas municipais, seja da Polícia Militar, também é malvista.

É o caso das violências doméstica e de gênero. Mulheres que são agredidas pelos companheiros nessas comunidades têm medo de ligar para a polícia e pedir socorro, porque podem ser consideradas “caguetes”, ou dedos-duros.

Por outro lado, diante de dificuldades em escapar do agressor, bairros conflagrados são vistos como porto seguro por essas mulheres.

É o caso de Bárbara, cujo ex-marido já foi preso duas vezes por agredi-la, em 2022 e 2023. Contudo, a prisão nunca dura muito e, sempre que sai da cadeia, ele volta para casa da família, reiniciando um ciclo de violência que parece nunca ter fim.

Em um domingo à noite, em novembro deste ano, ela foi agredida mais uma vez pelo ex-marido. Tentou acionar a Guarda Municipal, pedindo uma viatura porque tinha a intenção de representar novamente contra ele.

“Liguei para a Guarda, fiz a ocorrência, pedi uma viatura e fiquei lá aguardando. Não apareceu. Depois de meia hora esperando, liguei de novo e não consegui mais falar, ninguém atendeu. Na terceira vez, eles falaram que não estavam conseguindo encontrar o endereço. Aí, meu ex-marido fugiu”, relata.

Aproveitando a ausência do agressor, Bárbara colocou suas duas crianças pequenas em um carro, encheu o porta-malas com o essencial e saiu de casa. “Peguei o fogão, a botija e uns lençóis de cama e vim para cá”, lembra.

Deixar a casa onde moram é, muitas vezes, a única alternativa para se afastar da violência doméstica
Deixar a casa onde moram é, muitas vezes, a única alternativa para mulheres se afastarem da violência doméstica. Crédito: Ilustração/Larissa Pereira

O lugar a que Bárbara se refere é um condomínio dominado pelo tráfico de drogas, onde havia combinado de alugar um apartamento para se proteger. Ainda nem tinha começado a pagar pelo local, pois esperava ter mais tempo para se organizar financeiramente antes de sair de casa. Mas precisou antecipar os planos para se afastar da violência.

“Eu me sinto mais segura, porque eu tô dentro do condomínio. Mas segura de verdade eu não sinto mais em lugar nenhum”, confessa.

Questionada se morar em um condomínio dominado por traficantes não a amedrontava, ela responde: “Tráfico tem em qualquer lugar”.

Neste ano, o ex-marido de Bárbara chegou a ficar detido durante 15 dias, depois de uma denúncia feita por ela. Mas ele retornou, dizendo que a casa era dele. Sem renda fixa, com filhos pequenos e sem ter para onde ir, eles voltaram a morar juntos.

Bárbara

Vítima de violência doméstica

"Ele mesmo falava na minha cara que não dava em nada (fazer a denúncia contra ele), que o que ele tivesse que fazer comigo ele iria fazer, que ninguém teria como me ajudar"

Vulnerabilidade

Os casos narrados pelas duas mulheres são similares ao de tantas outras que procuram a Defensoria Pública, como informa a coordenadora de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres, Maria Gabriela Agapito.

“Quanto mais vulnerável a mulher for, mais suscetível à violência doméstica e de gênero ela está, e mais difícil o acesso dela aos serviços e a políticas públicas”, afirma.

Maria Gabriela enfatiza que, quando mulheres estão inseridas em áreas dominadas pelo tráfico de drogas, pelo conflito ou por milícias, os órgãos de Justiça e de repressão falham em atendê-la no contexto da violência doméstica.

Ela aponta que, diante desse cenário, as ferramentas que o poder público dispõe atualmente para proteger essas mulheres — como medidas protetivas, botão do pânico, visitas tranquilizadoras — falham em atender à necessidade específica delas.

“Essas mulheres estão mais desprotegidas. E a gente tem que trabalhar dando atenção a essa vulnerabilidade. Temos que ter políticas públicas específicas que pensem em situações alternativas para proteção delas”, diz.

A defensora sugere algumas: “É preciso pensar em um programa de transferência de renda, um abrigamento provisório. Até o Judiciário, na hora de olhar a medida protetiva, deve ter olhar sensível à situação dessas mulheres. Não é qualquer tipo de medida (protetiva) padrão que vai atender essa mulher. Essa mulher deve ser escutada e, muitas vezes, dentro de um processo, ela não é ouvida como deveria ser.”

MP e governo do ES dizem desconhecer problemas relatados

O secretário estadual da Segurança Pública, Coronel Alexandre Ramalho, afirma que o órgão não tem conhecimento de situações em que a polícia não teria conseguido chegar em uma mulher que pediu socorro por conta do bairro em que ela mora. Mas reconhece que pode, sim, haver dificuldades em algumas circunstâncias.

Coronel Alexandre Ramalho

Secretário estadual da Segurança Pública

"Na madrugada, em determinado horário, talvez uma guarnição da PM tenha dificuldade de chegar. Mas a gente usa reforço, pede à família para descer (o morro)"

Uma guarnição é composta, geralmente, de uma viatura e dois policiais militares. Segundo o secretário, em áreas conflagradas, é preciso mais guarnições para garantir a segurança dos policiais.

“A gente toma algumas precauções, mas, com o devido reforço, a gente acessa. Não tem demanda aberta”, afirma.

A promotora de Justiça e coordenadora do Núcleo de Enfrentamento às Violências de Gênero em Defesa dos Direitos das Mulheres (Nevid) do Ministério Público do Espírito Santo, Cristiana Esteves Soares, também afirma que o órgão não tem nenhum registro de falha das forças de segurança em socorrer mulheres em situação de violência no Estado.

“Não recebemos informações que a polícia não vai ao local para realizar o atendimento que é obrigatório assim que é acionada, ainda mais se tratando de um crime grave e que pode virar um feminicídio”, diz a promotora.

Ela considera grave que mulheres estejam abrindo mão da Patrulha Maria da Penha, que faz visitas tranquilizadoras, por medo de serem repreendidas pelos criminosos. Mas ressalta que é preciso que essas informações sejam reportadas de maneira oficial para que os órgãos responsáveis possam tomar alguma atitude.

“É fundamental também que as mulheres tenham conhecimento que, para além do atendimento pela PM numa situação de flagrante delito, também tem uma rede multidisciplinar que pode apoiá-la e protegê-la”, aponta.

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