A pandemia do coronavírus, e suas consequências políticas e econômicas, trouxeram uma sensação de incerteza para a população. Bombardeado por informações de todos os lados, o público percebeu a necessidade de diferenciar os fatos dos boatos: no Brasil e no mundo, a procura por conteúdo de veículos de comunicação bateu recordes.
Seja no celular, na TV, no rádio ou no impresso, para o jornalista Marcelo Rech, presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), isso não está relacionado à tecnologia escolhida, e sim à confiabilidade que o jornalismo possui entre a sociedade. “Em situações de crise e emergência, as populações correm para quem produz informação de qualidade, assentada sobre credibilidade.”
Com 41 anos de carreira, Rech defende que o exercício da profissão está em seu propósito, independente de qual seja seu formato. “O jornalismo tem a missão de fazer a sociedade avançar por meio da difusão da verdade e da pluralidade de ideias. O resto é técnica e tecnologia (...) os jornais não estão no ramo da impressão de papel. Estamos no ramo da confiança.”
O jornalista, que também é vice-presidente Editorial e Institucional do Grupo RBS, do Rio Grande do Sul, será o palestrante da aula inaugural do 23º Curso de Residência em Jornalismo da Rede Gazeta na próxima segunda (21), às 16h, com transmissão ao vivo em A Gazeta.
Em conversa com a redação, Rech antecipa alguns assuntos, como as mudanças no jornalismo e seu papel contra a desinformação, e defende a responsabilização das grandes plataformas digitais para fortalecimento do jornalismo profissional. Confira a entrevista:
Quando reeleito na ANJ, no mês passado, o senhor disse que são tempos decisivos para o jornalismo no Brasil: as transformações digitais, crises econômica e política, pandemia e ataques à imprensa. Como os veículos de comunicação podem seguir fortes nesse momento?
Paradoxalmente, as transformações profundas que ocorreram na comunicação digital revitalizaram o papel do jornalismo. Os efeitos colaterais das redes, como a desinformação, trouxeram o jornalismo – e com ele a precisão, a credibilidade e a pluralidade – para a cesta básica de necessidades das sociedades democráticas. E jornalismo profissional, gerado com base em técnica, valores e práticas éticas, é o produto central dos veículos de comunicação. Ou seja, estamos produzindo um bem escasso e cada vez mais necessário, mas ainda precisamos tornar isso mais claro para a sociedade, que tem dificuldade em distinguir conteúdos produzidos por profissionais daqueles gerados para ativismos de diferentes naturezas.
Marcelo Rech
Presidente da ANJ
"Estamos produzindo um bem escasso e cada vez mais necessário, mas ainda precisamos tornar isso mais claro para a sociedade"
Podemos dizer que um grande inimigo da sociedade hoje é a desinformação. O que o jornalismo deve fazer para combater esse problema, tanto em conteúdo quanto em alcance?
Já há algum tempo o papel central do jornalismo é o de certificador da realidade. Apurar, verificar, checar, confrontar versões é a essência básica da atividade jornalística. Temos de desmontar as falácias que circulam pelas redes sem dó ou descanso. Esse nosso papel de certificadores precisa, porém, ser financiado de alguma forma – seja pelos usuários, pela publicidade ou por quem difunde desinformação. Jornalismo é um bem de primeira necessidade para as sociedades mas sua produção exige uma série de custos. Conteúdos financiados por governos ou outras organizações geralmente estão mais no campo da propaganda e das relações públicas do que do jornalismo.
Na sua visão, houve demora dos jornais e do jornalismo, de forma geral, em perceber a dimensão da gravidade das fake news?
A desinformação ocorre desde a Antiguidade. Era e sempre foi instrumento de guerras, para confundir inimigos e populações, por exemplo. A escala industrial e orquestrada das fake news é um fenômeno novo, perverso, que em um primeiro momento pegou ao mundo, e ao jornalismo, de surpresa – pelo menos por sua extensão e sofisticação. O uso industrial da desinformação para atingir fins políticos e geopolíticos veio acompanhado de ondas de descrédito dirigidas à imprensa – a chamada “mídia”.
Para que a desinformação brote, ela precisa de um solo fertilizado pela descrença, e a imprensa se tornou um obstáculo. Ela se põe entre o desinformador e o público e, por isso, precisa ser descreditada ou eliminada. Nós, portanto, estamos entre os alvos mais visados pela desinformação, e também demoramos a perceber isso.
Durante a fase mais crítica da pandemia, a busca por notícias e conteúdos da mídia profissional registrou aumento tanto no Brasil como no exterior. Estamos diante de uma oportunidade de "reconquista" dos leitores?
Houve, de fato, uma grande avenida que se abriu diante dos veículos. Em situações de crise e emergência, as populações correm para quem produz informação de qualidade, assentada sobre credibilidade, o que inclui fontes confiáveis. No entanto, com o passar do tempo a imprensa começou a ser atacada também por ativistas políticos, como se ela tivesse algum interesse em que as pessoas permanecessem em casa e houvesse restrições de atividades.
Muitos não se deram conta de que as receitas das empresas de comunicação caíram vertiginosamente em todo o mundo, mas nossa responsabilidade em ouvir fontes confiáveis e fornecer orientações técnicas, além de verificar versões e desmanchar factoides, vem em primeiro lugar. Não abrimos mão dos nossos princípios de informar corretamente, com equilíbrio e distanciamento, porque essa é a nossa natureza. Ao final, toda a sociedade, inclusive os que atacam a imprensa, acabam saindo beneficiados por esse compromisso.
Outra questão que vem ganhando força é a remuneração de sites e jornais pelo uso de seus conteúdos por plataformas digitais. Como essa mudança pode impactar o jornalismo sério?
Esse é um tema que começa a ganhar também atenção na América Latina e Brasil, que estão um tanto atrasados em relação ao que ocorre na Europa e na Austrália. Mas não se tratam apenas de direitos autorais sobre a produção de conteúdo, ainda que as plataformas se beneficiem de uma forma ampla pela informação precisa e a credibilidade das marcas jornalísticas.
A analogia que faço é que as plataformas produzem um conteúdo desejado pelo púbico e que gera receitas bilionárias, mas, para isso, acabam deixando também uma enorme poluição social. No fundo, os dejetos das redes contaminam a água das sociedades sem qualquer controle ou regulação. Como muito corretamente não podemos aceitar ameaças à liberdade de expressão ou controles oficiais, os únicos habilitados a limpar esse ecossistema poluído são os produtores de jornalismo profissional. Essa atividade de saneamento informativo, porém, tem um custo e parte dele deve ser pago por quem gera a poluição.
Quando isso ficar mais claro para as sociedades, incluindo parlamentos e governos preocupados com a democracia e a harmonia social, começará a se reverter a onda desinformativa por meio do fortalecimento do jornalismo profissional.
Ao longo da história, muita coisa tem mudado no jornalismo, principalmente com a revolução tecnológica. Para o senhor, quais as principais mudanças que afetam a imprensa hoje?
Dois fatores são especialmente sensíveis e inevitáveis, mas não necessariamente negativos para a imprensa: a desintermediação e a fragmentação. No primeiro caso, uma fonte passou a poder se comunicar diretamente com o público, dispensando a intermediação do jornalista. No segundo, a disputa pela atenção entre incontáveis produtores de conteúdo de toda espécie se tornou um campo de batalha permanente pelo foco do público. A desintermediação, porém, geralmente está ligada ao oficialismo, cujo antídoto é o jornalismo que levanta dúvidas e questiona sem temor.
Resumindo: embora legítima, assessoria de imprensa é uma coisa bem diferente de jornalismo independente. Quanto à fragmentação, surge uma oportunidade para veículos de interesse geral, como os jornais, que selecionam, hierarquizam e colocam ordem neste caos informativo.
Por outro lado, tem algo que não muda, e nem deve mudar, no jornalismo?
Há dois aspectos fundamentais que não mudam: o compromisso em buscar a verdade e o estímulo ao avanço das conquistas da civilização, o que inclui a liberdade e a busca da justiça e do desenvolvimento social e econômico. O jornalismo tem a missão civilizatória de fazer as sociedades avançarem por meio da difusão da verdade e da pluralidade de ideias. O resto é técnica e tecnologia.
Marcelo Rech
presidente da ANJ
"O jornalismo tem a missão civilizatória de fazer as sociedades avançarem por meio da difusão da verdade e da pluralidade de ideias"
O senhor preside a ANJ e, por décadas e décadas, jornal era praticamente sinônimo de impresso. No entanto, os veículos mais respeitados do país estão cada vez mais investindo em informação digital, em novas formas de narrativa para cativar o leitor. É um caminho sem volta?
Há muitos anos costumo dizer que os jornais não estão no ramo da impressão de papel. Estamos no ramo da confiança e da credibilidade. Se, para levar esse produto ao mercado, ainda haverá papel ou não, cabe ao público decidir e a empresa avaliar sua melhor estratégia. De uma forma geral, porém, os jornais se converteram em usinas de informação multimídia por meio de inúmeras plataformas, que podem ou não incluir o papel.
Eu era editor-chefe da Zero Hora, no Rio Grande do Sul, quando, nos primórdios da internet, lançamos um site de notícias, como muitos outros jornais. Ou seja, nós estamos lidando com a disrupção digital há um quarto de século, enquanto outros setores só agora veem seus modelos de negócios ameaçados. Os jornais dominaram as artes digitais bem antes da grande maioria dos demais segmentos econômicos e se reinventaram mais cedo.
Na próxima segunda (21), a Rede Gazeta inicia mais uma turma do Curso de Residência, desta vez adaptado para continuar sua missão mesmo em meio à pandemia. Qual mensagem o senhor deixa para os jovens profissionais que estão entrando agora no mercado?
Você só sofrerá nos primeiros 17 anos por ter de trabalhar aos feriados e fins de semana. Depois se acostuma. Brincadeira! Quando decidi fazer jornalismo, aos 15 anos, entendi que essa era a minha forma de contribuir para melhorar o mundo. Faz 41 anos que entrei na primeira redação e não me arrependi um dia sequer dessa escolha. É o propósito de saber que estamos de alguma forma ajudando a melhorar a vida de nossas comunidades e da sociedade que nos faz enfrentar com alegria e senso de realização os muitos plantões e inevitáveis sacrifícios.
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