“Já fui atropelada duas vezes”, lembra a servidora Leandra Fonseca. “Tenho que andar no meio dos carros ou em cima de calçadas”, reclama a doméstica Simone de Abreu. A bicicleta, pode-se dizer, é um veículo democrático. Usada para esporte e lazer por alguns, serve de locomoção para o trabalho e a escola de outros. A pista por onde circulam os ciclistas, porém, não é partilhada com a mesma igualdade.
Se não há ciclovias, o risco para quem está sobre duas rodas é constante. E, mesmo onde há trechos de vias exclusivos para esse público, o desrespeito de motoristas às leis de trânsito pode se tornar um problema. Em todo o Espírito Santo, há pontos perigosos para andar de bike; na Grande Vitória, particularmente, não há uma cidade totalmente preparada à turma do pedal.
Até o mês de julho, o Departamento Estadual de Trânsito (Detran) registrou 177 acidentes envolvendo bicicletas no Estado, a maioria (84,7%) por colisão. Desse total, 13 pessoas morreram. Esses são apenas os casos que chegam ao órgão, sem contar as ocorrências de menor impacto, mas que provocam danos ao ciclista, como os da servidora pública Leandra Nascimento Fonseca. Nos dois atropelamentos que sofreu, os ferimentos não foram graves, mas há outros prejuízos - materiais e emocionais.
“Sempre que acontece um acidente desses, para quem faz percurso longo, tem que mandar a bicicleta para a oficina. É gasto com roda, é a bicicleta que empena. Sempre tem algum tipo de gasto, fora o medo que fica também. Faço o mesmo trajeto duas vezes por dia. Tenho medo de sofrer acidente. O cara que está no carro não presta atenção, não. Mete o pé e é dono da rua”, lamenta.
Leandra sai diariamente de Boa Vista, em Vila Velha, e segue para o Centro de Vitória. Não passa pela Carlos Lindenberg, que tem ciclovia, porque o que deveria ser espaço exclusivo de ciclistas é dividido com estacionamento para lojas. Ela, então, opta por circular por Paul, um bairro com mais características residenciais, embora não haja a pista exclusiva para quem anda de bicicleta.
Essas são regiões que, na avaliação da servidora pública, deveriam ter mais investimentos públicos para aumentar a segurança. É claro que cada ciclista tem sua experiência e, conforme o trajeto pelo qual passa, pode apontar um ou outro lugar mais perigoso.
Especialistas e cicloativistas também têm suas percepções diante de um tráfego cotidiano crescente, com o aumento da frota de veículos, e investimento em infraestrutura de circulação para os ciclistas que não ocorre na mesma velocidade.
Para Fernando Braga, um dos trechos mais críticos é o das Cinco Pontes, onde já perdeu amigos para a violência do trânsito e para a insegurança cotidiana, favorecida pela baixa iluminação, mesmo com um fluxo intenso de ciclistas circulando na região.
“Enterrei três dali. As Cinco Pontes não têm até hoje sinalização para quem entra e quem sai”, observa o cicloativista, que passou 28 anos de sua vida profissional andando de bicicleta pelo trecho para se deslocar de casa, em Vila Velha, até o trabalho, em Vitória.
Braga aponta que investimento em infraestrutura cicloviária contribuiria para a redução do fluxo de carros que chegam à Capital, mas a lógica das iniciativas favorece o carro.
Um dos exemplos, segundo ele, é o Portal do Príncipe. O cicloativista reconhece a importância da obra para melhorar a mobilidade na região, porém avalia que as intervenções feitas permitem velocidade elevada dos veículos.
“O ambiente fica ainda mais hostil para ciclistas e pedestres à medida que mais carros em velocidades maiores podem oferecer maior impacto para as comunidades dali”, analisa.
Outra crítica refere-se às ciclovias feitas no canteiro central, como a que está sendo implantada na Avenida Rio Branco, na Praia do Canto. “Só agrada motorista”, enfatiza Braga.
Para discutir alternativas de mobilidade para ciclistas e pedestres em Vitória, um levantamento na internet feito pelo Coletivo Pedalamente, em 2020, apontou que, entre as pessoas consultadas, mais de 55% usavam bike em um percurso de 3 a 10 quilômetros. Mas nem sempre dispunham de áreas exclusivamente destinadas a esse fim.
Nessa mesma consulta, revela Hudson Ribeiro de Souza, que integra o coletivo, 81,2% dos entrevistados apontaram a falta de estrutura cicloviária como maior dificuldade para o uso da bicicleta; 61,2% criticaram a pouca educação no trânsito como maior impacto negativo na escolha do modal; e 16,5% reclamaram da ausência de conectividade das estruturas existentes. De lá para cá, avalia o ativista, pouco mudou na estrutura da cidade.
Braga também tem exemplos do problema em vários pontos da Grande Vitória, entre os quais Jardim Camburi, na Capital. Com ciclovia ao longo da Norte Sul, não há ligação cicloviária para dentro do bairro.
“Em distâncias pequenas, se houvesse segurança, o número de usuários seria maior. A ciclovia fica ao lado do canteiro da Infraero e chega quase até a ‘Fazendinha’, mas não tem ligação para o bairro. Também não há ligação com a Serra. Esse trecho até Carapina nunca foi tratado”, constata.
O cicloativista indica a mesma situação em vias movimentadas de Jardim da Penha para quem quer atravessar o bairro, da Avenida Fernando Ferrari para a Dante Michelini e vice-versa.
Obstáculos para a circulação também são constantes. O estudante Fábio Célio Souza, que percorre a Eudes Scherrer, em Laranjeiras, na Serra, para ir de casa ao curso de inglês, em alguns pontos precisa usar a calçada para trafegar e se surpreendeu com a implantação de um ponto de ônibus bem no caminho que fazia de bicicleta.
Luiz Gabler, cientista social e pesquisador de mobilidade, lembra que postes estão instalados em ciclovias na Avenida Champagnat, em Vila Velha, também obstruindo a livre circulação.
Outra dificuldade para os ciclistas é se deparar com excesso de velocidade dos motoristas que, em geral, não guardam a distância mínima prevista em lei, de 1,5 metro, quando compartilham o trânsito.
Luiz Gabler relaciona vários pontos em Vila Velha que, com ou sem ciclovia, oferecem risco aos que circulam de bike.
Na Avenida Carlos Lindenberg, particularmente no trecho entre o Posto Sete e o Supermercado Perim, onde os ciclistas precisam passar ou pela calçada ou no meio dos carros; na Darly Santos, com tráfego pesado de caminhões e velocidade excessiva; e a ligação de Vale Encantado com Cariacica, sem nenhuma segurança para fazer pedal.
A doméstica Simone Abreu, que mora em Vila Velha, já desistiu de andar pela Lindenberg e, mesmo assim, tem que fazer malabarismos no trânsito para chegar em segurança ao trabalho. Nunca se acidentou, mas anda sobressaltada, principalmente com ônibus.
“Ando nas calçadas esburacadas, tenho que desviar dos carros na pista e, quando vem o Transcol, eu paro. Porque eles não param, passam rápido e tiram fininho da gente”, conta.
A Rodovia do Sol, principalmente a Região 5 (Terra Vermelha), é também um problema, segundo aponta Luiz Gabler.
“Muitos trabalhadores usam a ciclovia e lá existe uma falsa sensação de segurança porque tem ciclovia, mas a velocidade da via é de 110km/hora. Uma mulher que perdeu o controle do carro, com dois segundos, estava em cima do ciclista. Se é permitida alta velocidade, é preciso dar segurança maior, com iluminação no período noturno, diferenciar área de pedestre da área de ciclista, separação física da pista de carros”, orienta.
Entre as propostas de um manifesto pela mobilidade ativa, assinado por 16 organizações e mais de 170 pessoas em 2020, está justamente a redução da velocidade.
O documento propõe diminuir a velocidade regulamentar de vias públicas locais e coletoras para 30 km/h como política urbana a se aplicar progressivamente, começando pelos trechos com ocorrência de atropelamentos leves e fatais e nos locais de instalação de “Ghost Bikes” (Bicicletas Fantasmas), tais como as reincidentes avenidas Beira-Mar, Fernando Ferrari e Dante Michelini - esta com o caso mais recente, da modelo Luiza Lopes, atropelada e morta na pista.
Na pauta dos municípios da Grande Vitória, há previsão de instalação de ciclovias e ciclofaixas, ampliando a malha cicloviária da região. Mesmo reconhecendo a importância da estrutura, os especialistas esperam mais.
“Além dos pontos críticos e inquestionáveis, falta a sociedade em geral tratar desse tema com mais presteza e humanidade e, particularmente, o Poder Executivo. São altas velocidades, falta de calçadas e de conectividade de ciclovias, não há incentivo à educação no trânsito. A tragédia é diária e afeta especialmente esse público, que não é o que precisa deixar o carro em casa, mas a população mais pobre e cujo único meio de alcançar as coisas, como saúde e educação, é usando a bicicleta. É urgente investir nessa área, porque também está relacionada à cidadania e à garantia de direitos fundamentais”, conclui Luiz Gabler.
A reportagem de A Gazeta entrou em contato com as prefeituras da Grande Vitória para saber o que estão fazendo para melhorar a segurança dos locais citados na matéria e projetos futuros. Confira abaixo os posicionamentos:
VITÓRIA
De acordo com a prefeitura, novas maneiras de promover as conexões entre as ciclovias, ciclorrotas e ciclofaixas têm sido estudadas. Entre as já confirmadas estão intervenções, para complementação e melhorias da ciclovia, no trecho que se estende do Centro Esportivo Tancredo de Almeida Neves (Tancredão), próximo ao marco zero da BR 262, no bairro Mário Cypreste, até a Praça dos Namorados, na Praia do Canto.
A intervenção cruzará importantes avenidas, entre elas, Nossa Senhora dos Navegantes, Marechal Mascarenhas de Moraes (Beira-mar) e Getúlio Vargas, corredores viários de alto fluxo de veículos. Outras importantes avenidas da cidade serão contempladas com a implantação de ciclovias, como a Marechal Campos, na região continental da cidade. A Orla Noroeste também receberá ciclovia.
VILA VELHA
Segundo a prefeitura, a cidade está em obras para construção de novas ciclovias em Cidade da Barra e São Conrado. Também foram iniciadas a construção de ciclovias na Avenida Gaivotas, no bairro Pontal das Garças, e avenidas Sempre Viva e União, no bairro Darly Santos. Ainda existe projeto para expansão da ciclovia na orla da cidade, ligando a Praia de Itaparica à orla do bairro Nova Ponta da Fruta, um total de 19 novos quilômetros de ciclovia.
CARIACICA
A prefeitura do município informou que o projeto de humanização e urbanização para o trecho municipalizado da Avenida Mário Gurgel (BR 262) está em fase de elaboração (para posterior captação de recursos) e inclui diversas melhorias, como passagens de dois níveis para melhoria do trânsito, ciclovia, pista de caminhada e corrida, passarelas e sinalização para proporcionar mais segurança.
SERRA
A Secretaria Municipal de Obras (Seob) da Serra informou que tem três projetos em andamento envolvendo a Avenida Eudes Scherrer e a Rotatória do Ó, que vão ampliar as ciclofaixas. Um desses projetos é um “mergulhão” que vai ligar a BR 101 à Avenida Eudes Scherrer. Assim que a obra do “mergulhão” for finalizada, será entregue também com ciclovia, ligando a rodovia federal à avenida.
Também há um outro contrato, que a Seob se prepara para dar ordem de serviço nos próximos dias, que autoriza a construção de ciclovia na região do Terminal de Laranjeiras. A via para ciclistas vai passar por trás do terminal e chegar à Avenida Eudes Scherrer pela Rodovia Norte-Sul, passando pela Caixa Econômica.
O terceiro projeto, que já está em execução, envolve a Rotatória do Ó, com previsão de entrega para setembro. Será construída uma ciclovia ligando a nova rotatória até o Terminal de Laranjeiras, obra já prevista no contrato. Todo o entorno do anel viário ganhará ciclovia, assim como os seus ramais, fazendo ligação com as avenidas Talma Rodrigues, Copacabana e Eudes Scherrer, ampliando as vias para ciclistas. Serão mais cerca de 2 quilômetros de ciclofaixa.
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