Jesus Cristo crucificado
Jesus Cristo crucificado . Crédito: Arabson

Paixão de Cristo: os erros do julgamento que condenou Jesus à morte

Estudiosos do direito romano e hebraico, advogados, juristas e professores fazem uma análise histórica e jurídica do processo penal de Jesus — da prisão à execução — e apontam as ilegalidades cometidas perante as leis hebraicas e romanas

Tempo de leitura: 23min
Vitória
Publicado em 29/03/2024 às 07h00

Era noite de quinta-feira, 6 de abril do ano 793 da fundação de Roma, ou 14 de Nisan, no calendário hebraico. Naquele dia teve início o julgamento mais famoso, mais controverso e um dos mais rápidos da história, que culminou na morte, por crucificação, de Jesus de Nazaré. Ele foi preso, interrogado, julgado, condenado e executado em menos de 24 horas. Uma rapidez que até hoje assombra estudiosos do direito romano e hebraico, advogados, juristas e professores.

Para esses especialistas da história do Direito, não há dúvidas de que a pressa levou ao desrespeito das leis hebraicas e romanas, impedindo um julgamento justo. Tudo foi feito para que se atendesse ao objetivo da elite sacerdotal de se livrar de um homem que trazia transtornos e ameaçava o estado judaico. E também ao de Pôncio Pilatos, o governador que temia perder prestígio em Roma.

Roberto Victor Pereira Ribeiro

Professor de Direito e escritor

"Foi um dos julgamentos mais hediondos, mais horríveis que a gente pode ilustrar dentro da historiografia jurídica"

Um ato que resultou ainda em grandes implicações históricas no decurso dos séculos, acrescenta o advogado e professor de história do Direito e Antropologia Jurídica e mestre em Ciências da Religião, Rodrigo Freitas Palma. 

Rodrigo Freitas Palma

Advogado e professor de história do Direito e Antropologia Jurídica e mestre em Ciências da Religião

"Sob um viés puramente jurídico, Cristo foi o réu mais célebre de todos os tempos, a condenação mais controvertida de que até hoje se tem notícia"

Os fatos aconteceram em Jerusalém, nos dias que antecederam o Pessach, a Páscoa judaica — data em que os judeus que foram escravizados no Egito comemoram a sua libertação. Um feriado que fazia com que a população da cidade, sob a brutal dominação romana, aumentasse em quatro vezes. Era o que movimentava a economia local centrada, principalmente, no Templo de Salomão, onde era feito o câmbio da moeda para o pagamento dos impostos e a venda dos animais que seriam imolados em sacrifício.

Esse era o cenário encontrado por Jesus, que, um domingo antes, chegou à cidade no lombo de um burro, aclamado pela população. Nos cinco dias em que passou no local, conseguiu acirrar ainda mais a ira dos sacerdotes hebreus, com suas pregações e ações, como a expulsão dos vendilhões (comerciantes) do templo. Os mesmos líderes que há muito estavam insatisfeitos com as curas e milagres — como o de Lázaro, que, morto, voltou a viver — e com a valorização que era dada às mulheres, que, à época, não tinham direitos e nenhum status.

Mas como essas ações resultaram na pena capital, a morte? De quais crimes Jesus foi acusado? E ele, de fato, os cometeu? A partir de uma análise histórica e jurídica, especialistas convidados por A Gazeta explicam e apontam quais foram as ilegalidades cometidas perante às leis hebraicas e romanas em cada uma das etapas que envolveram o processo penal de Jesus, da sua prisão até a execução.

A PRISÃO DE JESUS

 "Os homens agarraram Jesus e o prenderam" (Marcos 14:46) 

Jesus é preso, na noite que antecedeu seu julgamento e morte. Crédito: Arabson
Jesus é preso, na noite que antecedeu seu julgamento e morte. Crédito: Arabson

Era por volta das 23 horas, estimam alguns historiadores. Jesus de Nazaré estava no Jardim do Getsêmani, situado no Monte das Oliveiras, com alguns discípulos. Lá foi encontrado por Judas Iscariotes, que havia recebido 30 moedas para apontar quem era o Cristo. O homem, que ficou conhecido como o traidor, se dirigiu ao local acompanhado por sacerdotes, anciãos, policiais do templo, escravos armados e soldados romanos.

A prisão que ocorreu naquele momento foi o primeiro passo de uma sucessão de atos que culminou na sua morte e que começou a ser tramada muito antes de Jesus ser detido, aponta o advogado criminalista Fabrício Campos. mestre em Direito, Estado e Cidadania.

Fabrício Campos

Advogado criminalista, mestre em Direito, Estado e Cidadania

"É importante notar que o interesse na morte de Jesus vinha de bem antes. Os evangelistas registram que, no ano anterior, devido à atração exercida pelos ensinamentos de Jesus, a cúpula político-religiosa hebraica já via a morte dele como uma necessidade, o que revela uma forma de fazer perecer uma só pessoa para que os próprios judeus não viessem a ser destruídos pelos romanos"

Ele aponta ainda que, durante a festa dos Tabernáculos (realizada em setembro), o evangelista João relatava que Jesus não queria se deter na Judeia (nome dado à província do Império Romano), "porque os judeus procuravam-lhe tirar a vida”. Em outra passagem,  dizia ainda: “Buscavam-no os judeus durante a festa e perguntavam: onde está ele?".

Durante os eventos correspondentes ao período dessa festa, João indica um interesse político-religioso na morte de Jesus. "Religioso porque se sobrepunha ao poder místico do sacerdotes (os saduceus), dos fariseus e escribas. Político porque tornava a relação dos judeus com Roma perigosa", diz Campos.

As ilegalidades:

 1.  De acordo com o professor Roberto Victor Pereira Ribeiro, a prisão de Jesus, na forma como foi realizada, foi ilegal, por ter ocorrido durante a noite, sem que contra ele houvesse acusação ou denúncia formal. "E ocorreu durante o Sefer, uma confraternização familiar hebraica que acontecia antes do Pessach (Páscoa judaica). Data em que as famílias ficavam dentro de suas casas. Na rua, não existia quase ninguém, a não ser os indigentes e leprosos. Foi preso arbitrariamente porque, nesse período, era proibido realizar prisões", relata.

Fato confirmado também pelo professor Rodrigo Freitas Palma, que destaca um detalhe do conjunto de leis hebraicas: "A Halachá (lei judaica) proibia que um membro da comunidade israelita fosse julgado durante um dia festivo e santo, como o são os dias da Páscoa".

 2.  Em seu livro sobre o tema, Ribeiro acrescenta que as leis romanas estabeleciam um indiciamento criminal formal antes que a pessoa fosse detida. Jesus também não foi informado, naquele momento, sobre as acusações pelas quais responderia. Outro ponto apontado por ele é que a lei hebraica proibia a acusação mediante traição, o que foi feito por Judas. E mais: "Arquivos históricos lecionam que era terminantemente proibido aos judeus portarem armas durante a Páscoa e, na prisão de Jesus, escravos e policiais judeus portavam armas", acrescenta Ribeiro.

 3.  Um ponto curioso, segundo a advogada e criminalista Conceição Giorni, diz respeito às datas em que a Páscoa era celebrada pelos diversos grupos hebraicos, à época, e que acontecia em dias diferentes da semana. "Enquanto para os fariseus a Páscoa, dia 15 do mês de Nisan, era comemorada na sexta-feira (calendário seguido por Jesus), para os saduceus (que representavam a maioria no Sinédrio, o tribunal judaico) a comemoração se daria no sábado. Era um período em que havia recolhimento para orações e jejum, o que pode explicar a ausência de pessoas que brigassem pela soltura de Jesus. Talvez até isso tenha sido pensado por Anás e Caifás (sacerdotes), que desejavam o momento propício para sacrificar Jesus", pondera.

 4.  Outra ilegalidade apontada por Conceição Giorni é sobre a competência do tribunal judaico, o Sinédrio, que na, noite da prisão, não estaria com sua formação completa, com seus 70 membros, o que também tornaria a prisão nula.

"A prisão se deu por ordem do tribunal sem competência para tanto, porque o Sinédrio não estava, naquele momento, com seu quórum legítimo. A ordem saiu do sumo sacerdote Caifás, circundado pelo seu sogro Anás, e não tivemos, na calada da noite, o Sinédrio composto totalmente. A divisão dele era: Câmara dos Sacerdotes, Câmara dos Escribas e Câmara dos Anciãos. E os evangelhos só nos dão conta dos sacerdotes. No mínimo, podemos indagar: e o restante? E se este momento de prisão já foi nulo, certamente, tudo o que veio a partir daí se contamina pela mesma nulidade", observa Conceição.

OS CRIMES

"Então Pilatos saiu para falar com eles e perguntou: Que acusação vocês têm contra este homem?” (João 18:29)

O julgamento de Jesus. Crédito: Arabson
O julgamento de Jesus. Crédito: Arabson

A cidade em que Jesus estava quando ocorreu o seu julgamento era Jerusalém, pertencia à Judeia, região que vivia sob a dominação romana. Naquela época, explica o professor Rodrigo Freitas Palma, Roma permitia que as administrações locais continuassem a exercer livremente as suas funções sociais e religiosas.

Na prática, isso significava que os hebreus, assim como Jesus, tinham que seguir as leis religiosas e sociais de seus antepassados, que também eram conhecidas como leis mosaicas. "Essas regras estavam, basicamente, dispostas no corpo da Torah (Pentateuco, os cinco primeiros livros da Bíblia), compondo, assim, preliminarmente, um direito escrito (Mischpat). Mas vale notar que os judeus observavam também as regras orais (Halachá). Noutra perspectiva, Jesus também encontrava-se sujeito aos ditames normativos do Império Romano; e, no campo legal, os romanos já possuíam longa e sólida tradição", explica Palma.

Apesar da pouca clareza que havia sobre as acusações, já que elas não foram formalizadas, para os judeus, os crimes cometidos por Jesus eram o de profanação do sábado e ainda o de invocar o poder de Deus para si (blasfêmia). Já ao juiz romano, Pôncio Pilatos, foi dito que Jesus incitava o povo judeu ao não pagamento de imposto a César, se autodenominava rei dos judeus e era insurgente contra o poder local.

As ilegalidades:

Mas o que havia concorrido subitamente para a prisão de Cristo, uma vez que, desde que chegara a Jerusalém, um domingo antes, não enfrentava problemas?

 1.  O professor Palma relata não ter dúvidas de que foi o fato de que ele expulsou os vendilhões do Templo de Salomão. "Ocorre que os valores praticados com o comércio dos animais eram importantes para a economia local. Muitos destes, sem a menor parcimônia, auferiam lucros suficientes para garantirem a subsistência durante o ano todo", relata.

Esses mesmos comerciantes lançavam mão do período da Páscoa judaica para aumentar os preços dos animais utilizados nos sacrifícios (necessários, segundo a liturgia local, para se alcançar o perdão dos pecados).

"Orquestrando essa prática vil no âmbito do templo, estavam também os mesmos saduceus (a elite dos sacerdotes); eram objeto de desconfiança das pessoas daquela época, cansadas de tanta exploração. Não por acaso, poucas horas após a ação enérgica de Jesus nos átrios do prédio sagrado, ocorre sua prisão", conta Palma.

Jesus chamou, assim, a atenção ao mexer com a estrutura financeira e econômica do estado hebraico, acrescenta o professor Roberto Victor. "Ali começou-se a chamar a atenção que Jesus não era só um lunático que estava pregando curas e novas teorias a respeito de Deus. Jesus era uma pessoa perigosa porque estava mexendo no equilíbrio financeiro e econômico de uma população, de um império, o judeu."

 2.  Outro problema vinha dos milagres atribuídos a Jesus. Já próximo à Páscoa ocorre a ressurreição de Lázaro. O evento é registrado pelo evangelista João como a “gota d'água”. Mateus também data a proximidade da festa (e logo após o milagre de Lázaro) como o momento da “decisão” de se matar Jesus.

Em outro ponto do relato dos apóstolos, muitos dos judeus que viram os milagres realizados por Jesus foram aos fariseus e lhes contaram o que ele fizera. "Os pontífices e os fariseus convocaram o conselho e disseram: Que faremos? Esse homem multiplica os milagres. Se o deixarmos proceder assim, todos crerão nele, e os romanos virão e arruinarão a nossa cidade e toda a nação”, pondera o criminalista Fabrício Campos.

 3.  E havia ainda outra questão, segundo o professor Ribeiro, que dizia respeito às mulheres e à forma como eram tratadas por Jesus. "Houve uma tentativa de romper o antropocentrismo da época, ao dar às mulheres uma identidade e um status que não tinham na cultura convencional. O homem era o alicerce da sociedade, a mulher não tinha vez e Jesus quebrou esse paradigma. E várias mulheres o seguiam. Isso incomodou os poderosos judeus da época", explicou.

 4.  Mas para o juiz romano Pôncio Pilatos, o que chamou a atenção foi o suposto crime de sedição, a partir da pressão feitas pelos sacerdotes judaicos, de que Jesus incitava o povo judeu a não pagar imposto a Roma e de que poderia promover uma revolta contra o poder local, como explica o professor Roberto Victor. "Mas Jesus nunca teve configurado numa passagem bíblica e histórica ou de evangelhos apócrifos (livros fora da Bíblia) como um seditor. Isso não existe", observa.

Na prática, avalia Roberto Victor, que escreveu um livro sobre o julgamento mais famoso da história, Jesus não cometeu nenhum crime. "Nem sedição, nem revolta, nem blasfêmia. Os crimes que estavam sendo imputados a Jesus não foram provados de forma cabal."

Roberto Victor

Professor de Direito e escritor

"Posso dizer que a legislação da época previa quais comportamentos podiam ser enquadrados dentro dessa situação, e ele (Jesus) não se enquadrava em nenhum deles"

OS INTERROGATÓRIOS E JULGAMENTOS

"De manhã cedo, todos os chefes dos sacerdotes e líderes religiosos do povo tomaram a decisão de condenar Jesus à morte” (Mateus 27:1)

Pôncio Pilatos lava as mãos durante a decisão de impor a Jesus Cristo a pena de morte. Crédito: Arabson
Pôncio Pilatos lava as mãos durante a decisão de impor a Jesus Cristo a pena de morte. Crédito: Arabson

Segundo análise feita pelo jurista Rui Barbosa, Jesus enfrentou seis julgamentos. "Três às mãos dos judeus, três às dos romanos, e em nenhum teve um juiz", assinalou. Ele se refere à atuação de Anás — foi à sua casa que Jesus foi levado logo após ser detido. Posteriormente, foi entregue ao sumo sacerdote Caifás, que também estava em casa e onde reuniu parte dos membros do Sinédrio, o tribunal judaico. Audiências que foram realizadas à noite e de madrugada.

A intenção era que o réu fosse condenado à morte. Caifás, na ocasião, não parece ter se conformado com as falas do réu, especialmente quando este se declara ser o “Messias” e o “Filho do Deus Vivo”. "Mas se Jesus foi considerado como blasfemo, por que estes não o condenaram à lapidação (apedrejamento), consoante o que preconizava a Lei de Moisés?", questiona o professor Rodrigo Freitas Palma.

Ele complementa avaliando que "eles temiam ser hostilizados pela multidão de seguidores que acompanharam o nazareno entusiasticamente em sua entrada triunfal em Jerusalém. Por essa razão, conduziram-no, assim que puderam, perante à autoridade romana, Pôncio Pilatos, o procurador do Império Romano na região.

Então, logo após ser condenado pelos judeus, Jesus foi amarrado e levado à presença do tribunal romano. Na descrição dos evangelistas, Pilatos parecia não ter certeza sobre os crimes cometidos por Jesus e, quando soube que ele era da Galileia, decidiu alegar incompetência e o encaminhar para Herodes, governador daquela cidade. Este, por sua vez, após alguns questionamentos, o devolveu a Pilatos. É então que se dá início o último julgamento de Jesus.

Embora alegasse não ver motivo para a condenação, Pilatos chegou até a mandar açoitar o réu, como alternativa à condenação, o que não foi aceito pela população. Foi convencido pelos judeus com as acusações de que Jesus renegava César e de que ele propagava revolta contra o Império Romano, além de se nomear rei do povo de Israel. Esse era um delito considerado grave contra a segurança do Estado e contra a ordem pública — que era sumariamente reprimido. Crime punido com a morte.

Pilatos lançou mão de quatro evasivas para fugir do julgamento: transferiu a responsabilidade para Herodes, depois tentou soltar o réu pelo privilégio pascoal (trocá-lo por Barrabás), depois propôs a flagelação e soltar o réu e, quando não tinha mais alternativa, lavou as mãos.

As ilegalidades

 1.  Para começar, segundo o professor Roberto Victor, Jesus não poderia ter sido levado à presença de Anás. "Ele não tinha competência nenhuma. Havia sido destituído do cargo havia 18 anos", relatou, acrescentando que há desconfianças de que foi o próprio Anás que teria tramado a prisão e a morte de Jesus. Outro ponto apontado por ele é que o interrogatório não poderia ter sido feito fora das dependências do Sinédrio. E, para piorar, completa, o tribunal judaico não estava completo: "Ao todo, se encontravam 30 dos 71 membros que deviam estar no local".

 2.  O criminalista Fabrício Campos reforça a ilegalidade do interrogatório. "Jesus foi interrogado preliminarmente perante Anás e não perante Caifás, que era o sumo sacerdote. Aqui são vistos dois pontos: a delegação para autoridade não competente como forma de satisfação de interesse privado e a submissão de Jesus à tortura, isso porque o interrogatório conduzido por Anás apenas tinha por finalidade submeter Jesus a flagelos e humilhações como forma de arrancar dele a confissão esperada."

 3.  Campos ainda pondera que a estrutura do tribunal foi desrespeitada, uma vez que havia câmara própria para os juízos criminais, chamada Câmara da Pedra Talhada. "É nela que deveriam reunir-se os membros do Sinédrio para procederem a ouvir testemunhas, fazer interrogatórios e dar a  sentença", relata.

 4.  As testemunhas do caso também foram subornadas, aponta o professor Roberto Victor. "Foram aliciadas testemunhas, porém tão contraditórias que os membros do tribunal as dispensaram. Após isso, Caifás rasgou as vestes e gritou: "Blasfêmia, é réu de morte", diz, assinalando ainda que não houve um inquérito preliminar nem uma chamada formal dos juízes.

 5.  Outro ponto diz respeito aos ritos para se identificar o crime de blasfêmia, acusação feita pelos sacerdotes, e que não foram seguidos, assinala a criminalista Conceição Giorni*. "Segundo o Talmud (livros sagrados judaicos), o procedimento para apuração do delito de blasfêmia de longe foi seguido no caso de Jesus. Seria necessário que o Sinédrio apurasse durante o dia, o acusado deveria ser posto à luz do dia, as testemunhas deveriam ficar atrás da cortina, o acusado não poderia ver as testemunhas, e ele deveria, por três vezes, confirmar a blasfêmia. E o tribunal deveria dar ao réu a chance de se retratar, o que não aconteceu com Jesus", revela.

 6.  Em relação à acusação da violação do sábado, Roberto Victor destaca que, mesmo que ela tivesse ocorrido, a punição não seria a morte, mas prisão. Pondera ainda que a lei mosaica (lei de Moisés, que é concedida por Deus) proíbe a acusação mediante traição, o que Judas fez por 30 moedas. E teve ainda a premeditação do crime. "Uma reunião do conselho, de acordo com Mateus e Marcos, teria ocorrido dois dias antes da festa da Páscoa com o único objetivo de prender e matar Jesus. Eles sabiam que tal façanha, em época de festas, era altamente perigosa, mas resolveram correr o risco", relata o professor Roberto.

 7.  E mais, segundo a lei mosaica, nenhum juiz poderia ser aceito se fosse inimigo do acusado. "Devia ser afastado do processo sob pena de injustiça e nulidade. Anás, Caifás e os que se assentaram no Sinédrio, àquela noite, eram inimigos de Jesus", assinala Roberto Victor.

 8.  Na avaliação do professor Rodrigo Freitas Palma, Jesus não contaria com um advogado de defesa. "Ainda que existissem regras sofisticadas, de natureza judiciária, estas não se destinariam ao julgamento de um réu que não era propriamente um cidadão romano e, portanto, não há que se cogitar a presença de um advogado. Ou seja, mesmo sob a hipótese arvorada, Pilatos não faria uso delas no caso de Jesus. Portanto, não se deve procurar por uma 'sentença de Cristo' porque tal documento simplesmente não existe e nunca existiu."

 9.  Os julgamentos feitos pelos judeus foram realizados durante a noite e a madrugada. Na manhã de sexta, o Sinédrio voltou a se reunir, numa tentativa de legitimar a reunião da noite anterior e também costurar uma nova acusação para levar Jesus a Pilatos. "A mishna sahedrin (uma das fontes centrais do pensamento judaico) diz: os casos criminais são julgados durante o dia e devem ser completados durante o dia. Se o acusado é absolvido, o julgamento criminal pode ser completado num só e mesmo dia; se não, ele é adiado para o dia seguinte, em que se pronunciará o julgamento. Portanto não se celebram julgamentos criminais na véspera de um shabat (sábado, dia de descanso do judaísmo), nem na véspera de um dia de festa", complementa Roberto Victor.

 10.  Outro ponto é que nenhum dos julgadores considerou a possibilidade do réu ser inocente, como pondera o professor Roberto Victor. "A parcialidade da cúpula do Sinédrio constitui-se no fio condutor que orienta os procedimentos que na ocasião foram adotados. Não houve, em nenhum momento, qualquer consideração da presunção de inocência de Jesus de Nazaré".

 11.  Ao “lavar as mãos”, Pilatos transferiu ao povo a responsabilidade por um julgamento justo que cabia a ele, como destaca o promotor Rodrigo Monteiro, que atua em Tribunal de Júri. "Não pode o magistrado, sob o pretexto de satisfação das massas, deixar que seu convencimento seja guiado pela “vontade da maioria”. Não raro cabe ao Poder Judiciário assumir posturas contramajoritárias quando houver a necessidade de preservação de direitos e garantias fundamentais", assinala.

 12.  Por último, assinala Fabrício Campos, não houve imparcialidade dos julgadores. "Como disse, já tinham a sentença pronta e precisavam apenas formular alguma acusação que fosse adaptável a algum ilícito. Nesse sentido, distorcem a imparcialidade exigida no próprio livro do Deuteronômio (o quinto livro do Pentateuco), que diz: Não farás curvar a justiça, e não farás distinção de pessoas; não aceitarás presentes, porque os presentes cegam os olhos do sábio e destroem a causa dos justos. Deves procurar unicamente a justiça."

A CONDENAÇÃO E EXECUÇÃO DE JESUS

"Quando chegaram ao lugar chamado Caveira, ali o crucificaram com os criminosos" (Lucas 23:33)

Jesus é agredido, torturado e atacado por soldados e populares antes de sua crucificação. Crédito: Arabson
Jesus é agredido, torturado e atacado por soldados e populares antes de sua crucificação. Crédito: Arabson

Eram 9 horas de sexta-feira quando Jesus recebeu a sua condenação: "Crucifica-o". Pilatos acatara o pedido da multidão que se aglomerava em frente ao pretório (tribunal romano). Era chegada a etapa final de um julgamento que foi marcado por diversas ilegalidades. Logo após a decisão do juiz romano foi dado início à execução da pena.

Jesus saiu do pretório romano acompanhado do seu "exactor mortis" (a pessoa responsável por sua execução,) e mais três soldados romanos. Naquela época, como parte do processo, segundo as leis de Roma, o réu era obrigado a carregar até o local da crucificação a parte superior da cruz. O cumprimento da sentença demorou seis horas e, às 15 horas, Jesus foi declarado morto.

De acordo com a criminalista Conceição Giorni, a crucificação não era especificamente uma forma de execução da pena de morte, mas uma pena propriamente dita, prevista de forma autônoma. Outras penas fatais eram conhecidas e aplicadas, a depender da gravidade do delito, como a decapitação, fogueira, exposição às feras ou empalamento (atravessar uma estaca no corpo).

A crucificação era reservada a delitos de maior gravidade e tinha por objetivo reprimir ou inibir que outras pessoas (geralmente escravos) se rebelassem ou infringissem as leis romanas.

Conceição Giorni

Advogada criminalista

"Certo é que a crucificação tinha por finalidade a total humilhação do executado, já que era despido de suas vestes, flagelado, amarrado ou pregado em madeira e pendurado nela para que a morte fosse lenta e assim, se prolongasse o sofrimento. Portanto, era, sim, habitual que no procedimento de execução ocorresse flagelação e o condenado fosse obrigado a carregar a parte horizontal da cruz"

De acordo com o professor Rodrigo Freitas Palma, tudo indica que o madeiro (parte horizontal da cruz) retratado pelos artistas medievais foi o mesmo adotado na morte de Jesus, uma vez que deveria haver um espaço para inserir a sentença final logo acima da cabeça do condenado (titulum).

"As estacas já estavam no local onde ocorreria a execução final. O condenado carregava até lá o patibulum, ou seja, a trave superior amarrada aos braços. No decorrer da história, persas, gregos e outros povos utilizaram-na como forma de suplício e, somente na Judeia ocupada, outras incontáveis condenações à morte na cruz foram promovidas pelos romanos. As vítimas eram rebeldes, indivíduos considerados sediciosos e aqueles que se negavam a pagar tributos", explica Palma.

Outro ponto que se destaca, explica o professor Roberto Victor, em seu livro sobre o tema, é que após a crucificação e a morte do condenado, o corpo permanecia no local até ser decomposto por aves e animais. "Descer um corpo após a morte era um privilégio que exigia súplica, influência ou propina".

As ilegalidades

 1.  Uma das primeiras ilegalidades, segundo o professor Roberto Victor, é que a sentença foi proclamada no mesmo dia da prisão, à noite, e sem nenhum meio de defesa técnica para Jesus. "Outra irregularidade gritante ocorre na votação constante da sentença. A lei hebraica preceitua que na condição de unanimidade devereis-se inocentar o acusado. Tal situação derivava do dever que a corte tinha de proteger e defender o acusado", diz.

 2.  Outro problema, acrescenta Roberto, é que o julgamento de ilícitos, segundo as leis mosaicas, fora das dependências do templo, numa residência, era proibido. "Os membros do tribunal também tinham que ser notificados oficialmente. Eles foram convocados com urgência, no meio da noite e somente os que haviam premeditado a condenação compareceram. As assembleias e as comissões dos tribunais tinham atas oficiais e públicas para julgar, sempre de segunda e quinta. O de julgamento de Jesus ocorreu na sexta".

Uma prova disso, relata o criminalista Fabrício Campos, vem do fato de a sentença de Jesus ter sido proferida na casa de Caifás, um indicativo de que só uma pequena parte dos membros do Sinédrio estavam presentes. "Até porque Nicodemos e José de Arimateia, embora membros da Câmara dos Anciãos, não são mencionados nas escrituras como presentes no momento do julgamento de Jesus perante o Sinédrio. E essas duas figuras pareciam, pelos relatos bíblicos, que integraram a Câmara do Conselho dos Anciãos", pondera.

 3.  O professor Rodrigo Freitas Palma acrescenta que, como parte da condenação imposta por Pilatos, a primeira pena aplicada a Jesus, antes da condenação final, foi a de flagelação, o que era vetado. "A lei romana vetava a pena de flagelação a homens livres e ela só era aplicada como pena acessória ao condenado por crucificação. Mas Jesus, quando foi levado para ser flagelado não havia sido condenado para a crucificação. Foi um meio que Pilatos tentou para não matar Jesus", relata.

 4.  Já a criminalista Conceição Giorni aponta que a flagelação a que submeteu Jesus é uma demonstração de como funcionava o alto grau de liberdade de ação de Pilatos dentro dos limites da lei.

"Segundo José Raul Calderon, a flagelação era uma técnica romana de punição disciplinar e, também, uma forma de investigação, visando obter a confissão de suspeitos por meio de tortura. Essa flagelação se deu com Flagrum Taxilatum, composto de correias ou tiras que terminavam em pequenos pedaços de ossos ou bolos de chumbo de menor tamanho. Ao contrário dos evangelhos de Lucas, Marcos e Mateus, o evangelho de João narra o açoitamento antes da decisão final pela crucificação. Esse flagelo não funcionou nem como método de investigação, nem como pena disciplinar, tendo sido aplicado apenas como uma tentativa de aplacar a ira dos acusadores de Jesus, o que não deixa de ser mais uma anomalia, mesmo em se tratando de julgamento de um não-cidadão romano", observa Conceição.

 5.  Conceição chama a atenção ainda para outro fato, o de que o Sinédrio não tinha competência tanto para executar a pena de morte como para condenar o réu à pena de morte, o que tornaria nula a condenação de Jesus. "Quando os sacerdotes levam Jesus a Pilatos este diz que Jesus deveria ser levado e julgado pelos sacerdotes conforme suas próprias leis. Evidentemente, ao fazer isso, o próprio Pilatos considera ser impossível aplicar em Jesus a pena de morte, pois seria estranho que ele desconhecesse a limitação imposta por Roma à jurisdição judaica. Quando Pilatos prossegue no julgamento, ele aceita uma alteração da acusação, que passa então a ser sustentada sob o aspecto de lesa majestade, insurreição, não pagamento de impostos etc", diz.

 6.  Outra anomalia destacada por ela é citada no evangelho de Lucas, e que foi a tentativa de Pilatos de declinar da própria competência, enviando Jesus para Herodes, por se tratar de um galileu. "Não havia nenhuma razão para fazer isso, o que demonstra, na verdade, seu incômodo diante do julgamento que estava por fazer".

 7.  Já o criminalista Fabrício Campos traz relatos históricos que apontam que Pilatos havia provocado muita insatisfação entre os judeus devido a sucessivos atos de desrespeito a seus templos e práticas e, por outro lado, havia sido alertado por Roma quanto ao seu comportamento, dado o risco elevado de um levante violento, situação que causaria aumento de despesas (com soldados, tropas, logística) e redução de receitas (com prejuízo de impostos).

"Sendo assim, não seria de se espantar que tratasse Jesus, por um lado, tentando praticar alguma justiça próxima ao sistema processual romano (mas bem longe dos direitos concedidos aos cidadãos) e, por outro, cedendo à influência dos sumo sacerdotes, que, afinal, eram a força política entre Roma e o povo hebreu na época", pontua Campos.

 8.  O professor Rodrigo Freitas Palma destaca ainda que a elite religiosa de Jerusalém, que não simpatizava com o movimento popular de Cristo, também não achou importante se ater aos aspectos procedimentais. Pelo contrário, queriam, o quanto antes, entregá-lo aos mandos de Roma, que por fim, o condenou por “sedição” ou “revolta”.

"Ao que parece, os saduceus pretendiam dar resposta aos comerciantes lesados pela ação enérgica de Jesus no templo. São estes, suas famílias, aliados a alguns sacerdotes, bem como, fariseus da Escola de Shammai e escribas que optaram pela libertação de Barrabás, em detrimento de Jesus. Creio ser importante nomear aqui aqueles que julgo responsáveis pela condenação de Cristo para evitar abstrações, por demasiado genéricas. Os seguidores de Cristo, que o acompanharam em sua jornada, não estavam presentes naquela hora, tão cedo pela manhã. Quando se dão por conta do ocorrido na noite anterior, já era tarde demais. Jesus já estava sendo flagelado e, depois, estaria a caminho do Gólgota (colina onde Jesus foi crucificado)", explica Palma.

 9.  Por fim, resume a criminalista Conceição Giorni, Jesus não foi apedrejado como era o costume, mas foi entregue a Pilatos para ser crucificado porque este era o desejo dos sacerdotes. "Eles desejavam a humilhação, a aniquilação daquelas ideias", relata ao se referir as mudanças propostas do Jesus de Nazaré. Ela pondera ainda que no momento em que se tinha um sistema político-religioso sendo instigado a mudar, com alguém dizendo que havia equívocos e desmandos, o sistema reagiu com violência.

"O que a história nos mostra é que toda vez que um sistema reage com violência para se manter no poder, aquela mesma violência o destrói. Caifás não se perpetuou, tivemos uma destruição de Jerusalém, e tivemos um poder destruindo outro poder, sempre a partir da violência. Acredito que isso deveria ser pensando ainda nos dias de hoje, quando buscamos resolver os nosso problemas a partir de uma análise de endurecimento das leis. Uma resposta violenta nunca é uma solução. Ela sempre é a causa de um novo problema, e ainda maior", observa Conceição.

Jesus Cristo crucificado . Crédito: Arabson
Jesus Cristo crucificado . Crédito: Arabson

As fontes da matéria

*Reportagem originalmente publicada em 18 de abril de 2019.

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