Na sala de uma casa humilde localizada no quilombo de Linharinho em Conceição da Barra, Norte do Espírito Santo, Elda Maria dos Santos, conhecida como dona Miúda, de 65 anos, segura um livro com uma cópia do registro de venda de negros escravizados no Estado no período colonial.
Em seu rosto é possível ver marcas de décadas de resistência e de disputas vivenciadas por ela e por seus familiares na localidade, que enfrenta um longo processo em busca da demarcação e está prestes a ter as terras tituladas para uso exclusivo dos quilombolas.
Miúda faz parte de um universo de mais de 4 mil quilombolas que vivem em Conceição da Barra, município com o maior percentual de quilombolas por habitante do Estado, conforme dados do Censo 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Durante dois dias, a reportagem de A Gazeta percorreu 557 quilômetros e visitou Linharinho, Morro da Onça e São Domingos, três quilombos localizados em Conceição da Barra, em busca de histórias que resgatam como se deu a formação da população negra capixaba.
As visitas resultaram em uma série de quatro reportagens especiais relacionadas ao Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, agora celebrado com um feriado nacional em 20 de novembro, que serão publicadas ao longo dos próximos dias.
Este primeiro capítulo aborda a presença quilombola no município e as tradições mantidas no presente; o segundo, a falta de água potável e o difícil acesso à luz pelos povos tradicionais; o terceiro, o desafio de passar a tradição aos mais jovens e engajá-los na luta pela terra; o quarto, o processo de demarcação dos territórios.
O livro que dona Miúda segura nas mãos é uma cópia do registro de venda de negros escravizados na região. Estima-se que em 1839, 30,7% da população cativa no Estado era composta por africanos, de acordo com o mapa da população da Província do Espírito Santo feita pela Secretaria de Governo da época, disponibilizado pelo Arquivo Nacional.
As três localidades capixabas que mais receberam escravizados vindos do continente africano são o Sapê do Norte, a Região Metropolitana e o Sul do Estado, conforme destaca o historiador Marcus Vinicius Sant’Ana.
“Nós temos aqui três 'troncos' de escravizados que vieram da África para o Espírito Santo, que seriam os Iorubás Nagôs, do Noroeste da África, os Bantos, que pega mais aquela região de Angola e vai ali até o centro da África, e Moçambique, que foi uma colônia portuguesa. Importante dizer que esses 'troncos' são vistos de um ponto de vista colonizador. Internamente, são várias outras populações pensadas sobre essa etiqueta”, afirma.
Parte dos negros escravizados que fugia da violência do regime escravagista passou a se refugiar em locais chamados de quilombo. A palavra tem origem no idioma quimbundo (ou kimbundo), língua africana, e deriva do banto, falada pelos povos da região onde fica Angola atualmente. Significa "acampamento" ou "local fortificado".
“Um quilombo, inicialmente, era de fato um local fortificado, onde os negros escravizados podiam ter um local como fuga do sistema escravista, mas quando a gente trata isso na história, principalmente de uma forma breve, a gente não consegue ter a dimensão do que era o quilombo. Não só Palmares, que é a grande representação, mas vários outros se configuram como uma sociedade mesmo, com divisões, engrenagens sociais e econômicas. Não eram totalmente isolados, tinham contato com a sociedade, conseguiam fazer trocas comerciais”, contextualiza o historiador.
Dos 78 municípios capixabas, 26 têm população quilombola, totalizando um contingente de 15.652 pessoas, sendo que a maioria fica no Sapê do Norte.
Destaca-se na região o município de Conceição da Barra, que tem o maior percentual de quilombolas por habitantes do Estado. Dos 27.458 moradores, 4.074 são quilombolas, o que corresponde a 14,74% da população do município, segundo o Censo 2022.
No Estado há 43 comunidades certificadas autodeclaradas como remanescentes de quilombolas distribuídas em: Conceição da Barra (13), Cachoeiro do Itapemirim (1), Santa Leopoldina (1), Presidente Kennedy (1), Fundão, Ibiraçu e Santa Teresa (1), São Mateus (14), Jaguaré (1), Vargem Alta (1), Itapemirim (1), Guarapari (3), Jerônimo Monteiro (1), Linhares (3), Montanha (1) e Guaçuí (1).
Cabe à Fundação Cultural Palmares emitir as certidões de autodefinição e, após essa etapa, as comunidades quilombolas podem pedir a titulação do território, popularmente chamada de demarcação da terra, ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
A partir de um cruzamento de informações obtidas com a Fundação Cultural Palmares e com o IBGE e de dados de georreferenciamento disponibilizados em plataformas como o Google Maps e levantados pela iniciativa iPatrimônio, a reportagem de A Gazeta conseguiu catalogar a localização de cada um dos 43 quilombos certificados no Espírito Santo.
No infográfico abaixo, os municípios com a cor mais forte são aqueles com o maior contingente populacional de quilombolas. Já os pontos em vermelho mostram onde estão situados os quilombos de cada localidade, nos quais os maiores representam aqueles territórios que já tiveram suas populações catalogadas pelo Censo.
“A região se desenvolveu em cima da agricultura, da farinha de mandioca, da extração de madeira, mas principalmente por causa da proximidade com a Bahia. Então, para suprir toda aquela demanda, muitos escravizados foram para lá e essa vastidão, esse grande sertão que era o Sapê do Norte, de grandes terras, também facilitou a existência de quilombos, o que era muito difícil, por exemplo, de se pensar na Região Metropolitana, um local mais apertado”.
Na maioria das comunidades quilombolas a renda ainda está atrelada à produção rural, como destaca o quilombola Jorge Blandino, de 69 anos.
“Hoje nós temos uma renda aqui, que nós plantamos um aipim, plantamos uma mandioca, plantamos uma abóbora, plantamos uma melancia, fazemos entrega no CRAS (Centro de Referência de Assistência Social), fazemos entrega na merenda escolar. Já somos aposentados, fazemos beiju, que ajuda bem a nós. Hoje a gente trabalha com isso aí”.
O mesmo ocorre em Morro da Onça, a cerca de 11 quilômetros dali. “Hoje a gente não consegue sobreviver mais do Rio Cricaré, a nossa única renda é realmente a produção com a agricultura, lavouras brancos e, com fé em Deus, com derivados da mandioca que vai trazer renda para as famílias, até que o nosso rio de fato tenha condições para nós voltarmos a viver dele”, conta Josielson Gomes dos Santos, de 42 anos.
Território quilombola de Linharinho, em Conceição da Barra, Norte do Espírito Santo
O historiador reflete ainda que no período pós-abolição da escravatura, ocorrida em 13 de maio de 1888, com a assinatura da Lei Áurea, ocorreu um processo de “falsa inserção na sociedade”, com diversas dificuldades impregnadas aos negros, como relembrado por dona Miúda, de Linharinho.
“Nós somos famílias de povos tradicionais, família de Caboclos, família de Tambores, nós somos de religião de matriz africana. Eu nasci numa casa de barro, casa simples, trocava a palha de seis em seis meses quando chovia. Nós não conhecíamos nem o que era fogão a gás, nem nada, nem televisão nem nada. Nós trabalhávamos, sempre tivemos graças a Deus o que comer, porque chovia bem, tinha muita água, pescava, ia para o mangue, tirava caranguejo, nosso pessoal caçava para comer”.
Situação semelhante é citada pela quilombola Luzinete Serafim Blandino, de 65 anos, moradora de São Domingos e esposa de Jorge. “O quilombo já existia há muitos tempos. Essa terra foi requerida do Estado, não tinha dono. Antigamente as terras, o que os meus avós contavam é que essas terras foram herança dos escravizados, que foram eles que ficaram nessa terra, porque vieram para trabalhar, foram trazidos dos continente deles para trabalhar. E quando eles trabalharam como escravos, sofreram. Aqueles que aguentaram, viveram. Os que não aguentaram, morreram antes de serem libertos”.
Mesmo com todas essas dificuldades, o historiador avalia que a população negra participou da criação de elementos culturais e artísticos que hoje são entendidos como identidade capixaba, estando presentes até hoje não só nos quilombos, mas na sociedade de Conceição da Barra e do Estado.
“Principalmente na formação social, você vê muitos negros em Conceição da Barra, em São Mateus, naquela parte do Norte. Essa é uma herança de toda essa questão quilombola e de um passado escravista daquela região. Mas também na formação cultural e religiosa daquele local. A gente vê aí muito forte o Ticumbi, o Jongo de Santana, as celebrações de São Benedito, São Sebastião, que apesar de serem Santos católicos, você vê diversos elementos da origem da cultura negra na celebração, a presença do tambor, do Reisado, encenações de reis e rainhas, presença forte da dança. Isso são representações de herança da cultura africana”, avalia o historiador.
“É a amostra de uma apropriação da cultura, do ato de aculturar, de trazer outras culturas e se apropriar. No caso, o negro africano mostrando a sua interpretação da fé, da sua interpretação do sagrado, e desenvolvendo uma nova forma de cultuar aqueles santos que, apesar de serem o santo dos colonizadores, exerciam ali para aqueles negros em determinada época uma determinada sacralidade”.
O Censo 2022 mostrou em dados a percepção apresentada pelo historiador. Em Conceição da Barra, 57,15% da população é parda, enquanto 21,31% é preta. O índice é maior que a média do Estado, que tem 49,79% da população parda e 11,21% preta.
Na avaliação de Marcus Vinicius Sant’Ana, é necessário entender a cultura negra como parte formadora da sociedade e inseri-la na formação de base em uma perspectiva educacional.
Território quilombola de São Domingos, em Conceição da Barra, Norte do Espírito Santo
“É preciso uma educação de base e, para além disso, quando a gente pensa a sociedade como um todo, elementos de conexão. É preciso fazer com que esses elementos culturais estejam presentes no cotidiano das pessoas através de amostras, seminários, monumentos, pinturas, gravuras, enfim, ações e atividades que tragam para o cotidiano da cidade manifestações culturais que mostrem que eles são formadores daquela sociedade em si”, entende Marcus Vinicius Sant’Ana.
O entendimento do historiador é de que é necessário romper com os limites cronológicos ou de regiões e não deixar eventos tradicionais dessas comunidades reclusos a elas, tirando-os da perseguição e do aspecto de marginalidade.
Território quilombola de Morro da Onça, em Conceição da Barra, Norte do Espírito Santo
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