A demora no socorro nos casos de violência doméstica pode ser a diferença entre a vida e a morte
A demora no socorro nos casos de violência doméstica pode ser a diferença entre a vida e a morte . Crédito: Ilustração/Larissa Pereira

Polícia demora a chegar, dizem mulheres agredidas em área dominada por tráfico

Policiais e fontes da segurança pública afirmam que, em alguns locais, é preciso reunir mais viaturas para atender ocorrências, o que faz o socorro demorar

Tempo de leitura: 6min
Publicado em 07/12/2023 às 08h30

Mulheres vítimas de violência doméstica que moram em áreas dominadas pelo tráfico são especialmente vulneráveis. Até para pedir ajuda em um momento de vida ou morte elas encontram obstáculos: “Liguei para a polícia, esperei mais de meia hora e ninguém veio”. “Disseram que não encontraram meu endereço. Quando chegaram, o agressor já tinha fugido”. “Liguei, os vizinhos ligaram. Mas não vi polícia. Podia ter acontecido uma tragédia maior”, relatam vítimas ouvidas por A Gazeta.

Informações recolhidas junto a agentes de segurança, sob condição de anonimato, corroboram as reclamações das moradoras das comunidades conflagradas. A polícia demora a chegar, quando chega. Mas revela também outro ponto importante: policiais e guardas “torcem o nariz” para ocorrências relacionadas à Lei Maria da Penha. E, na ausência de um Estado que faça valer as leis para essas mulheres, o poder paralelo toma conta desse lugar.

Oficialmente, a Polícia Militar diz não ter conhecimento sobre os problemas citados pelas fontes ouvidas por A Gazeta.

“Nesse 'paraestado', onde os criminosos mandam, as pessoas se sentem mais confortáveis, mesmo sabendo que é um local dominado por facção. Ela se sente mais segura porque ali a lei é obedecida e no Estado formal não é.” A análise é de um policial militar que conhece bem o trabalho nas comunidades conflagradas da Grande Vitória.

Ele concordou em conversar com A Gazeta sob a condição de não ter o nome revelado. Segundo ele, ocorrências relacionadas à Lei Maria da Penha em locais dominados pelo tráfico exigem um cuidado extra.

“Não dá para mandar uma viatura só, tem que mandar mais. E às vezes não tem disponibilidade de outras guarnições para ir ao local, aí demora (o atendimento)”, atesta.

Como o tempo é um fato preponderante em casos de violência doméstica — qualquer minuto a mais pode ser a diferença entre a vida e a morte de uma mulher — os moradores desses locais buscam a alternativa possível.

Policial militar

 

"A pessoa que está ali (sofrendo a violência) procura o dono do morro pra resolver o problema dela"

Ninguém quer fazer

Para além desse problema, fontes ouvidas por A Gazeta relataram ainda outra questão preocupante. Policiais não gostam de atender ocorrências dessa natureza, consideram um “problema menor” quando comparado a um roubo ou uma apreensão de armas e drogas, por exemplo.

“Ninguém quer atender Maria da Penha. Não é prioridade, os policiais chamam isso de ‘chiqueirada’. Falam ‘vou lá atender barraco de marido e mulher’”, conta uma das fontes ouvidas pela reportagem.

A promotora de Justiça Cristiana Esteves Soares, coordenadora do Núcleo de Enfrentamento às Violências de Gênero em Defesa dos Direitos das Mulheres (Nevid) do Ministério Público do Espírito Santo, reconhece a questão.

“Eles consideram uma ocorrência menor e mais trabalhosa. Chegam ao local e têm que conversar com as partes, levar as partes para fazer o registro da ocorrência, que dura no mínimo uma hora. É demorado e precisa do policial ter sensibilidade com a temática para atender e realmente isso é difícil”, diz.

Para atacar esse problema, o Nevid promove oficinas com policiais militares e civis de como fazer o atendimento humanizado às mulheres vítimas de violência. Em 2023, foram oito turmas, totalizando 300 policiais. Quando as vagas são disponibilizadas, os chefes de polícias indicam os nomes e a participação desses agentes é obrigatória.

“Sempre trabalhando nessa perspectiva de fazer um atendimento humanizado, sem julgamentos. Muitas vezes ele (o policial) chega na ocorrência e vê que já esteve naquele local três, quatro vezes. E ele fica pensando que aquela mulher gosta de apanhar. Mas isso não é verdade. Ela está em um ciclo difícil de sair. Se em um relacionamento saudável é difícil sair, imagine em um abusivo”, explica a promotora.

A coordenadora de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres na Defensoria Pública do Estado, Maria Gabriela Agapito, concorda que é preciso investir cada vez mais em capacitação. 

“Tem que ter qualificação desses profissionais que fazem o primeiro atendimento dessas mulheres, inclusive a Polícia Militar, as delegacias, a rede de atenção social, por onde quer que a mulher chegue, até nos serviços de saúde”, ressalta. 

Traficantes não gostam que mulheres chamem à polícia quando são vitimas de violência
Traficantes não gostam que mulheres chamem a polícia quando são vítimas de violência. Crédito: Ilustração/Larissa Pereira

Métodos violentos

Especialista em Segurança Pública e ex-secretário estadual da pasta, Henrique Herkenhoff afirma que esse problema não existe só no Espírito Santo. Em outros locais do país, onde há territórios dominados por facções criminosas, a entrada da polícia é dificultada.

Nesse contexto, os próprios traficantes atuam para reprimir os crimes, não porque são justos e corretos, mas porque a presença da autoridade policial atrapalha os negócios ilícitos.

Henrique Herkenhoff

Especialista em Segurança Pública e ex-secretário estadual

"O tráfico vai reprimir qualquer tipo de atividade criminosa que não seja a dele próprio. É claro que isso não é uma solução e nem é aceitável que ocorra. Não é porque acontece que a gente pode se conformar"

Segundo Herkenhoff, usando uma metodologia violenta, com a presença de “tribunais do tráfico”, eles se legitimam perante aquela comunidade, ganhando apoio de, pelo menos, parte dela.

“A aceitação desse método não é universal, muitas pessoas não querem que os outros sejam mortos, mas querem resolver o problema deles. Eles (os criminosos) fazem isso em parte para que ninguém invente de chamar polícia ali e em parte para que os consumidores se sintam sempre seguros de ir lá comprar as drogas”, analisa.

Perigo iminente

Por isso, a entrada de uma guarnição (uma viatura com dois policiais) nesses locais, ainda que para atender a um chamado de urgência, tem que ser feita com cuidado. Um movimento em falso é perigoso não só para os policiais, mas para a comunidade.

“Se eu vou com uma guarnição, eu ponho em risco a guarnição e os moradores. Os criminosos podem atacar, pode haver uma troca de tiros e gerar um dano colateral (bala perdida). Se a gente já chega com superioridade de força, o risco do conflito é menor”, diz o policial militar.

O mesmo vale para a patrulha Maria da Penha, que, na teoria, deveria promover visitas tranquilizadoras periódicas nas residências das mulheres que têm medidas protetivas contra os agressores.

Como já relatado em outras reportagens desta série, há vítimas que, mesmo com medo, recusam a inclusão do endereço no programa para não desagradar a liderança criminosa com a presença esporádica das viaturas.

Porém, mesmo aquelas que estão no programa, podem não ser atendidas com a frequência necessária. A depender de como está aquela comunidade em relação à chance de conflitos, as viaturas evitam entrar para não correr riscos desnecessários.

“Pode ser que a gente chegue lá e o agressor esteja ele mesmo armado, pode ser que ele seja do tráfico, que haja ilícitos na residência. Não tem como atender sozinho”, acrescenta o policial.

Policial é servidor público

O secretário de Estado de Segurança Pública, Coronel Alexandre Ramalho, diz que não tem conhecimento de policiais que não queiram atender as ocorrências relacionadas à Lei Maria da Penha.

Coronel Alexandre Ramalho

Secretário de Estado de Segurança Pública

"Policial não tem que torcer nariz para nenhuma demanda da sociedade. Ele é servidor público, não pode selecionar o clamor da população num momento de socorro. Quem determina o planejamento para atendimento é a gestão estratégica da instituição"

Ele acrescenta que os militares, notadamente aqueles que integram a Patrulha Maria da Penha, são qualificados e treinados para lidar com as especificidades desse tipo de violência.

“É uma tropa instruída, com treinamento para lidar com essas pessoas. É feita toda uma entrevista com essa mulher, o atendimento não é na rua, é dentro da residência, fazemos o máximo para dar a segurança para elas”, destaca.

Ramalho orienta ainda que mulheres que não tenham sido atendidas ao fazer um chamado pelo 190, ou que tenham problemas com policiais durante alguma interação, podem acionar a ouvidoria da Secretaria de Estado de Segurança Pública ou denunciar pelo Disk Denúncia 181.

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