Em uma área de quase 295 mil metros quadrados na região dos bairros Jabaeté e Normília da Cunha, em Vila Velha, estão pelo menos 870 imóveis — e um número ainda não confirmado de pessoas —, que compõem as chamadas Vila Esperança e Vila Conquista. A área, ocupada desde 2017, há anos é alvo de uma briga judicial que quase terminou em uma ação de reintegração de posse no último dia 8 de abril, derrubada por uma liminar expedida pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Antes da expedição da liminar, muitas famílias chegaram a deixar a ocupação, com medo de conflitos, já que a ação de reintegração previa atuação policial e ação de oficiais de Justiça para cumprimento dos mandados de retomada do terreno de propriedade da Fazenda Moendas Empreendimentos e Participações Ltda., também conhecida como “Fazendinha 13”.
O processo de reintegração corre na Justiça desde 2019. No ano seguinte, a Prefeitura de Vila Velha, sob gestão do ex-prefeito Max Filho, chegou a publicar um decreto declarando a área como de interesse social, visando a transformação do espaço em um loteamento. Em 2022, porém, o decreto foi revogado pelo prefeito Arnaldinho Borgo que, atualmente, apenas cita que a área é particular.
Entre os ocupantes que ficaram no terreno estão famílias de diferentes perfis e realidades. No começo de abril, enquanto ainda reorganizavam suas casas pela então iminente necessidade de mudança, muitos deles conversaram com a reportagem de A Gazeta. Algumas famílias contaram sobre a chegada até a vila, o medo de perder a casa e também sobre as expectativas sobre um possível processo de regularização do que querem reconhecer como bairro.
Em meio ao processo sobre a destinação correta do terreno, ainda existem divergências sobre o número real de pessoas que vivem no espaço. Em uma estimativa dos próprios ocupantes, são mais de cinco mil pessoas; para a Prefeitura de Vila Velha, com base em dados de 2022, são 640 famílias (sem a definição do número de pessoas); já para a Defensoria Pública do Espírito Santo (DPES), o assentamento tem 800 famílias. Não existem dados oficiais que comprovem os números.
O perfil dos moradores

Nas ruas de chão batido, as casas começaram a ser construídas com pedaços de móveis reaproveitados. Com o passar dos anos, moradores ergueram pequenas estruturas de alvenaria, mas, devido à falta de recursos financeiros, o acabamento deixou de ser uma prioridade.
Esse é o caso de Nelson Barbosa e Rosa Morais, casados há 25 anos e vivendo na Vila Esperança há dois. Com a liminar que decidiu pela suspensão da reintegração de posse, o casal celebrou a possibilidade de permanecer — pelo menos por enquanto — no pequeno barraco que mescla alvenaria, tábuas de madeira, lonas e outros materiais, muitos deles conquistados por meio de doações de familiares e amigos.
“Cheguei aqui em uma situação em que eu não tinha condições de pagar aluguel. No primeiro terreno que conseguimos aqui, eu não tinha madeira, não tinha nada, mas comecei minha caminhada ali”, conta Nelson, ex-auxiliar de serviços gerais e, atualmente, desempregado, após a descoberta de um problema na perna direita que afeta sua mobilidade.
Segundo Nelson, pelas dificuldades financeiras, muitas vezes a alimentação de quem reside na vila é composta por alimentos cultivados ali mesmo nos quintais, como batatas, aipim, frutas, legumes e verduras.
Nelson Barbosa
Vive em Vila Esperança, em Vila Velha
As pessoas não têm condições de pagar um aluguel e, muitas vezes, não têm um pão para dar aos filhos para comer, mas, no lote, elas têm um pé de aipim para cozinhar para que o filho coma alguma coisa antes de ir para o colégio.

Antes de ir para a ocupação, Nelson pagava R$ 600 de aluguel em uma casa em Santa Rita, também em Vila Velha. Com a descoberta do problema na perna — que ainda não foi esclarecido pela dificuldade na marcação de consultas médicas —, o trabalho de carteira assinada foi interrompido, e a renda de pouco mais de um salário mínimo (R$ 1.518) foi extinta.
“Hoje, o pouco dinheiro que entra é por pequenos trabalhos que faço como auxiliar em obras, por exemplo. Minha prioridade é comprar materiais de construção para o meu cantinho, onde quero receber meus filhos e meus netos em paz e com alegria”, diz o homem. Junto dele, a esposa afirma que alimenta o sonho de voltar a ter o seu próprio negócio.
“Quero minha loja bem aqui na entrada de casa. Em Santa Rita, eu tinha um brechó, mas fechei porque estava sem condições de manter. Agora vamos erguer a cabeça e começar tudo de novo, mas de uma maneira diferente”, projeta Rosa.
Independência para viver

A poucos metros do casal vive a aposentada Maria Regina de Souza. Ela residia antes em um lote que era dividido com a mãe e com os irmãos em Vitória. Na ocupação em Vila Velha, conta que encontrou a independência que buscava para tocar sua vida.
“Eu morava em Resistência (Vitória), mas vim para cá em busca de um lote só para mim. Lá a gente vivia embolado com irmão, e é bom ter o que é da gente. Vim para cá na esperança de ter a minha terra”, disse Maria. Para ela, Vila Esperança é um espaço legítimo, já que “não existe bairro sem ocupação”.
“Isso aqui já tem quase nove anos. Vivemos nessa luta, pedindo a Deus para que tudo dê certo. Minha esperança é comprar meus materiais para terminar de construir a minha casa. Hoje, temos as dificuldades com energia e com água, por exemplo, mas queremos regularizar o bairro para que a gente tenha uma ligação [de eletricidade] ‘certinha’”, sonha Maria.
Maria Regina de Souza
Aposentada de Vila Esperança
Sem luta, não há vitória. Estamos aqui lutando para ter um lugar digno para morar.
Defensoria Pública faz alerta para garantia de direitos
Para a defensora pública Marina Dalcomo, muitas das famílias que vivem na ocupação, segundo dados do Cadastro Único (CadÚnico), estão na linha da extrema pobreza e ainda são alvos de ações, como auxílios financeiros, que não resolveriam o problema da falta de moradia.
“No entender da Defensoria Pública do Espírito Santo, para a construção de um plano de remoção adequado, seria necessário, primeiramente, fazer, de fato, o atendimento social dessas famílias, identificar qual é o perfil socioeconômico, quais são as vulnerabilidades encontradas e fazer os encaminhamentos devidos a partir disso”, pondera Marina.
Um dos principais motivos para a Defensoria Pública pedir o impedimento da ação de reintegração de posse em Vila Velha tem a ver com o fato de a desocupação da área pelas famílias estar acontecendo “de maneira forçada e sem garantia de alternativa habitacional em outro lugar”, como consta no pedido liminar.
Isso, segundo a Defensoria, “viola os direitos humanos, sendo necessária a elaboração de plano de reassentamento prévio”.
Para Marina Dalcomo, o melhor caminho pode estar alinhado a um melhor conhecimento sobre o perfil das famílias por parte do poder público, para que sejam encontradas alternativas de encaminhamento garantindo moradia, saúde e educação aos ocupantes das vilas.
“A grande questão é que isso não foi feito no curso da ação atual, e a falta desse plano colocaria em risco todas essas famílias, já que elas sairiam do local sem uma previsão de para onde elas levariam seus pertences e como seria essa saída, sem uma mínima organização ou mínima garantia de como se daria esse processo”, diz a defensora.

Entre as poucas famílias que possuem o CadÚnico atualizado na ocupação está a da doméstica Jovenildes Soares. Com ela, além do marido, vivem seis crianças que contam apenas com os recursos do Bolsa Família a cada mês. Por problemas de saúde, ela e o marido já não conseguem emprego e encontraram na Vila Esperança uma oportunidade para reconstrução da vida.
“Quando eu cheguei aqui, eu pedi apenas um pedacinho de terra para levantar um cômodo e um banheiro. Consegui um lote maior onde hoje tenho várias plantações e crio minhas crianças, sendo que quatro delas são especiais e dependem de remédios controlados”, resume a mulher.

Segundo Jovenildes, a expectativa da família é voltada para a regularização do bairro. Eles sonham com pavimentos nas ruas e um acesso mais simples aos bairros vizinhos, que contam com escolas e serviços de saúde, por exemplo.
“Aqui nós construímos tudo com materiais doados e reaproveitados para levantar as paredes. Agora queremos bater um cimento nesse chão, porque já teve época em que as crianças quase perderam os pés por conta de bicho-de-pé (infecção de pele causada por um tipo de pulga) no meio dessa terra”, lembra.
Com a decisão que impediu temporariamente a reintegração de posse, os próximos dias e meses podem marcar o destino dos moradores de Vila Esperança sobre a permanência ou retirada das casas da ocupação.
“O sonho de cada um aqui é que esse espaço seja reconhecido como bairro. Nos próximos dias, vamos conversar com nossa advogada para entender o que deve ser feito e, unidos, vamos manter a nossa organização para a manutenção dessas famílias que estão aqui porque realmente precisam, porque não têm para onde ir”, pondera Adriana Paranhos, a ‘Baiana’, líder comunitária da região.
O outro lado

Por trás do processo de reintegração de posse está a Fazenda Moendas Empreendimentos e Participações Ltda. Segundo o advogado Renan Sales, que representa o proprietário Carlos Fernando Machado, todas as medidas judiciais cabíveis serão tomadas para evitar que o “Supremo Tribunal Federal seja induzido ao erro e que invasores de terra particular no Espírito Santo e no Brasil sejam premiados”.
Em nota enviada à reportagem, a defesa da empresa salientou que a área das vilas sempre foi privada e particular, sendo alvo de uma invasão desordenada e ilegal.
“Não se pode invadir prioridade privada sob o pretexto de direito à moradia. Invasão de terra é crime previsto em lei. Além da invasão ilegal, há no processo prova da prática de crimes ambientais, tráfico de drogas e homicídios, além de relatos diversos de venda irregular de terreno de invasão. Em 2022 houve liminar semelhante, que suspendeu a primeira reintegração do proprietário na posse, e o que aconteceu após esse período foi o aumento desordenado do número de invasores no local”, diz a nota.
Ainda segundo a declaração da defesa, o processo tem gerado “severos prejuízos em razão da invasão ilegal”.
Questionada sobre o assunto e sobre sua atuação no caso, a Prefeitura de Vila Velha, que foi alvo de manifestação por parte dos moradores da ocupação em março, salientou que aguarda orientações judiciais para mais manifestações sobre a Vila Esperança.
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