Imagine viver sem acesso a água potável e energia elétrica. Pode ser uma situação incomum, principalmente para quem vive nos grandes centros urbanos, mas essa é a realidade de quilombolas de Conceição da Barra, no Norte do Espírito Santo, que relatam passar por isso rotineiramente.
"As coisas de hoje em dia não estão competindo com as coisas de antigamente. Antigamente, a gente saía daqui, ia ali naquele Rio Cricaré. A gente vinha para o córrego pescar e era quase a mesma coisa que o rio, quando não tinha eucalipto. As coisas hoje acabaram. Secaram os córregos quase tudo, acabou com a natureza", conta Jorge Blandino, de 69 anos, morador do quilombo de São Domingos.
Durante dois dias, a reportagem de A Gazeta percorreu 557 quilômetros e visitou Linharinho, Morro da Onça e São Domingos, três quilombos localizados em Conceição da Barra. As visitas resultaram em uma série de quatro reportagens especiais relacionadas ao Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra.
Este terceiro capítulo aborda a falta de água potável e o difícil acesso à luz pelos povos tradicionais. O primeiro capítulo abordou a presença quilombola no município e as tradições mantidas no presente; o segundo mostrou o desafio de passar a tradição aos mais jovens e engajá-los na luta pela terra; e o quarto vai falar sobre o processo de demarcação dos territórios.
Em conversa com a reportagem, quilombolas dos três territórios visitados por A Gazeta relataram a inexistência de água potável nas torneiras para consumo dos moradores das localidades tradicionais.
"Nós não temos água potável. Nós mesmos furamos a cacimba (buraco cavado até atingir um lençol de água subterrâneo), como sempre, nós temos cacimba. Tem gente que já tem poço artesiano, mas nós temos a cacimba. Têm vezes que nós não temos nem água. Eu mesmo bebo a água daqui, mas tem que comprar água", conta Elda Maria dos Santos, conhecida como dona Miúda, de 65 anos, moradora de Linharinho.
No quilombo de Morro da Onça a situação é semelhante, como destaca o agricultor Josielson Gomes dos Santos, de 42 anos. "A gente tinha muita abundância de água na comunidade, muito tempo atrás. Mas,de 2015 a 2017 a gente teve um momento muito critico aqui na comunidade. Praticamente nossos córregos, nossas cacimbas secaram, tivemos que ser atendidos pelo município com carro pipa para ter água para consumo. Não podia lavar roupa, fazer limpeza da água. De 2018 para cá foram tempos mais chuvosos".
Os quilombolas afirmam que a água diminuiu nos territórios devido ao avanço da monocultura de eucalipto na região do Sapê do Norte, onde estão localizados os quilombos. "Tem lugar que tem aquele caminhozinho da água, só que não é uma água mais da gente usar, porque nasceu mato no meio dos córregos. Só quem sabia que ali era um córrego era a gente", alega Luzinete Serafim Blandino, de 65 anos, esposa de Jorge.
Moradora de São Domingos há seis décadas, ela relembra que o avanço do desmatamento na região comprometeu as nascentes que abasteciam os córregos locais. "A gente subia em cima dos morros para ver aí aqueles 'tratorzão' com o 'correntão' no meio derrubando tudo. Eles derrubavam e aquilo ficava tudo forrado. Deixava murchar um pouco e queimava. Mas era madeira nativa, que não queimava e eles iam empurrando para as grotas, onde tinha as nascentes que abasteciam os córregos. Os entulhos ajudaram a tampar as nascentes".
A diminuição do volume de água nos córregos também comprometeu atividades tradicionais dos quilombolas, como a pesca. "A única renda que a gente tá tendo aqui na comunidade é realmente a produção com a agricultura, lavouras brancas (plantações temporárias) e, com fé em Deus, com a produção de derivados da mandioca até que, de fato, o nosso rio tenha condições d'agente voltar a viver dele", lamenta Josielson.
Os moradores quilombolas também relatam que têm medo de beber a água dos córregos no entorno da comunidade, devido ao medo dos defensivos agrícolas utilizados na agricultura da região atingirem os mananciais.
Preocupados com mais escassez de água nos quilombos, os moradores têm buscado levar mais práticas sustentáveis para dentro das comunidades. É o caso de Luzinete, que participa do Comitê de Bacias Hidrográficas. Ela destaca, no entanto, que os povos tradicionais sempre tiveram preocupação com o meio ambiente e entende que a discussão sobre uso adequado dos mananciais deveria ser feito, principalmente, pelos agricultores ao entorno do território.
"Água é vida, então se a gente não tiver água doce, água potável para beber, a gente não vai sobreviver. Então se a gente não vai sobreviver, quanto mais os animais, as plantas. A gente vê que cada vez mais está ficando escasso a questão da água. A gente tem uma grande preocupação porque a gente não vê o estado brasileiro com ações efetivas para preservar esse bem tão precioso que nós temos que é a água potável para a nossa sobrevivência. A gente só vê noticiar aí que de fato o aquecimento global está subindo ao teto e que o nosso planeta está virando uma bomba atômica. Isso é muito preocupante! A gente tem que pensar nos nossos filhos, nos nossos netos que vêm aí, nas próximas gerações, porque se a gente não tomar uma atitude, a gente não vai ter um planeta para que de fato a nossa geração continue sobrevivendo em cima dessa terra", manifesta Josielson.
Instabilidade na luz
Além da falta de água potável há instabilidade com a luz elétrica. Em quilombos como Linharinho e São Domingos, que já foram certificados pela Fundação Cultural Palmares e estão em processo de titulação do território, o acesso à energia é mais estável. Já Morro da Onça, que ainda busca reconhecimento de órgãos oficiais, a eletricidade em todas as casas só foi ativada há seis meses, após uma ação da Defensoria Pública do Espírito Santo (DPES).
"A energia para nós da comunidade chegou mais menos há uns 20 anos, com o Luz Para Todos. Mas de lá para cá foi muita dificuldade, porque não veio mais o programa e perante a EDP a gente não conseguia pedir a ligação de energia porque a gente não tinha nosso território titulado. A EDP exigia documentações, umas famílias tinham energia e as outras não conseguiam porque não tinha as documentações. Essa casa de farinha não conseguia funcionar porque não tinha energia. Só agora em 2024 que a gente conseguiu com a Defensoria uma ação pública para a EDP atender as famílias tradicionais", relembra Josielson.
Território quilombola de Linharinho, em Conceição da Barra, Norte do Espírito Santo
A DPES, por meio do Núcleo de Defesa Agrária e Moradia, conseguiu, em novembro de 2023, obter uma decisão liminar para que a EDP regularizasse o fornecimento de energia de duas mil pessoas nas comunidades quilombolas da região do Sapê do Norte.
Mais de duas mil pessoas não tinham acesso regulamentado à energia na região devido à dificuldade de comprovação da titularidade dos imóveis, exigida pela concessionária. A justiça determinou, então, que a empresa a aceitasse a autodeclaração de quilombola e o endereço como prova de posse ou propriedade.
Em sua decisão, o magistrado da 4ª Vara Cível de Vitória ordenou também a apresentação de um diagnóstico completo das 33 comunidades quilombolas do Sapê do Norte em até 30 dias, para identificar as necessidades. As comunidades de Conceição da Barra e São Mateus tentam desde 2012 regularizar seus imóveis junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
“O fornecimento de energia é um serviço essencial e está intrinsecamente ligado à dignidade da pessoa humana. Desta forma, a exigência da EDP viola um direito fundamental das comunidades quilombolas, já que nenhum órgão público ou concessionária pode estabelecer regras que impeçam as pessoas de acessaram serviços públicos essenciais”, afirmou a DPES.
Território quilombola de São Domingos, em Conceição da Barra, Norte do Espírito Santo
O que dizem os citados
Procurada pela reportagem, a Companhia Espírito Santense de Saneamento (Cesan) afirmou resumidamente que as comunidades citadas não estão não área de concessão da empresa.
A Secretaria de Estado de Direitos Humanos (SEDH), por meio da Gerência de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, por sua vez, informa que mantém interlocução permanente com os quilombolas da região de Conceição da Barra. Sobre a questão água, disse que está em diálogo com a Cesan e o Serviço Autônomo de Água e Esgoto de São Mateus (SAAE) "em uma perspectiva de garantir um abastecimento que contemple de forma eficiente o território".
Já a EDP declarou que segue rigorosamente as normas e diretrizes da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), órgão regulador do setor elétrico, para realização de ligações novas de energia. E, em alinhamento com a Defensoria Pública e a Secretaria de Estado de Direitos Humanos, foi possível superar as exigências do órgão regulador e viabilizar o atendimento às famílias quilombolas.
"A companhia acrescenta ainda que em função de novos cadastramentos realizados, as obras para atendimento destes clientes estão em andamento".
Território quilombola de Morro da Onça, em Conceição da Barra, Norte do Espírito Santo
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