Cercada pela pobreza extrema e por casas improvisadas, parte sem acesso às redes de água, esgoto e energia elétrica, Vila Esperança é uma região de Vila Velha que ainda não tem escola – nem pública nem privada. Como a comunidade não conta também com transporte público, crianças e adolescentes precisam andar quatro quilômetros por dia a pé para ir e voltar dos colégios localizados nos bairros vizinhos.
Em meio a tanta escassez social e educacional, existem pessoas quem tentam fazer com que a palavra esperança não fique restrita apenas ao nome dessa área de ocupação, ainda não considerada um bairro de Vila Velha, na região de Terra Vermelha. Meninos e meninas têm recebido estímulo para vencer as dificuldades e se dedicar aos estudos por meio do projeto Fome de Leitura, que oferece aulas de reforço e atividades extracurriculares.
Na comunidade, o atendimento é realizado no imóvel da instituição Resgatando Vidas e executado pela Mais Amor, uma Organização Não Governamental (ONG), com sede em Normília da Cunha, na Região Cinco, outro bairro pobre que também é alvo das ações de apoio escolar.
O Fome de Leitura, liderado pelo médico Diego Dalcamini, de 40 anos, morador de Vila Velha, já atende hoje cerca de 350 crianças e adolescentes em risco social de Vila Esperança e de Normília. O projeto recebe apoio de instituições como Unimed Vitória e do Sicoob/ES para oferecer aulas de música e jiu-jítsu. Também fornece material escolar e alimentação, como almoço, jantar e lanche, dependendo do turno das atividades.
Diego Dalcamini
Médico
"Eu fiquei motivado após perceber que a educação muda muito a vida das pessoas. Ela transforma o futuro"
Agreidina Pereira Felício Medeiros, a Tia Gleidy, tem 34 anos e é uma das professoras das aulas de reforço escolar em Vila Esperança. “Eu comecei no projeto como uma mãe curiosa, querendo ajudar as crianças. Agora, sou a líder do projeto aqui. Além das aulas de reforço, ajudo com as brincadeiras e doações, além de trabalhos na comunidade”.
Ela destaca que muitas crianças estão sendo alfabetizadas no projeto. “Muitos alunos que já estavam na sétima série (oitavo ano do ensino fundamental) não sabiam fazer contas, como de somar. Outras chegaram aqui sem saber ler e estão aprendendo a juntar sílabas”.
Ainda que tenha o amparo de uma pedagoga formada, Gleidy não concluiu o ensino médio e, atualmente, está fazendo o Ensino para Jovens e Adultos (EJA). Ela deseja ingressar numa universidade. "Eu sempre gostei de mexer com crianças, sempre trabalhei com elas na igreja. Depois que comecei a lidar com esse público, percebi que preciso terminar meus estudos, fazer uma faculdade para poder ajudar mais. Meu sonho é fazer faculdade de Pedagogia e Assistência Social".
Agreidina Medeiros (Tia Gleidy)
Professora
"Eu também já vivi uma vida como a dessas crianças. Muitas vezes somos julgados, discriminados pela sociedade, pela cor da pele ou por questão social. Assim como precisei de ajuda, reconheço que preciso ajudar também para mudar o olhar da sociedade sobre a nossa ocupação"
Segundo Gleidy, muitas famílias se mantêm por meio de auxílios do governo. Entre aquelas que procuram o Fome de Leitura para ajudar os filhos estão mães de crianças autistas. A própria Gleidy tem um filho diagnosticado com grau 1 do espectro autista. No projeto, além de ter conseguido um emprego, ela também garante atendimento especial para o seu garoto.
Outra atendida pelo projeto é Ana Paula dos Santos, mãe de Emanuelly Pereira dos Santos, de 10, uma das meninas que anda quatro quilômetros para estudar.
Ana Paula, natural da Bahia, está no Espírito Santo há 5 anos. Atualmente, recebe Bolsa Família. Ela estudou até o nono ano e sonha que sua filha possa fazer faculdade. "Minha filha, Emanuelly, fica esperando chegar a terça-feira para poder ir para as aulas", diz.
Para Emanuelly, que sonha ser policial quando crescer, iniciativas assim são fundamentais. "Se não fosse o Fome de Leitura, muita gente não teria a oportunidade de estudar. Muitas crianças têm dificuldade para ler e entender Português e Matemática."
Realidade cruel
Vila Esperança tem 1.870 habitantes, conforme dados da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). É bem próxima de Terra Vermelha e de Jabaeté. Estudo feito pelo Departamento de Psicologia revela ainda que cerca de 600 pessoas se tornaram moradoras entre 2023 e 2024.
Sem ruas pavimentadas, outro problema que interfere diretamente na qualidade de vida e, consequentemente, na educação é a falta de saneamento básico. O levantamento constatou que 53,7% dos moradores contam com a água de três poços artesianos construídos pela comunidade para se abastecer; e 32% não têm acesso nos seus lotes...
Há seis meses, os moradores tiveram uma vitória ao conseguir obter comprovante de residência, documento que garante acesso a alguns serviços, como matrícula em escola e atendimento na rede pública de saúde. Mas as demandas ainda existem, como o problema de habitação. Boa parte vive em imóveis precários feitos de tábuas de madeira e pallets e cobertura de lona.
Energia elétrica também não é para todos por lá. Alguns fazem ligações elétricas irregulares, chamadas popularmente de "gatos". "A maioria dos moradores não tem banheiro e os que têm utilizam fossas secas", destaca a líder comunitária Adriana Paranhos, ao acrescentar que, recentemente, seis residências foram consumidas pelo fogo após uma tentativa de usar carvão para cozinhar. Nem todos conseguem arcar com a compra de um botijão de gás.
Como a Fome de Leitura surgiu
A princípio, as aulas de reforço do Fome de Leitura eram apenas em Normília, na sede da Mais Amor, até se expandirem para Vila Esperança. Tudo começou quando o médico Diego Dalcamini decidiu fundar uma biblioteca comunitária. Para isso, comprou 100 livros e foi indicado a doá-los à ONG.
Fome de Leitura
No entanto, a mobilização fez com que a ideia executada fosse ainda maior do que a inicial. “Resolvemos abraçar a proposta de reforçar o ensino. Juntamos amigos, fizemos campanhas, levamos empresários lá e investimos R$ 150 mil para transformar a sede do Mais Amor", diz o médico.
A ONG funcionava na casa de Adriana Silvério de Souza. "Eu trabalhava numa padaria e fazia essas ações voluntárias aos sábados e a cada quinze dias, quando servíamos jantar para as crianças". Hoje Adriana dedica-se integralmente ao Mais Amor.
Mãe solo, como a maior parte das mulheres daquela comunidade, Adriana tem quatro filhos biológicos, mas considera as mais de 300 crianças atendidas pelo Fome de Leitura como seus. "Sinto delas um reconhecimento. Elas têm aqui uma oportunidade que eu mesma não tive na minha infância, de algum projeto que me abraçasse e me desse uma estrutura como essa."
Mais Amor - Aulas de Musicalização
Adriana Silvério de Souza
Idealizadora do projeto Mais Amor
"Derrubei a minha casa para transformá-la na sede do projeto. Então, aqui não é mais 'a casa da Adriana'"
Morador de Normília, Gabriel Lucindo, 15 anos, começou a fazer aulas de violino no Mais Amor por indicação de um amigo, quando ambos passavam na porta do instituto e descobriram que ali havia aulas de iniciação musical. "A casa ainda era mais humilde. Depois que fizeram as obras, comecei as aulas de violino", conta o adolescente.
Ele se interessou por aprender o instrumento após ver um concerto na internet. "Vi uma pessoa tocando piano e violino e passei a gostar mais, tanto que escolhi aprender a tocar o instrumento. As músicas de violino são legais, bonitas, eu gosto. Na minha escola tem aula de música, mas não tem violino. Se eu conseguir evoluir, quero ser como o meu professor, que viaja para outros países como violinista", planeja o garoto, que vive com sete irmãos, a mãe, que trabalha como faxineira, e o padrasto, que faz trabalhos informais. Todos dependem de benefícios sociais.
Para Adriana, o plano é que todos os assistidos pelo Mais Amor, por meio do Fome de Leitura, consigam ter uma profissão no futuro. "Uma das crianças me disse que, quando ganhar dinheiro e estiver trabalhando, vai contribuir para que outras crianças também sejam alcançadas. Isso é o reconhecimento do nosso trabalho."
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