A pobreza que ganha escala no Espírito Santo pode ser observada em várias situações, mas um aspecto que dá maior dimensão da dificuldade das famílias é a insegurança alimentar. De grau leve a grave, é a falta de comida na mesa o que mais aflige quase 40% da população no Estado - cerca de 1,6 milhão de pessoas. Milhares delas dependem de doações para ter o que comer, mas projetos sociais também passam por dificuldades com a falta de itens para compor cestas básicas e atender aqueles que batem à porta.
Essa é a situação do Recriar, com atuação em Vila Velha, que se propõe a dar assistência a centenas de famílias com atendimentos diversos, e sobretudo a crianças com atividades culturais e esportivas, mais a alimentação. Como ainda está em fase de regularização de documentos, o que permitiria receber aporte financeiro de empresas e poder público, por exemplo, é no boca a boca que a idealizadora Melissa Emanuelle da Vitória Alves tenta sustentar o projeto.
Ela circula com uma kombi para recolher mantimentos que servem para montar cestas básicas e a refeição da garotada que frequenta o espaço do projeto, em Boa Vista. Também vende panos de prato e se mobiliza em redes sociais. Para o trabalho, conta com voluntários, entre os quais filhos e enteados, e outros adolescentes que quer manter longe das ruas e, consequentemente, do assédio do tráfico de drogas.
A luta diária não desanima Melissa, mas a falta de comida para ajudar, sim. No final de fevereiro, o estoque de itens para cestas estava praticamente esgotado e, no freezer e na geladeira, nenhum produto. Chorando, ela lamentava a situação porque sabe que muitos que ali frequentam dependem do projeto para comer.
Como a pensionista Irani da Costa Evangelista, que recentemente parou em uma unidade de saúde porque ficou sem se alimentar, e esteve lá para tentar uma cesta básica. Não havia o kit completo, mas Melissa providenciou alguns produtos na esperança de amenizar temporariamente a situação.
INSEGURANÇA ALIMENTAR
Catia Grisa, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e integrante do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) daquele Estado, ressalta que a pandemia agravou a situação de parte significativa da população brasileira, o que se reflete, naturalmente, também em território capixaba. Mas ela lembra que a fome não é um problema desses dois últimos anos.
A especialista explica que a segurança alimentar, um conceito que começou a ser discutido na década de 1990, se caracteriza quando as pessoas têm acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidades suficientes, respeitando as características de sua cultura e sem comprometer o acesso a outras necessidades.
Quanto à insegurança, há três tipos e ela é medida, segundo Catia, pela percepção sobre como a pessoa está se sentindo, se está com medo da falta de comida, a sensação de que vai passar fome ou se tem dificuldade de acesso.
A professora atesta que as mulheres são as mais afetadas pela insegurança alimentar, sobretudo as negras. Populações tradicionais, como indígenas e quilombolas, também estão mais vulneráveis a essa condições e, ainda, moradores de áreas rurais.
Embora passem a ideia de que, no campo, teriam condições de plantio e alimentação adequada, Catia observa que historicamente os pequenos agricultores vivenciam um processo de desigualdade, de falta de condições em assentamentos rurais – dificuldade de acesso à terra, à água, territórios não reconhecidos – e, por isso, se reflete também na insegurança sobre a alimentação dessas pessoas.
FALTA DE POLÍTICAS PÚBLICAS
“Acho importante mencionar a pandemia, um momento gravíssimo na história, com diversas atividades econômicas paralisadas, desemprego e, claro, agravou a situação da insegurança alimentar. Mas é importante registrar que, na verdade, o país vinha com um processo de desestruturação e diminuição de um conjunto de políticas públicas que davam suporte à população mais vulnerável”, aponta Catia.
A professora afirma que, desde a crise econômica e política de 2014 em diante, houve enxugamento de gastos públicos. “De 2016 a 2019, esse enxugamento foi bastante grave em diversas políticas públicas”, frisa a especialista, citando como exemplo o programa de implantação de cisternas na região semiárida brasileira, que permite o acesso à água. Sem essa estrutura, além da falta de água para beber, compromete a produção de alimentos.
Ela conta que 2020 foi o ano de menor execução do programa de cisternas desde sua implantação, em 2003, justamente em um momento que, na sua avaliação, o poder público deveria ampliar o suporte à população.
Catia Grisa
Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
"Quando vem a pandemia, em vez de intensificar a atuação do Estado, para oferecer bem-estar social à população, passa a reduzir direitos, enxugando políticas públicas essenciais. Sim, a pandemia é um fator importante nesse contexto da alimentação das pessoas, mas os dados mostram que desde 2018 há uma queda na segurança alimentar e elevação da insegurança"
Se de um lado há crítica à condução das ações nessa área pelo governo federal, de outro Catia Grisa reconhece projetos e programas bem-sucedidos. Alguns deles de referência no Espírito Santo.
Uma iniciativa que a professora considera de extrema relevância e que foi levada a outros Estados é o Compra Direta de Alimentos, um programa que adquire produtos de pequenos agricultores, garantindo a esse público renda, e os distribuindo à população mais vulnerável.
“Em vez de comprar de supermercados, gera renda para a população rural que precisa, ao mesmo tempo propiciando alimentação na área urbana”, reforça.
Cyntia Figueira Grillo, secretária de Trabalho, Assistência e Desenvolvimento Social do Espírito Santo, revela que, dos editais de 2020/2021, mais de 2,3 mil toneladas de alimentos foram adquiridos da agricultura familiar em 66 municípios que fizeram adesão ao projeto.
Esses produtos foram destinados a 290 unidades receptoras - centros de referências em Assistência Social (Cras ou Creas), centros de acolhimento, Apaes, hospital credenciado - para que fizessem a distribuição.
“Abrimos o edital, o município faz a adesão e transferimos o recurso. Não fazemos a execução direta na política de assistência social; depende do município para chegar à população. Em 2019, quando chegamos, eram 16 municípios, hoje são 66 e queremos chegar aos 78”, explica Cyntia.
A secretária diz que são R$ 6,2 mil por produtor e os itens adquiridos são transformados em uma cesta nutricional.
“O grande objetivo é fortalecer a agricultura familiar e levar alimento de qualidade para aquelas famílias em situação de fome”.
RESTAURANTE POPULAR
Uma estratégia que pode assegurar alimentação de qualidade com baixo custo é a implantação de restaurantes populares, na avaliação de Catia Grisa. Na Grande Vitória, há projetos em análise, mas ainda nenhuma proposta a curto prazo.
Na Capital, a secretária municipal de Assistência Social, Cintya Schulz, conta que retomar esse projeto na cidade faz parte dos planos, mas ela admitiu que não é uma medida rápida como gostaria.
É preciso preparar o imóvel na região de Jucutuquara,onde já funcionou, local que, segundo Cintya, oferece uma estrutura grande e adequada para o restaurante, mas que precisa ser restaurado para receber o equipamento.
Na Serra, a Secretaria de Assistência Social faz estudo de viabilidade, enquanto em Vila Velha a alternativa em análise é um banco de alimentos. Cariacica não se manifestou sobre a possibilidade de instalar um restaurante popular ou outra medida equivalente.
CESTAS BÁSICAS
Cada qual a sua maneira, os municípios da região metropolitana lidam com o contexto das populações em vulnerabilidade, embora a distribuição de cestas básicas seja medida recorrente.
Em Cariacica, as famílias precisam ser cadastradas nos Cras ou Creas para receber o benefício. O critério é renda familiar de meio salário mínimo per capita (R$ 606) e estar em insegurança alimentar.
As pessoas que se encaixam nesse perfil são encaminhadas para o banco de alimentos, cujo objetivo é justamente combater a fome e também o desperdício com a captação, recepção, armazenamento para a população em situação de vulnerabilidade alimentar e nutricional.
Para moradores de Vila Velha, também é preciso ser cadastrado nos Cras. A equipe técnica do centro de referência faz uma análise do perfil das famílias atendidas para avaliar a necessidade de distribuição de cesta básica.
A concessão de alimentos para os moradores de Vitória segue os critérios da resolução 016/2017, do Conselho Municipal de Assistência Social (Comasv), que são: situação de pobreza, conforme conceito estabelecido pelo governo federal, a partir de avaliação socioeconômica realizada pela equipe técnica; situação de desemprego, morte e/ou abandono pelo provedor da família; ou casos de emergência e calamidade pública.
Na Serra, além do benefício eventual de cesta básica que atende a população da cidade com renda familiar com até ¼ do salário mínimo (R$ 303), há um programa municipal de transferência renda, chamado Pró-família.
Esse programa concede um cartão-alimentação no valor de R$ 100 para aquisição de itens por um período de 12 meses, podendo ser prorrogado por igual período. Em decorrência da pandemia da Covid-19, o valor do benefício chegou a ser ampliado para R$ 154 por um ano.
Para ser contemplada, a família precisa atender a pelo menos um destes critérios: ter crianças ou adolescentes menores de 14 anos; pessoas deficientes ou impossibilitadas de trabalho; gestante; idosos, desde que não contem com aposentadoria.
Pobreza no ES
Em decorrência da pandemia, Cyntia Grillo, secretária estadual de Assistência Social, conta que o governo ampliou os recursos destinados aos 78 municípios capixabas para que tivessem mais verba de modo a atender a população em vulnerabilidade, particularmente com alimentação. Em 2020, foram R$ 9,3 milhões em repasses, três vezes mais do que o cofinanciamento habitual realizado pelo Estado.
“Nesses benefícios eventuais, não têm participação do governo federal. São apenas Estado e municípios, e nós triplicamos essa contribuição”, reforça.
Também foram feitos repasses aos municípios da Grande Vitória, mais Linhares e São Mateus, na ordem de R$ 2 milhões, para que pudessem aumentar a oferta de alimentação nos chamados Centros Pop - locais que atendem à população em situação de rua.
O Estado também dispõe de um programa de transferência de renda - o Bolsa Capixaba, que completou 10 anos em dezembro - e também chegou a manter o ES Solidário, criado para suporte às famílias em maior vulnerabilidade durante a pandemia.
O Bolsa Capixaba que, até dezembro, atendia a cerca de 24 mil pessoas em situação de extrema pobreza, passou por uma reformulação. O governador Renato Casagrande (PSB) propôs uma mudança para ampliar o público beneficiado e alcançar as pessoas que não são contempladas pelo Auxílio Brasil - novo programa do governo federal que substituiu o Bolsa Família, mas não chegou a toda a população.
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