Caranguejo em meio à lama do manguezal, em Vitória
Caranguejo em meio à lama do manguezal, em Vitória. Crédito: Ricardo Medeiros

Com tamanho reduzido, caranguejo capixaba perde espaço para o da Bahia

O Espírito Santo já foi autossuficiente na produção de caranguejo. Mas hoje 75% do crustáceo comercializado no Estado é do manguezal baiano

Publicado em 05/06/2020 às 05h30
Atualizado em 19/08/2020 às 15h39

O catador de caranguejo Claudiomar Tomaz Borges, de 48 anos, aprendeu a profissão com o pai. Em 30 anos dedicados ao ofício, conseguiu fidelizar muitos clientes, chegando a abastecer bares e restaurantes. Nos últimos anos, entretanto, a quantidade de crustáceos disponível para cata e a variedade de tamanhos da carapaça não atendiam mais ao mercado. O faturamento de R$ 500 por semana caiu para R$ 200 no máximo, e a família Borges passou a enfrentar dificuldades financeiras.

Claudiomar Tomaz Borges, de 48 anos

Catador de caranguejo em São Mateus

"Os caranguejos eram grandes e em muita quantidade. Agora estão menores. Precisamos escolher bem a toca e afundar cada vez mais o braço na lama para encontrar. Os clientes, aos poucos, pararam de me ligar para fazer encomenda. Atualmente, não consigo me sustentar somente com o manguezal. A situação começou a ficar ruim com a Doença do Caranguejo Letárgico (2005) e piorou depois que a lama da Samarco atingiu o mangue"

A perda de competitividade é percebida tanto pelos catadores quanto por atravessadores, comerciantes e especialistas ambientais. Tradicional na culinária capixaba, o crustáceo é encontrado com facilidade em bares, restaurantes e feiras do Espírito Santo. Mas essa nova realidade fez com que a produção local não seguisse o mesmo ritmo de consumo. A estimativa é que 75% do caranguejo-uçá consumido tenha origem em outros Estados, principalmente da Bahia, segundo o Instituto Goiamum.

Data: 22/05/2020 - ES - Vitória - Lixo despejado pròximodo  manguezal ,em Vitória - Editoria: Cidades - Foto: Ricardo Medeiros - GZ
Lixo descartado no manguezal de Vitória: um dos fatores que fizeram o caranguejo diminuir de tamanho. Crédito: Ricardo Medeiros

Mônica Maria Pereira Tognella, professora da pós-graduação em Oceanografia Ambiental da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), aponta que diversos fatores estão relacionados à mudança no perfil do caranguejo, como captura desordenada, redução da extensão do mangue e aumento da poluição, com lançamento de esgoto e lixo no ecossistema.

“A captura do caranguejo só pode ser feita quando a carapaça tiver, no mínimo, seis centímetros, e o tamanho máximo da população de crustáceos no Estado já está próximo a esse limite. Os maiores são raros. Fizemos estudo no Piraquê-Açu (manguezal de Aracruz) e, no local, eu só consigo um caranguejo por metro quadrado em condições de ser capturado”, esclareceu.

A pesquisadora explica que esse ciclo ainda tende a piorar, já que o caranguejo de menor tamanho produz menos ovos e deixa um número menor de descendentes. "Qualquer espécie capturada de forma muito intensa acaba tendo problemas, é preciso se preocupar em deixar um estoque de indivíduos que vai gerar os descendentes. Mas se deixo disponíveis só os que produzem menos ovos, também é preocupar", complementa.

Data: 21/05/2020 - ES - São Mateus - Manguezal do Distrito de  Campo Grande, em São Mateus - Editoria: Cidades - Foto: Ricardo Medeiros - GZ
Caranguejos pequenos e em menor quantidade encontrados no ES não são suficientes para abastecer o comércio local. Crédito: Ricardo Medeiros

A biogeógrafa e professora do departamento de Geografia da Ufes, Cláudia Câmara do Vale, associa a redução do caranguejo-uçá à coleta desordenada. Ela explica que na fase de proteção à reprodução da espécie, denominada “andada”, muitas pessoas aproveitam para fazer a cata porque o caranguejo vira presa fácil. Mas no período da andada, quando o crustáceo sai da toca para se acasalar, esse ficam proibidos a captura, transporte, beneficiamento, industrialização, armazenagem e comercialização do caranguejo.

“O caranguejo tem um papel importante dentro da cadeia trófica dos manguezais porque disponibiliza matéria orgânica a outros seres vivos. Durante anos, houve uma coleta desordenada que impossibilitou o crescimento dele. Se a cata não for sustentável, os crustáceos não conseguem manter um ciclo reprodutivo, o que acaba afetando os próprios catadores. Se forem coletadas as fêmeas ovadas, a população vai reduzir até não ter mais caranguejo”, pontua Cláudia.

Somou-se aos problemas diários enfrentados pelo mangue a Doença do Caranguejo Letárgico (DCL), que atingiu o Espírito Santo em 2005. Causada por um fungo, ela chegou ao Brasil em 1997, no Rio Grande do Norte, e migrou para a Bahia, em 2005. Especula-se que o agente transmissor da doença entrou no manguezal capixaba por meio das roupas e do material de trabalho dos catadores dos municípios baianos que migraram para o Estado nessa época. 

“Quando acabava o caranguejo em um manguezal, os catadores partiam para outro e, assim, a doença foi sendo espalhada. No Espírito Santo, ela começou em São Mateus. Após adoecer, os crustáceos não duravam mais do que 12 horas vivos. Cerca de 70% dos subadultos e adultos morreram”, explicou o presidente do Instituto Goiamum, Iberê Sassi.

Iberê Sassi

Presidente do Instituto Goiamum

"Até 2005 comíamos nosso próprio caranguejo, mas com a depredação dos manguezais e a Doença do Caranguejo Letárgico, nunca mais tivemos produção suficiente"

O Projeto Caranguejo realizado pela Ufes em parceria com a Fundação Ceciliano Abel de Almeida (FCAA) revela que, de 1999 a 2006, período de realização do estudo, o Estado produzia 1,9 mil toneladas de caranguejo, cuja venda movimentava R$ 14,4 milhões ao ano. Iberê acrescenta que, ao todo, a cadeia de produção envolvia 5.700 pessoas, entre catadores, atravessadores, cozinheiros, garçons e quiosqueiros, e movimentava R$ 40 milhões.

Data: 22/05/2020 - ES - Serra - Marcelo Alves Cometti, um dos maiores fornecedores de caranguejo do Estado - Editoria: Cidades - Foto: Ricardo Medeiros - GZ
Marcelo Alves Cometti atua como fornecedor de caranguejo  para bares e restaurantes do Espírito Santo. Crédito: Ricardo Medeiros

DA BAHIA PARA O ES

Atualmente, os maiores fornecedores de crustáceo para o Espírito Santo são os municípios de Caravelas, Nova Viçosa e Canavieiras, no Sul da Bahia. Somente o comerciante Marcelo Alves Cometti, um dos fornecedores no mercado capixaba de bares e restaurantes, recebe o carregamento de 15 mil crustáceos por semana da Bahia.

Marcelo explica que o valor do caranguejo do momento que é capturado até chegar ao restaurante praticamente dobra devido a encargos, carregamento e perda durante o transporte. Na prática, o ciclo comercial do crustáceo funciona assim: os catadores capturam o caranguejo no manguezal de municípios baianos e vendem para os atravessadores por,  em média, R$ 15 a R$ 17 a dúzia. Esses, por sua vez, fazem o transporte até o Espírito Santo e fornecem a dúzia por R$ 18 a R$ 19 aos comerciantes, que são responsáveis por distribuir para os restaurantes, com preço que varia de R$ 28 a R$ 30. 

Data: 22/05/2020 - ES - Serra - Marcelo Alves Cometti, um dos maiores fornecedores de caranguejo do Estado - Editoria: Cidades - Foto: Ricardo Medeiros - GZ
Marcelo Alves Cometti recebe  carregamento de 15 mil crustáceos por semana da Bahia. Crédito: Ricardo Medeiros

Marcelo Alves Cometti

Fornecedor de caranguejo para restaurantes do ES

"Eu sempre comprei da Bahia por causa da quantidade e do tamanho. O crustáceo de lá tem a carapaça de 7 a 12 centímetros. Os manguezais do Espírito Santo não conseguem abastecer os restaurantes porque estão muito degradados e o tamanho do caranguejo é menor. Não conheço mais ninguém do Estado que forneça para restaurante, somente para feiras, pontos de venda e nas cordinhas de casa em casa"

Um dos principais clientes de Marcelo é o Restaurante Ilha do Caranguejo. O chef de cozinha do local, Estevão Anequini Ruy, conta que a média de vendas é de 4 mil unidades por semana. Antes da pandemia do coronavírus, que restringiu as atividades comerciais,  o estabelecimento chegava a comercializar somente em um dia até 2 mil unidades. "O caranguejo do Espírito Santo não atende a nossa demanda em tamanho e quantidade", confirma Ruy.

Data: 22/05/2020 - ES - Serra - Antônio Carlos Pimentel Fraga, vendedor de caranguejo de Jacaraipe - Editoria: Cidades - Foto: Ricardo Medeiros - GZ
Antônio Carlos Pimentel Fraga vende caranguejo em Jacaraípe, na Serra, há mais de 30 anos. Crédito: Ricardo Medeiros

Atualmente até mesmo os vendedores de pontos de rua e feiras vendem o caranguejo baiano. O comerciante Antônio Carlos Pimentel Fraga, de 62 anos, atua há 32 anos num ponto da pracinha de Jacaraípe, na Serra. Começou comercializando apenas caranguejo do Estado, mas atualmente mescla com os crustáceos da Bahia. No inverno costuma comercializar cerca de 2,4 mil unidades por semana, no verão, a venda sobe para 7 mil.

“Antigamente não havia caranguejo da Bahia aqui, era só de Aracruz, Anchieta, e São Mateus. Depois da Doença do Caranguejo Letárgico restaram poucos animais e tivemos que buscar na Bahia. Até mesmo em Jacaraípe tinha um manguezal pequeno onde se achava caranguejo, mas, com essa poluição, não tem mais nada”, comparou.

Data: 01/06/2020 - ES - Vitória - Caranguejo servido no restaurante ilha do caranguejo, em Jardim Camburi, Vitória
Caranguejo servido em restaurante em Vitória. Crédito: Ricardo Medeiros

PRODUÇÃO BAIANA EXCLUSIVA PARA O ES

O mercado na Bahia cresceu tanto que há municípios que só produzem caranguejo-uçá para o Espírito Santo, como o de Nova Viçosa. A bióloga da secretaria de Meio Ambiente do município, Carla Beatriz Gonçalves Goulart, disse que somente no ano passado foram destinadas 12 mil dúzias para o Estado capixaba, ou seja, 144 mil unidades.

Esse volume de produção foi possível porque no município há uma lei que estabelece que o transporte e comercialização do caranguejo seja feito com guia de autorização emitida pelo setor de fiscalização do Departamento de Meio Ambiente da Prefeitura de Nova Viçosa, algo que não acontece em nenhuma cidade capixaba. “Emitimos uma declaração dizendo que a origem de caranguejo é de Nova Viçosa, e há atravessadores cadastrados para fazer esse transporte. Toda a nossa produção é destinada para o Espírito Santo”, contou Carla.

SOLUÇÃO

Mas Mônica destaca que é possível recuperar o tamanho e quantidade do caranguejo-uçá, desde que haja proibição de sua cata, assim como aconteceu com a espécie guaiamum, em 2017. Ela ressalta, porém, que, iria demorar cerca de cinco anos para essa população se recuperar e, para isso ocorrer, é necessário uma política pública dê sustentabilidade econômica aos catadores de caranguejo. 

"Quando falo quanto vale o manguezal e a sua importância, sempre friso que ele está enraizado na cultura do capixaba, as famílias se reúnem para comer o caranguejo, a torta capixaba. É um valor cultural que não tem preço. Precisamos preservar o manguezal para a cultura também permanecer viva”, finalizou.

Ficha técnica da máteria sobre mangue

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