O uso excessivo de telas tem o efeito de uma droga e, como tal, vicia. E essa dependência está afetando crianças atualmente, como alerta o especialista na área de educação Juliano Campana. Em entrevista à Rádio CBN Vitória, ele explicou sobre os danos, a curto e longo prazo, desse hábito e comentou quais os impactos da proibição do uso dos aparelhos nos colégios — lei sancionada por Lula em 13 de janeiro: "Tirar o celular das crianças na escola vai exigir um período de desintoxicação", destacou.
Mestre em administração e analista de sistemas, o também fundador e diretor geral da Escola América de Vitória ainda destacou o o papel dos pais diante dos riscos desse comportamento. "A tela traz consequências neurológicas. E isso é uma discussão que as famílias têm que fazer em casa, porque desligar os sentidos do filho para ter um pouquinho de paz vai ter consequência para a criança." Confira a entrevista abaixo.
Campana tem mais de 20 anos de atuação na área da educação, colaborando com a criação de currículos do ensino superior e da educação básica, e atuou como professor universitário, além da experiência como coordenador e diretor acadêmico de mais de 30 cursos de graduação.
Existe uma parte da população que estudou a vida inteira sem o uso de celular. E isso não faz muito tempo. Agora, toda criança tem um celular ou tablet. Em que um uma tela pode interferir na saúde da criança?
De forma geral, sem tratar de escola, inicialmente, o celular impacta na formação neurológica da criança, desde a primeira infância. Quanto mais cedo, mais impacto, obviamente. Desde 2019, já existem estudos bem consolidados, científicos, feitos com exames de imagem — não são exames de observação, de entrevista ou em grupos focais apenas — que comprovam que, 30 minutos diários de tela já impactam na formação do córtex pré-frontal, que é onde está a nossa razão, a nossa inteligência. É importante destacar o uso contínuo dessa tela. Não é um dia que vai fazer uma diferença, obviamente. Esse efeito tem consequências definitivas, porque existem momentos de plasticidade cerebral para o desenvolvimento dessa inteligência da criança. O uso das telas reduz tanto a dimensão, o tamanho, o volume, quanto a densidade do cérebro. Ou seja, ele tem menos conexões. Existem muitas publicações dizendo que essa é a primeira geração da história da humanidade que tem o seu QI médio abaixo da geração anterior. Não estou aqui afirmando com certeza que é só o celular o culpado disso, mas ele tem uma participação muito grande. E é importante dizer que não é só o celular, mas todas as telas ativas que geram luz, incidência de iluminação, vão gerar o problema neurológico do desenvolvimento da criança.
Algumas pessoas falam que as telas, de uma forma geral — televisão, celular, tablet — têm respostas rápidas. Então, não desenvolvem a interpretação e a capacidade de raciocínio. Essa afirmação é válida de alguma forma?
Exatamente. Se a gente for entender a etimologia da palavra “imaginação”, imaginar é justamente criar imagens. Quando você recebe uma informação a partir de uma leitura ou quando escuta alguém falando alguma coisa, você cria imagens, você imagina. A partir do momento que você treina incessantemente seu cérebro a consumir imagens, você perde a sua capacidade de criar imagens. Você perde a sua capacidade de imaginar outra alternativa para aquele problema, uma outra opinião sobre um assunto. E tudo que chega até você passa a ser indiscutível e verdade. Então, o processo educativo — e eu falo educativo, não escolar — é um processo em que você tem que criar oportunidades para que a criança crie o senso crítico, para que ela consiga imaginar alternativas para tudo na vida dela.
Quando os pais trocam a leitura por uma tela e, inclusive, levam essa tela para a escola, quanto desse processo de desenvolvimento é comprometido?
Todo ele, porque você tira a capacidade da criança de participar de um processo educativo, um processo de ensino-aprendizagem. Isso impacta diretamente na motivação. Por quê? Qualquer processo educativo requer esforço. E, à medida que você gera um vício em prazeres, a pessoa fica prisioneira daquilo. Porque é isso que a tela faz, ela produz a dopamina e isso funciona na mesma dinâmica de um vício. E como qualquer vício, a cada dose, você precisa aumentar e, em consequência, o efeito vai reduzindo até o momento que não tem mais. E a pessoa não tem capacidade de sair daquilo, não consegue fazer nada que ofereça esforço.
E como é que vai ser agora, tirando o celular das crianças na escola?
Vai ter um período de desintoxicação. Essa decisão é da família, na verdade. Ninguém precisa fazer uma retirada brusca, pode ir reduzindo. Algumas famílias, infelizmente, vão deixar para que a escola faça isso. Cada instituição vai definir quais são as regras. E cada escola tem o seu regimento aprovado pela Secretaria de Educação. Obviamente, esses regimentos vão precisar passar por atualização. Algumas escolas já proibiam. Outras, não. Com o regimento alterado, vão ter as consequências disciplinares nos casos que for necessário. Dependendo de como a família tratar isso em casa, a transição vai ser rápida. Porque não adianta tirar de um ambiente e reforçar no outro, porque aí a escola se transforma num espaço que é ruim e a casa em um espaço que é prazeroso.
Sem telas em casa, como seria essa comunicação entre pais e filhos, com os pais trabalhando, os filhos em casa?
Como acontecia na minha época. Tem telefone. O problema não é a comunicação, é a tela. A tela faz mal para a criança. A comunicação não faz mal para a criança. Pelo contrário, a tela retira a oportunidade de comunicação. E hoje cada vez mais os pais não se comunicam com os filhos.
Às vezes, eles entregam até uma tela para a criança ficar um pouco mais sossegadinha, para ele poder ter uma conversa ou uma reunião em casa…
E como toda droga, qualquer droga, a tela desliga os sentidos. Quando você bebe demais, você não tem a visão plena, você não escuta direito, não tem o tato e a gustação funcionamento plenamente. E é justamente o que faz a tela. Ela dopa a criança. É o processo da dopamina. Ela desliga os sentidos. A tela hoje é um recurso da família, não da criança. A criança não precisa da tela; o pai e a mãe precisam da tela.
A criança não deveria aprender a levar e não usar, por disciplina?
É um ponto de vista. Mas o espaço escolar, no processo educativo, não é um espaço aleatório de convivência. É um espaço destinado ao estudo, ao desenvolvimento de algumas habilidades. Não é só o celular que eu não posso levar à escola. Eu não posso levar um brinquedo, uma bola. Pelo efeito do celular ser tão forte sobre a criança, isso virou uma polêmica, porque atrapalha muito. Mas atrapalharia também se todos nós, numa sala de aula, levássemos cada um uma bola de futebol e fôssemos chutar. Ou se levássemos um carrinho para brincar. Qualquer elemento de distração é nocivo para o ambiente escolar. Ponto. A tela traz outras consequências neurológicas. E isso é uma discussão que as famílias têm que fazer em casa, porque desligar os sentidos do meu filho para eu ter um pouquinho de paz vai levar uma consequência para a criança, não para os pais.
Algumas pessoas dizem que o celular e as telas, de uma forma geral, estimulam a curiosidade da criança. Concorda ou não?
Na verdade, a curiosidade não é desenvolvida pela tela. Ela é satisfeita pela tela. E o problema é que ela é satisfeita muito rapidamente. As respostas vêm imediatamente. Hoje, com a inteligência artificial, você pode perguntar qualquer coisa. O problema é que você não tem condição de avaliar o que você recebe dela. Se está correto, se está errado, porque ela não é precisa o tempo todo. E aí você vira o quê? Uma massa de manobra.
Qual deve ser a postura dos pais em casa?
Os pais, com consciência que a tela oferece um impacto desse tamanho na vida dos filhos, precisam tomar uma decisão se é essa conta que eles querem oferecer aos filhos. O filho depende da presença dos pais para aprender como viver. Se os pais não conseguem dominar o uso da tecnologia, ele vai imitar o pai. E vai trazer em consequência um mau hábito e incorporar isso a sua personalidade.
Que adulto vai ser essa criança viciada em tela? Vai ser um bom líder ou vai ser eternamente um executor de ordens?
É difícil dar uma sentença tão firme assim, né? Mas o mais provável é que ele tenha dificuldades afetivas, de autodomínio emocional, que ele tenha dificuldade de relacionamento. Os adolescentes hoje que chegam nos eventos sociais se isolam nos cantos, na sua tela. Eles não interagem mais. Então, essa pessoa é frágil emocionalmente. Ela tem uma formação limitada. Mesmo que ela tenha conhecimento, não consegue colocar isso em prática. Então, tem potencial, mas é impotente. Ela é uma Ferrari com rodinha de bicicleta. Ou sem roda. Então, ela não consegue acelerar, frear.
O que fazer se a criança passar a rejeitar ir para a escola porque não vai ter o telefone?
Mas é ela quem decide? Ela não decide comer direito, ela não decide tomar vacina, ela não decide tomar banho. Não é o papel do pai e da mãe acatar as decisões do filho. Cabe a eles educar o filho, indicando quais são os hábitos que deve incorporar à personalidade. Agora, se os pais não cumprirem o papel, sim, as crianças vão decidir.
Você acha que, nesta última geração, os papéis estão invertidos? Os pais estão fazendo o que os filhos querem e não o contrário?
Muitos pais não entenderam qual é o seu papel no processo educativo. Muitos veem o seu filho como uma fonte de autorrealização dele. Então, se o filho olhar para você e falar que não te ama mais, o pai entra em desespero, a mãe entra em desespero. Na verdade, eu não preciso que meu filho me ame. Eu preciso que ele faça o que precisa fazer. Eu sou o adulto da relação. Ou seja, eu sou o racional da relação. E eu preciso definir as coisas que ele realmente precisa, como a gente falou da vacina. “Como você teve coragem de fazer isso comigo?” Essa frase sempre se repete. E você fala o que na resposta? “É para o seu bem”. Então, se eu quero o bem dele, eu tenho que fazer o que ele precisa, não o que ele deseja, porque desejo e necessidade são coisas não necessariamente coincidentes. Muitas vezes são divergentes.
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