Viajar o mundo é o sonho de muitas pessoas. Aos 22 anos, a engenheira civil Maria Alice Dall'Orto Rocha já teve a oportunidade de conhecer inúmeros países e agregar novas culturas, línguas e ensinamentos. Mas, muito além dos roteiros turísticos, a capixaba nascida em Vitória consegue fazer a diferença na vida dos mais necessitados.
Há cerca de um mês residindo em Nairóbi, capital do Quênia, na África, a jovem diariamente se desloca até uma das regiões de maior nível de desigualdade social do mundo para tentar mudar a realidade de fome, extrema pobreza, completa ausência de infra-estrutura e outras mazelas que comprometem severamente o futuro de crianças e jovens da região.
É dando aulas, cozinhando e tentando reformar a precária escola onde estudam cerca de 50 crianças entre 3 e 16 anos, em 6 classes diferentes, que Maria Alice se entrega em prol da felicidade alheia. Em troca, recebe os sorrisos de gratidão e a certeza de que sua dedicação, e das demais pessoas engajadas, ajuda a amenizar o caos social. Com o aprendizado que teve ao longo da vida, na Universidade de São Paulo (USP), onde se formou, e contando com o amplo apoio da família que reside na Capital capixaba, ela se transforma em meio às mudanças que consegue conduzir na vida dos pequenos quenianos.
"A escola onde faço meu projeto voluntário fica localizada em Kibera, uma comunidade dentro de Nairóbi, que é a maior favela da África. Segundo fontes oficiais, cerca de 200 mil pessoas moram lá, mas os moradores contam que são entre 2 e 3 milhões de habitantes. Existem apenas duas professoras fixas por lá além de mim, que sou a única voluntária externa do projeto atualmente. Ou seja, sempre algumas das turmas ficam sem adultos conduzindo as aulas ou atividades", explicou.
Segundo Maria Alice, diariamente ela utiliza mototáxi para ir à escola Kibera Hamlets, e fica no local das 9h às 16h dando aulas de inglês, matemática e ciências, além de promover aulas de dança e debates sobre empoderamento feminino, liderança e estereótipos.
Maria Alice Dall'Orto Rocha
Engenheira civil e voluntária no Quênia
"Ajudo também a cozinhar e a servir as duas refeições diárias na escola: um mingau pela manhã e o almoço, que todos os dias é o mesmo – arroz e repolho. Grande parte das crianças frequenta a escola apenas para comer, então costuma existir um esforço para garantir a comida e conseguir atrair as crianças para o caminho da educação. A escola costumava abrir também aos sábados, especialmente para fornecer essa alimentação. Atualmente, isso está suspenso devido aos problemas financeiros enfrentados pelo projeto"
A engenheira capixaba relatou apenas uma amostra da dura realidade em Nairóbi. Em breve, Maria Alice ganhará mais mãos para seguir fazendo a diferença. No próximo dia 11 de fevereiro, o pai dela, o médico Manoel Rocha, de 63 anos, embarcará rumo ao Quênia e com ele levará itens de higiene básica como escovas e pasta de dente, além da esperança em dar um pouco mais de dignidade a quem mais precisa.
"Tenho um orgulho imenso dos meus filhos. Desde muito cedo, sempre levamos eles em viagens para que pudessem ver de perto as diferenças existentes no Estado, Brasil e no mundo. Mais do que doar, o que prezamos é nos doar em prol do próximo. Em toda minha vida agi desta forma na minha profissão, em família e consegui, ao lado da minha esposa (Mariela) despertar este sentimento em nossos filhos. Estou intermediando com a embaixada do Quênia algum tipo de autorização para atuar como médico, caso não seja possível irei colaborar como for possível", detalhou Manoel.
No perfil que mantém no Instagram, a jovem também mostra o dia a dia da estadia no Quênia e do trabalho que realiza com as crianças e adolescentes.
Em conversa com a reportagem de A Gazeta, Maria Alice descreve e narra com exatidão tudo o que já fez e o que ainda pretende realizar. Antes, porém, é preciso deixar uma coisa bem clara: o trabalho dela nada tem a ver com ativismo barato ou em evidenciar a pobreza alheia. O intuito é despertar nas pessoas um olhar sem pré-julgamentos para o continente e mostrar que a África não se resume à realidade distorcida que chega do outro lado do Atlântico. Confira a entrevista:
O que lhe fez ir ao Quênia e como foi o processo para chegar ao país?
Eu tinha feito parte de diversos trabalhos voluntários no Brasil e em Verona, na Itália, e com isso passei a entender um pouco mais a respeito das necessidades de diversos grupos de pessoas. Ainda assim, sentia muita vontade de fazer projetos sociais fora do país para conhecer novas culturas, ajudar outras comunidades e sair ainda mais da minha zona de conforto. Tive a oportunidade de tirar férias longas e resolvi aproveitar esse período para viver essa experiência no Quênia, por ser um país com uma realidade muito diferente da que eu estava acostumada e por possuir diversos projetos muito relevantes que lidam com comunidades extremamente vulneráveis. Eu vim através de uma organização mundial chamada Aiesec (Associação Internacional de Estudantes de Ciências Econômicas e Comerciais), que oferece, entre outros tipos de projetos, esse intercâmbio voluntário em países no mundo inteiro.
A realidade na qual está inserida é muito dura. Como foi se deparar com isso, um cotidiano que não é parte do seu meio social?
Estou morando em uma “host family”, que é uma família queniana que me recebe durante minha estadia no país. Nairóbi é uma cidade muito grande e com grandes desigualdades sociais, como muitas cidades do Brasil, mas a realidade em Kibera é realmente alarmante. Apesar de já ter feito trabalhos sociais no Brasil e, com isso, ter conhecido a realidade de comunidades em situações de miséria extrema e vulnerabilidade, os primeiros dias em Kibera foram chocantes e me apresentaram um abismo social que eu nunca havia presenciado. Grande parte dos moradores vive muito abaixo da linha da pobreza, em moradias precárias e sem condições básicas de higiene e alimentação e, apesar disso, vivem todos os dias com alegria e muita humildade – e isso é perceptível a partir do primeiro contato com a comunidade.
Como isso lhe faz evoluir como pessoa?
Ver a gratidão e felicidade dessas pessoas mesmo frente a tantos desafios e necessidades me fez, desde o princípio, rever muito dos meus valores. Em poucos dias passei, sem dúvidas, a ser muito mais grata pelas pequenas coisas do dia a dia, e criei em mim um sentimento muito maior de empatia e compaixão por essa comunidade extremamente vulnerável. Passei a entender como pequenos gestos podem mudar tanto o dia e até a vida de certas pessoas, e como ações básicas como a escuta ativa às histórias e problemas dos outros são essenciais no dia a dia. Além das necessidades básicas de alimentação, higiene e bens materiais, muitos dos habitantes da comunidade são carentes de atenção e preocupação: uma simples conversa e desabafo (mesmo com as dificuldades na comunicação) é capaz de criar, aos poucos, uma grande diferença no dia dessas pessoas.
Das adversidades encontradas, o que mais lhe chamou a atenção? Como é uma pessoa de fora em meio a uma miséria tão tocante?
Nos últimos dias, a escola e toda a vila ao redor passaram por uma situação que me chocou bastante: um dia, pela manhã, sem nenhum aviso, um grupo de pessoas da comunidade e da prefeitura passou marcando todas as construções da via onde está localizada a escola (e nos arredores) com uma seta vermelha, que representava partes das construções que deveriam ser demolidas até o dia seguinte para possibilitar uma reforma das vias, que hoje são pouco acessíveis por carro e possuem canais de esgoto a céu aberto em toda extensão. As partes a serem demolidas possuíam, em média, extensão de 2 a 4 metros, o que é muito relevante considerando o tamanho das construções (sejam elas casas, escolas, igrejas ou comércio). Na escola onde eu trabalho, especificamente, o recuo necessário comprometia duas das nossas seis salas de aula. Caso a população não se mobilizasse por conta própria para fazer essa reforma, os responsáveis pela intervenção poderiam fazer a demolição a qualquer momento, inclusive no meio da noite. Se isso acontecesse na escola, sem dúvidas a construção inteira poderia cair, por se tratar de uma estrutura extremamente precária. Essa desapropriação sem nenhum suporte e com prazos muito curtos fez com que várias famílias deixassem suas casas com todos os bens para trás em busca de um novo local para morar. No caso da escola, conseguimos utilizar parte do valor arrecadado em uma vaquinha criada por mim para subsidiar uma reforma urgente, evitando a demolição de toda a estrutura. Existem, sem dúvidas, casos similares a esses de remoções violentas e sem precedentes em diversas comunidades no Brasil. Entretanto, o que eu percebi aqui é que não existe nenhum tipo de proteção (seja ela por lei ou através de grupos de apoio) para a comunidade, que fica desamparada e, na maioria das vezes, não tem outra opção se não abandonar suas moradias e comércios.
Essencialmente, o projeto em que você atua visa reformar uma escola inserida em uma favela. Explique como isso está sendo desenvolvido? Vocês contam com o apoio de alguma organização, ONG ou algo do tipo?
Na verdade, a minha vinda para cá foi apenas para trabalhar como voluntária na escola, ministrando aulas, auxiliando nas atividades e conduzindo discussões com as crianças. Quando vim para o Quênia fazer esse trabalho voluntário, trouxe diversos materiais escolares para as crianças como donativos. Mas, ainda nos primeiros dias por aqui, percebi que essa necessidade era apenas uma das várias enfrentadas pela escola e seus alunos. A escola sobrevive hoje 100% de doações e não recebe nenhum apoio do governo. Essas doações possibilitam, basicamente, apenas o oferecimento das refeições, que com certeza possuem valores nutritivos muito abaixo dos indicados. Os materiais didáticos possuem péssimas condições e são insuficientes, e a estrutura da escola é extremamente precária: as pias do banheiro e da cozinha não funcionam, não há acesso à energia elétrica, não existem locais para armazenamento de materiais e comida, não há suprimentos suficientes para todos os alunos, incluindo pratos e talheres, e grande parte das crianças come todas as refeições com as mãos. Conversando com o diretor da escola sobre como eu poderia garantir alguma mudança efetiva no longo prazo durante minha estadia no projeto, tivemos a ideia de criar uma vaquinha para arrecadar fundos para a melhoria das condições da escola de forma a garantir que as crianças continuem frequentando as aulas e sigam no caminho da educação. Assim, lancei uma campanha pelas redes sociais para subsidiar a reforma da cozinha e das pias da escola e, além disso, garantir 2 meses de alimentação para as crianças, totalizando quase R$ 8 mil reais. Em menos de 12h superamos essa meta, e tomei a decisão de aumentar o objetivo de forma a garantir, ainda, a reforma do piso da escola e a compra de novos materiais didáticos para todas as classes. Essa nova meta também foi atingida menos de 24h após o lançamento da vaquinha com a meta inicial. Hoje contamos com uma arrecadação de mais de R$ 26 mil reais, o que representa cerca de 175% da meta final. Tudo isso só foi possível graças a toda a solidariedade e compaixão recebida por mais de 200 pessoas que, assim como eu, acreditam que, aos poucos, é possível lutar por um mundo com menos desigualdades e com condições básicas de vida para todos. Todos os recursos arrecadados acima da meta serão utilizados para novos projetos, como a compra de uniformes e a pintura da escola, além de serem essenciais para superarmos novos desafios como a necessidade da demolição de parte da escola.
Como é para você poder fazer a diferença em meio a um local tão esquecido pelo resto do mundo?
Sem dúvidas é um privilégio muito grande estar aqui e poder propagar um pouco de felicidade e esperança para as crianças de Kibera Hamlets. Apesar disso, tenho consciência de que o que estou fazendo é muito pouco frente à realidade da comunidade, e que ainda há muito espaço para ajudas e melhorias por aqui. Diversas reformas estruturais são necessárias: urbanização, saneamento básico, oportunidades de emprego, acesso à saúde… meu trabalho por aqui, sem dúvidas, não é capaz de trazer melhorias em todos esses aspectos, mas acredito que funciona como uma semente para mudanças futuras. Essa população que eu encontro todo dia ao chegar no meu local de trabalho sofre de extrema desinformação e é negligenciada por grande parte das autoridades.
A realidade que você presencia condiz com o que chega sobre o país e o continente de uma forma geral?
Em relação ao que costuma chegar de informação a respeito do Quênia e da África no geral, acredito que muitas vezes nós brasileiros vemos um estereótipo generalizado de pobreza e miséria, o que não é a realidade geral desse povo. Nairóbi é uma cidade muito desenvolvida em diversos aspectos, possuindo diversas grandes empresas, hotéis, indústrias e empreendimentos. Ao mesmo tempo, uma parcela grande da população, especialmente nas favelas, como no Brasil, vive em condições subumanas e luta diariamente pela sobrevivência. E, observando tanto essa população vulnerável quanto pessoas com maior acesso à renda e informação, é evidente uma característica em comum: a maioria das pessoas que encontrei por aqui é extremamente determinada. Determinada a oferecer melhores condições para suas famílias e determinada em buscar os recursos necessários para ter uma vida digna. Claro que isso é parte da minha visão em uma curta experiência de um mês no Quênia, e ainda há muito a ser visto, conhecido e aprendido.
O que lhe motiva a fazer gestos como esse? Após esta experiência, pretende seguir com outra?
Meus pais me ensinaram, desde cedo, a me preocupar com a comunidade como um todo e ajudar o próximo sempre que possível. Assim, minha criação contribuiu muito para que me tornasse uma pessoa muito movida a ajudar os outros, fazer a diferença, aprender e me desafiar. Acredito que experiências como essa que estou vivendo em Nairóbi conseguem me oferecer tudo isso de forma muito intensa! Tenho visto diariamente como pequenos gestos podem gerar uma enorme diferença na vida de pessoas com muito a me ensinar, e essa experiência tem se mostrado essencial para me mostrar que eu sou responsável pelas mudanças que quero gerar, independente de quão grandes ou pequenas elas sejam. Não tenho nenhum plano parecido para um futuro próximo, mas busco sempre ajudar, direta ou indiretamente, comunidades e pessoas em situações de vulnerabilidade, então com certeza continuarei participando de projetos sociais.
Como lida com a distância da família, amigos e as facilidades que tinha por aqui?
Fico no país até o final de fevereiro. Meu trabalho no projeto acaba no fim da primeira quinzena, e vou tirar duas semanas para conhecer um pouco mais do Quênia – as praias, safáris e montanhas. Eu saí de casa, em Vitória, com 16 anos para fazer faculdade em São Carlos, no interior de São Paulo. Desde então, me acostumei a estar longe da família e grande parte dos amigos. É claro que eu sinto falta de todos e do padrão de vida que eu tenho no Brasil, mas estar aqui tão envolvida no projeto faz com que eu mergulhe de cabeça na experiência e abrace essa realidade como a única que eu tenho acesso no momento. E tudo isso tem sido incrível!
Seu pai irá lhe fazer companhia e ajudará neste projeto. Como está a expectativa em relação a isso e como é poder fazer a diferença para muitos ao lado dele?
Em fevereiro meu pai, médico, e minha irmã (Manoela), também engenheira, vêm para o Quênia conhecer o país e, mais especificamente, o projeto ao qual eu tenho me dedicado. Com certeza vai ser muito especial poder contar com eles por aqui para trazer um pouco mais de impacto para as crianças de Kibera. Espero que eles sejam tocados pela realidade observada por aqui como eu fui, e que aproveitem cada momento com muita intensidade. Ainda, um ponto bem legal da vinda da minha família é que eles poderão trazer doações de diversas pessoas que têm se mobilizado com a realidade da escola. Estamos recolhendo doações de roupas, material escolar, brinquedos e artigos de higiene que, indiscutivelmente, vão fazer uma diferença enorme para todos os alunos.
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