Ainda conhecida por alguns moradores como Estrada de Ferro Leopoldina, a Ferrovia Centro-Atlântica (FCA) tem uma história centenária no Espírito Santo. Desde o início da sua construção, no final do século XIX, contribuiu para o crescimento de municípios capixabas e para o desenvolvimento econômico.
Na década de 1990, foi privatizada e se manteve, por um período, em atividade para o transporte de cargas e de passageiros. Mas, pouco a pouco, as operações em território capixaba foram reduzidas até pararem totalmente. A falta de uso associada a manutenções esporádicas têm sido o retrato do abandono.
São 250 quilômetros de ferrovia que cortam 11 cidades, da Grande Vitória ao Sul do Estado, com passagem pela Região Serrana: Vila Velha, Cariacica, Viana, Domingos Martins, Marechal Floriano, Alfredo Chaves, Vargem Alta, Cachoeiro de Itapemirim, Atilio Vivacqua, Muqui e Mimoso do Sul. A Gazeta percorreu parte da linha férrea, nos pontos em que o acesso era possível, em todos os municípios, para verificar o estado de conservação da estrutura e ouvir moradores. O resultado dessa apuração poderá ser visto ao longo da semana numa série de reportagens.
No trajeto em que antes passavam apenas trens, há trechos cobertos por calçamento, trilhos que não vão a lugar algum, mas, principalmente, longos percursos em que a vegetação do entorno se sobrepõe. As cidades também cresceram em volta, em alguns pontos de maneira desordenada, praticamente sobre a linha férrea.
Nas áreas das estações, mais um sinal de descaso: vagões e outras estruturas sendo tomados pela ferrugem porque estão expostos a sol e chuva, sem manutenção.
O período de maior produtividade da ferrovia foi registrado na primeira metade do século XX. Naquela época, conforme dados do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), havia pelo menos dois movimentos importantes: o escoamento da produção cafeeira para o Porto de Vitória e a ocupação dos municípios do interior por imigrantes que se deslocavam pela linha férrea.
"No passado, a ferrovia fez parte do desenvolvimento econômico de toda região, além de ser responsável pela dispersão dos imigrantes que ajudaram a construir o Estado. Hoje, é também parte da história das inúmeras famílias que por aqui passaram. Na época, sua construção foi um acontecimento muito importante para o Espírito Santo e para o país", afirma Gabriela Magnago Nicoli, assessora técnica da Secretaria de Cultura e Turismo de Alfredo Chaves.
Luiz Paulo Rangel, presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Vila Velha (IHGVV), lembra que, antes da ferrovia, o transporte de passageiros e de mercadorias era feito por vapor (navio) ou no lombo de mulas.
Luiz Paulo Rangel
Presidente do IHGVV
"Quando veio a ferrovia, foi muito importante. A estrada de ferro foi sendo construída devagarzinho, interligando o sistema. E, a cada cidade que chegava, era uma festa. A partir dos anos 1960, após a crise do café, ficou subutilizada. Também já havia mais estradas, como a BR 101, que, mesmo ruim, era uma alternativa"
Nessa ocasião, a União já tinha retomado a gestão da estrada, até então administrada pela Leopoldina Railway (empresa britânica), e logo foi incorporada pela Rede Ferroviária Federal (RFFSA). Foram quase 40 anos sob responsabilidade da administração pública até que, em 1992, o sistema foi incluído no Programa Nacional de Desestatização. Quatro anos mais tarde, foi concedida à iniciativa privada e se tornou a FCA, como é denominada hoje, e está sob os cuidados da VLI, companhia do segmento logístico que, entre outras atividades, atua na área ferroviária.
A malha ferroviária que compõe a FCA vai além das divisas do Espírito Santo, passando também por Minas Gerais, Sergipe, Goiás, Distrito Federal, Rio de Janeiro, Bahia e São Paulo. Mas aqui no Estado capixaba, após usufruir de toda a infraestrutura da ferrovia, a VLI não vislumbra mais viabilidade para manter a operação, interrompida há mais de seis anos.
Procurada para falar do ramal capixaba e dos motivos para a inatividade e os possíveis investimentos, a empresa respondeu por nota que, após estudos, concluiu-se que os trechos no Espírito Santo são inviáveis, do ponto de vista econômico, por mudanças naturais no mercado ocorridas ao longo do tempo.
VLI
Em nota
"A companhia ainda destaca que a devolução de trechos antieconômicos é uma obrigação das concessionárias, mediante análise de eventual pagamento de indenização, de acordo com regulamentações dos órgãos competentes"
No início de 2021, a empresa já anunciava a intenção de devolver o trecho da ferrovia no Espírito Santo e Rio de Janeiro, cujo traçado segue até a cidade fluminense de Itaboraí, totalizando 565 quilômetros. Conforme relatório da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), responsável por regular as atividades da área, para a devolução ser efetivada, a concessionária deveria compensar o governo federal em mais de R$ 418 milhões (valores daquele ano).
O contrato de concessão vence em agosto de 2026. No entanto, atualmente, encontra-se em análise o projeto para prorrogação antecipada do contrato da FCA, por mais 30 anos, mas devolvendo os trechos classificados como antieconômicos, como o caso do traçado em território capixaba.
2026
É o ano em que termina a concessão da ferrovia para a VLI
Enquanto a devolução não é feita, está entre as obrigações contratuais da VLI "zelar pela integridade dos bens vinculados à concessão", de acordo com a ANTT.
Além do que foi observado pela reportagem, prefeituras também se queixam que a estrutura deixada pela VLI está estragando com o tempo, sobretudo pela falta de conservação. As administrações municipais ainda lidam com furtos de trilhos.
"Os vagões deixados para trás e a própria linha se tornaram espaço para vândalos. São constantes os roubos de trilhos e a depredação de estações. Algumas se tornaram ponto de consumo de drogas e prática de sexo", relata Elieser Rabello, prefeito de Vargem Alta, acrescentando que, como os municípios não têm a gestão da ferrovia, ficam limitados para atuar na manutenção e no uso adequado de equipamentos e imóveis.
A ANTT foi questionada sobre a sua atuação diante das informações de que não são feitas manutenções pela VLI e, por isso, a estrutura está se deteriorando.
"A agência tem promovido ações de fiscalização na referida concessionária ferroviária, conforme Planos Anuais de Fiscalização (PAF), notificando e autuando as irregularidades observadas nos trechos ferroviários. Diante das constatações de diversos descumprimentos reiterados de obrigações contratuais, a ANTT tem instaurado Procedimentos de Averiguações Preliminares (PAP) com o objetivo de apurar as infrações aos Contratos de Concessão e Arrendamento celebrados com a FCA", pontua a agência, em nota.
Quando constatada a conduta infratora, continua a ANTT, são aplicadas as penalidades previstas no contrato, no âmbito de um Processo Administrativo Sancionador (PAS). Não há informações sobre sanções já adotadas.
Nesse cenário de sucateamento, algumas estações resistem ao tempo. Preservando características do período em que foram construídos, os espaços são mantidos pelas administrações municipais depois que foram repassados para gestão das prefeituras.
Estações ferroviárias no ES
Cada gestor definiu como usar as estações, mas a maioria optou por torná-las áreas de interesse cultural, histórico ou turístico.
Em Domingos Martins, no entorno do Vale da Estação, a prefeitura tem autorização e faz a manutenção, limpeza e paisagismo, mas aguarda que toda a estrutura seja cedida para o município. Dessa maneira, tem planos de uso para fomentar ainda mais o turismo, bem como proporcionar segurança aos visitantes.
Isso porque, conforme informações da assessoria da prefeitura, muitos turistas frequentam a estrada de ferro desativada, que dá acesso ao túnel da "Pedra dos Ventos" nas proximidades da usina do Rio Jucu, no próprio município. A área tornou-se um atrativo turístico, mas vistorias realizadas pelo Corpo de Bombeiros e pela administração municipal indicam que o local oferece risco aos frequentadores e praticantes de rapel e trekking devido à estrutura deteriorada dos trilhos que poderia levar a quedas do alto dos pontilhões. A prefeitura já solicitou a interdição da região ao governo federal, mas não teve sucesso.
O governo do Estado já tentou o uso turístico da ferrovia, entre Viana e Matilde (Alfredo Chaves), mas o projeto "Trem das Montanhas" não foi longe, ficando em operação por cerca de cinco anos, entre 2010 e 2015. O custo elevado da passagem era um complicador.
Em alguns trechos da FCA, como Cachoeiro de Itapemirim e Marechal Floriano, o transporte de cargas se estendeu ainda até 2017, ano em que as atividades foram totalmente encerradas.
O transporte de café predominou por um longo período, sobretudo na primeira metade do século XX, mas as linhas da FCA também carregaram muito de outros produtos, tais como cimento, minério, mármore, granito, grãos e cereais diversos.
"Em 1982, era o auge da ferrovia no Espírito Santo. Transporte de ferro-gusa, milho, soja, cevada, adubos aqui da região. Era um mercado muito grande de transporte ferroviário. De 1982 a 1996, quando houve a privatização. Até 2000, a estação funcionou, mas depois foi fechada. Encerrou esse ciclo da ferrovia aqui em Viana. Eu gostava de ver a estação cheia, de ver o movimento das pessoas e as descargas de mercadorias. Por aqui, nós descarregávamos em torno de 30 vagões de milho todo dia. Cada vagão com cerca de 60 toneladas", recorda-se Joacyr de Abreu, ex-chefe da estação de Viana.
Enquanto a VLI não enxerga viabilidade econômica, prefeituras e estudiosos acreditam no potencial ainda existente da FCA, particularmente com o turismo, como sugere o professor Leandro do Carmo Quintão, doutor em História pela Ufes e com pesquisas na área de ferrovias.
Ele reconhece que o traçado não é muito favorável, por ser sinuoso e montanhoso, mas acredita que, para percursos de curta distância, fazendo a travessia por áreas de Mata Atlântica, por exemplo, poderia ser uma maneira de retomar o uso da linha férrea em pelo menos alguns trechos. Leandro Quintão lembra que o "Trem das Montanhas" era bastante atrativo. "O projeto 'bombava'. São lugares muito bonitos para visitar. Mas precisava ter preços mais acessíveis", analisa.
O professor chegou a integrar um grupo que, em 2013, discutia a revitalização da ferrovia, com propostas apresentadas ao governo federal para demonstrar a viabilidade do ramal instalado no Espírito Santo e a importância de mantê-lo em uso. Não houve avanços e, passados 10 anos, o processo de deterioração, sobretudo após a paralisação das atividades, se consolidou.
Em Cachoeiro de Itapemirim, outro grupo, chamado "Amigos da Ferrovia", ainda se mobiliza para manter o ramal ferroviário no município acessível para trilhas, de modo a também incentivar o turismo na região.
Engenheiro de transportes da Ufes, o professor Rodrigo de Alvarenga Rosa é cético sobre a retomada das funções da ferrovia, pelo alto custo, tanto de recuperação quanto de manutenção. Segundo ele, um quilômetro de ferrovia é avaliado em US$ 1,5 milhão, algo em torno de R$ 7,5 milhões.
As prefeituras de Viana, Vila Velha, Atílio Vivácqua e Mimoso do Sul não se posicionaram sobre planos para a ferrovia em seus municípios. O governo do Estado também não se manifestou sobre o assunto.
Para a ANTT, a viabilidade de reutilização do traçado da ferrovia, seja para transporte de carga ou de passageiros, no caso de eventual devolução de trechos pela FCA, dependerá de estudos e diretrizes a serem realizados pelo formulador de política pública, que é o Ministério dos Transportes.
Em nota, o ministério informa que já estuda a viabilidade e o potencial para possível concessão ou para qualquer outro tipo de parceria no trecho capixaba da ferrovia, mas que, no momento, não há informações adicionais.
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