Gisélia Freitas
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'As pessoas vão trabalhar depressivas porque associam trabalho com algo que não dá prazer'

Em novo livro, psicóloga relata preocupação com a escassez de novos líderes. Ela diz que chefes tóxicos contaminam o ambiente corporativo e provocam adoecimento entre os colaboradores

Gisélia Freitas
Vitória
Publicado em 04/06/2025 às 11h02

Com mais de 20 anos de atuação na área de gestão de pessoas e formação de lideranças, a psicóloga e sócia-diretora da Efetive, Gisélia Freitas, se depara com uma grande preocupação: a escassez de novos líderes. Segundo ela, há uma grande diferença entre chefe e liderança, que são conceitos muito diferentes dentro do ambiente corporativo.

Toda essa experiência resultou no livro Sem Medo de ser Líder, que será lançado nesta quinta-feira (5), na Valor Investimentos, que fica na Praia do Canto, em Vitória.

“Liderança não é um posicionamento hierárquico. O líder tem a ver com valores, habilidades e atitudes de influenciar, desenvolver e inspirar pessoas. Ele faz com que profissionais mais ou menos atinjam uma alta performance. É essa liderança que assume responsabilidades e está à frente da equipe", comenta.

Gisélia relata que parte de sua preocupação é o fato de os jovens da geração Z (nascidos entre 1997 e 2012), que representa hoje mais de 30% da mão de obra dentro das organizações, não quererem assumir posições de liderança. Confira abaixo a entrevista completa.

Muito se fala da postura dos jovens nas empresas. Até que ponto eles têm transformado o mercado de trabalho?

A geração Z está refazendo o modelo de trabalho. Aquela velha norma que a gente conhecia está mudando completamente por conta dessa nova mão de obra. Isso acontece porque os jovens prezam por saúde mental aliada com a qualidade de vida. Não aceitam qualquer coisa. Para eles, o espaço corporativo tem que ser saudável, um ambiente em que eles possam crescer e que esteja associado aos seus valores. Recentemente, vi pesquisas apontando que os jovens preferem crescer horizontalmente, ou seja, em cargos técnicos como especialista, do que assumir posições de liderança. Os estudos indicam ainda que a geração Z cresceu vendo a geração X (nascidos entre 1965 e 1980) reclamar e sofrer pelo trabalho. Esses profissionais têm uma nova forma de pensar em sucesso e, para eles, isso não tem a ver com o cargo e, sim, com a qualidade de vida, com crescimento, desenvolvimento e não com posição hierárquica. O que me preocupa é que líderes formam seus sucessores e não estão achando quem vai ocupar esse espaço.

Como o livro pode ajudar as pessoas a perderem o medo de serem líderes?

No livro, falo sobre o porquê que a sociedade e as empresas precisam de líderes. Eu uso muito psicologia, psicanálise, neurociência, sociologia e antropologia para explicar a importância das lideranças ao longo do tempo, principalmente na sociedade atual. Falo também de técnicas de como perder o medo de ocupar essa posição na vida e no trabalho. Descrevo os principais receios e coloco um capítulo inteiro sobre liderança geracional, quais as características das lideranças de cada geração, desde a baby boomer (nascidos entre 1945 e 1964) até a geração Z. Também destaco a geração alfa (nascidos a partir de 2010), que completou 14 anos no ano passado e já pode trabalhar como adolescente aprendiz. Hoje há cinco gerações dentro da mesma organização e destaco que é possível ter um ambiente harmonioso. A partir de 2025, já nasce a geração beta, que cresce na inteligência artificial. Como será esse perfil futuramente? Comento um pouco disso também.

Por que há medo de ocupar cargo de liderança?

As empresas precisam de lideranças urgentes e, no livro, ressignifico o que é ser líder e o papel dele dentro das organizações. Ter medo é normal, e uso teorias da psicologia para falar sobre isso e como lidar com ele. Também abordo o medo de cada geração, relacionado à posição da mulher, entre outros temas. Em um dos capítulos, falo especialmente da liderança feminina, sobre as barreiras e dificuldades delas ocuparem essa posição. Muitas vezes elas têm medo de não serem respeitadas, de perderem o respeito da família e até de não dar conta. Além disso, as mulheres têm em seu imaginário coletivo outros medos que as impede de assumir posições maiores. Por fim, incentivo os profissionais a não terem medo, porque esse será o papel mais importante de suas carreiras. Se ninguém quer assumir responsabilidades, se ninguém quer assumir liderança, quem vai deixar um legado, desenvolver e transformar pessoas?

O que as empresas precisam mudar para reverter esse quadro?

A geração Z não associa liderança com crescimento e, sim, a adoecimento. Ela acredita que liderança significa dor de cabeça. Os jovens preferem ganhar pouco do que perder a qualidade de vida e o convívio social. Então, é importante que as empresas repensem seu modelo de gestão, porque elas acabam perdendo talentos por conta de pressões e metas inalcançáveis. É importante lembrar que, em dez anos, o número de pessoas afastadas por doença emocional bateu recorde. Em 2024, foram 440 mil afastamentos por transtornos mentais, contra 141 mil em 2014. É um número bastante expressivo, o que mostra que as pessoas estão adoecendo por causa das empresas e das chefias despreparadas.

E por que isso acontece?

Chefes tóxicos têm contaminado o ambiente organizacional e feito com que os colaboradores fiquem doentes. Pessoas despreparadas e inadequadas assumem posições hierárquicas, o que provoca esse adoecimento. Bons líderes têm o poder de reverter esse quadro, não os chefes. Outro dado alarmante é que o total de pedidos de demissão voluntária, em 2024, também foi recorde, chegando a 8,5 milhões de desligamentos. A maior parte, 30%, são de profissionais de 18 a 24 anos. Pessoas com idade entre 30 e 39 anos representam 26% dessas solicitações. Entre as causas desses pedidos de demissão estão adoecimento mental, estresse excessivo no trabalho, problemas éticos e chefia despreparada.

O que esses dados significam?

Se essas gerações mais novas estão assim, com medo, procurando qualidade de vida, que dirá assumir cargo de responsabilidade. Pesquisas indicam que a geração Z prefere líderes que demonstram empatia, compreensão e promovam um ambiente de trabalho inclusivo e colaborativo. Em outra pesquisa, 69% dos funcionários apontam seus gestores como principais influenciadores do seu bem-estar mental. Problemas de saúde mental só crescem no Brasil e quem cuida dessas pessoas? Não é a empresa, são as lideranças. A nova NR-1 (norma regulamentadora que trata sobre segurança e saúde no trabalho), que entraria em vigor em 26 de maio deste ano, foi adiada para maio de 2026. A norma obriga as empresas a terem mapeados o gerenciamento de riscos psicossociais, ou seja, fazem as organizações terem boas práticas de trabalhar a saúde mental dos funcionários. Mas por que o governo federal determinou essa alteração? Porque está havendo prejuízo com esses afastamentos. Nunca houve tantas pessoas afastadas do trabalho por conta de problemas psicológicos. Esta norma é uma forma de prevenir esses adoecimentos dentro das organizações.

De que forma as empresas podem ajudar seus colaboradores a não adoecerem?

Primeiramente, é necessário criar uma conscientização da importância dessa temática. Muitas empresas acham que é mimimi. Essa fase já passou. É preciso esclarecer que se trata de uma responsabilidade social. Se a organização não entender que colaboradores doentes vão reduzir a produtividade, vão aumentar ainda mais os pedidos de demissão e de afastamentos, entre outras situações. Isso se torna prejuízo financeiro para as empresas. Em segundo lugar, o treinamento contínuo das lideranças e das equipes. Os líderes precisam estar preparados para encarar os muitos desafios que surgem. Por isso, as empresas têm que treinar e desenvolver. Trata-se de uma prioridade nos seus projetos na área de gestão de pessoas, o desenvolvimento dos líderes. E uma dessas formações tem a ver com inteligência emocional como ferramenta mental e a comunicação não violenta. O resultado disso é a prevenção ao assédio moral e sexual e ambientes discriminatórios. O terceiro ponto é ter essas políticas documentadas no código de ética e conduta, no manual do colaborador e muito claro nos valores da empresa. Após tudo documentado, vem o treinamento da equipe, o desenvolvimento dessa cultura e o fortalecimento dos cuidados com os colaboradores.

E como funcionaria essa implementação de cultura?

Não estou falando de contratar psicólogos e sim de desenvolver uma escuta ativa e humanizada. Só de ouvir uma pessoa que está com problemas, a liderança já vai estar ajudando. Outro exemplo é sobre a educação. Não custa nada ser educado, dizer obrigado, bom dia. Além disso, a empresa precisa trabalhar comportamentos, que eram aceitos dentro do meio organizacional e que hoje não têm mais espaço, como é o caso de pessoas que humilham e discriminam colaboradores. Muitas vezes, isso ocorria nos bastidores, de forma velada. Piadinhas sem graça sobre sexo, gênero e religião, por exemplo. Outra característica era deixar o funcionário na geladeira. Há diversas situações que as lideranças e as empresas fazem, que sempre foram aceitos e que aos poucos estão mudando. Quem não aceita essas brincadeirinhas ou ambientes discriminatórios é a geração Z e os profissionais que estão chegando ao ambiente de trabalho. A rotatividade é alta nessa faixa etária, porque os jovens têm dificuldade de encontrar uma empresa humanizada e inclusiva. O ambiente de trabalho precisa ser respeitoso, sem discriminação.

Quais são as principais diferenças entre líder e chefe?

Muitas pessoas ainda confundem esses dois conceitos. Chefe qualquer um pode ser, mas líder é diferente. Chefe é um posicionamento hierárquico, que pode ser supervisor ou gerente, trata-se do nome dos cargos. Os chefes são autoritários. Ele usa a autoridade, ou seja, é ele quem manda. O líder, não. Ele tem a capacidade de influenciar pessoas, independentemente de sua posição. Para o chefe, o foco é o resultado, priorizando metas. O foco dos líderes são as pessoas, com prioridade no bem-estar da equipe, porque sabe que as metas serão uma consequência. O chefe faz uma gestão de tarefas. Delega e fica monitorando o processo. Por outro lado, a liderança tem uma visão de inspiração, ou seja, articula uma visão mais clara, inspira as pessoas a segui-lo. Não fica mandando os colaboradores a fazerem isso ou aquilo. Um bom líder inspira e dá exemplo e não fica o tempo todo no pé dos colaboradores. O chefe tem o controle com autoridade. Ele toma decisões unilaterais, afirma sempre: eu mando, eu faço. Por outro lado, o líder tem empoderamento, ou seja, ele toma decisão colaborativa, porque incentiva a participação da equipe, sabe da importância disso. O chefe é escolhido pela empresa, enquanto que o líder, pelas pessoas. Liderança é algo conquistado.

De que forma as empresas podem ligar as diferentes gerações dentro de um mesmo ambiente até para que a geração Z possa assumir esses cargos de liderança?

Nos treinamentos, nos desenvolvimentos, nas suas campanhas, nas suas políticas de formação de líderes e equipes. A diversidade geracional é um tema que não pode sair desse discurso. Isso porque temos cinco gerações, desde o ano passado, trabalhando dentro de um mesmo ambiente. São pessoas que pensam diferente, têm uma forma diferente de trabalhar e que aprendem uns com os outros. Não dá para apenas reclamar das novas gerações. Têm que formar e desenvolver com relação a valores. Esses princípios importantes estiveram presentes nas gerações baby boom e X. Foram elas que trouxeram as empresas até aqui. Exemplo: resiliência, propósito, legado, ressignificar o que é o trabalho, explicar para essa geração sobre a importância do trabalho, que se perdeu nos últimos anos. O ambiente corporativo não serve apenas para ganhar dinheiro. É um lugar para realizar sonhos. As pessoas estão indo trabalhar depressivas porque associam trabalho a algo que não dá prazer. Os jovens perderam a conexão com o trabalho e preferem ficar gravando vídeos para o TikTok. Eles consideram o trabalho como algo desprazeroso. Querem ser promovidos, mesmo quando acabam de chegar e sem ter mostrado serviço. Querem uma promoção horizontal, ganhar mais dinheiro. As empresas precisam ter um programa de cargos, salários e carreira muito bem estruturado, critérios promocionais e aumento de salário. Caso contrário, a organização vai ficar à mercê dessa geração. É necessário criar um critério promocional flexível. A geração Z quer ser alimentada de dopaminas de dinheiro, promoção e incentivo toda hora. Há formas de pensar diferente sem prejudicar a empresa, mantendo os mesmos padrões. Quando chegam nas organizações, os jovens querem saber onde podem chegar, como se desenvolver dentro de um ambiente sadio, o que proporciona qualidade de vida.

E o que é essencial a empresa ter?

A empresa precisa ter lideranças bem formadas para lidar com essa geração, um ambiente de trabalho que promova bem-estar e um programa de cargos, salários e de carreira, um programa de crescimento e desenvolvimento para essa geração. Essas três coisas são fundamentais para atrair e reter esses jovens que são muito talentosos também.

Por que as mulheres ocupam poucas posições de liderança? O que elas podem fazer para conquistar também esse espaço?

O posicionamento da mulher no mercado de trabalho já evoluiu muito. Ela não precisa mais mostrar a importância dela dentro das organizações e da sociedade. Entretanto, ainda temos um machismo enraizado, um pensamento velado que prejudica essa mulher, principalmente quando a gente fala de crescimento em cargos de liderança. Há uma teoria, que cito no livro, que é a do teto de vidro. Apesar de existirem programas para atingir esses cargos, as mulheres não conseguem alcançar porque colocam dificuldades, como precisar viajar o tempo todo e a necessidade de mudar para outro Estado. E como se faz isso com filho e marido? Dificilmente as mulheres aceitam. Os homens já fazem isso, mas as mulheres, não. Há ainda uma lista de coisas que prejudicam as mulheres, como a possibilidade de engravidar, além do viés inconsciente que é discriminatório. Algumas pessoas acham que liderança é um cargo masculinizado. Certa vez, eu ocupava um cargo de liderança em uma instituição de ensino e chegaram a me falar para usar menos salto alto. Isso demonstra que associam a posição de um bom líder como algo masculinizado. É preciso gritar, bater a mão na mesa, vestir terninho. Isso é coisa de homem. Qual é o problema de usar salto, andar maquiada? Nenhum. O feminino tem um poder competitivo muito grande e as empresas estão observando isso agora. A maternidade traz para a mulher competências e habilidades importantes, como empatia, senso de equipe, relacionamento, comunicação, entre outros pontos. Pesquisas indicam que as mulheres se tornaram uma liderança ainda melhor depois de serem mães. Lógico, a gente precisa administrar o tempo com o filho, a casa, os pais, o trabalho. Isso faz parte. Temos um modelo de trabalho muito engessado, o que não ocorre em outros países. A principal dificuldade das mulheres é o medo de não conseguir administrar casa e família, casa e trabalho. Nós, mulheres, temos uma sobrecarga maior do que os homens, o que chamamos de duplo trabalho.

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