As demissões voluntárias cresceram e bateram recorde no Espírito Santo, em 2023. No total, 158.019 trabalhadores pediram para deixar o emprego no ano passado. O quantitativo representa uma fatia de 33,7% dos mais de 468 mil desligamentos registrados no Estado, segundo dados organizados pela LCA Consultores com base no Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
Esse é o maior número de trabalhadores que deixaram o emprego com carteira assinada por vontade própria desde 2004, quando o estudo começou a ser feito. No primeiro ano de análise, 33.903 profissionais capixabas pediram para sair das empresas para trabalhar em outro local ou abrir o próprio negócio.
Especialistas apontam o emprego aquecido e as mudanças nos modelos de trabalho pós-pandemia como causas para esse movimento.
Conforme os dados da LCA Consultores, em dezembro de 2023, houve 12.922 pedidos de demissão, enquanto que, em dezembro do primeiro ano de análise, foram 2.784. No primeiro trimeste deste ano, o acumulado soma 165.581.
16.462
Esse foi o número de pedidos de demissão apenas em março de 2024
No Brasil, o cenário não é diferente. O país atingiu a marca de 7,3 milhões de pessoas que pediram demissão em 2023. O quantitativo representa uma fatia de 34% dos mais de 21,5 milhões de desligamentos registrados no país, segundo dados da LCA Consultores. O Espírito Santo se enquadra logo abaixo do indicador do país.
Em 2022, foram registradas 6,8 milhões de solicitações desse tipo e, em 2021, 5,6 milhões. Os maiores percentuais do país foram registrados em Santa Catarina (45,2%) e Mato Grosso do Sul (43,8%).
A maioria dos pedidos de demissão é feita por jovens entre 18 e 24 anos, com 39,5% dos desligamentos nessa faixa etária, seguido por pessoas entre 25 e 29 anos, com 36,5%. Outro perfil apontado pela pesquisa é que os profissionais de nível superior estão em maior número, incluindo aqueles que têm pós-graduação e mestrado.
Da demissão ao empreendedorismo
Ter a festa de casamento dos sonhos fez Leandra Rampinelli, de 23 anos, deixar o emprego com carteira assinada para trabalhar por conta própria. Ela e o agora marido, Thiago Rampinelli, decidiram juntos que era hora de transformar a renda extra na fonte principal do casal.
A jovem começou a trabalhar em um escritório de contabilidade como estagiária e foi efetivada no cargo em agosto de 2021. Um ano depois, veio a decisão de passar de funcionária para dona de empresa. O casal começou a fazer doces em cone, com receitas que ela aprendeu na internet.
“Levava uma ou duas vezes por semana para o trabalho. Em 2021, Thiago ficou desempregado e passou a vender sozinho. No ano seguinte, enxergamos a possibilidade de crescer mais. Mesmo tendo sido efetivada um ano antes, deixei a empresa para viver só dos doces”, relembra.
Desde então, o casal já participou de eventos, comprou equipamentos e já conta com motoboy para fazer as entregas. Segundo Leandra, 80% da festa de casamento foi paga com o dinheiro proveniente dos doces.
Leandra Rampinelli
Empreendedora
"Agora, os meus sonhos são outros. Não me arrependo da minha decisão, porque já consegui coisas que talvez com carteira assinada demoraria mais para acontecer. Gostava de trabalhar com contabilidade, mas foi com a confeitaria que me encontrei"
A jornalista Aline Pagotto também pediu demissão para investir no próprio negócio, depois de obter experiência em órgãos públicos e agências de comunicação. Após desenvolver ansiedade e outros problemas de saúde, ela percebeu que havia chegado a hora de mudar os rumos profissionais.
Primeiramente, Aline aceitou o desafio de ajudar uma empresa com as mídias sociais e a divulgação na imprensa. Depois disso, ela foi conquistando mais clientes.
“A decisão de sair do trabalho veio e estou muito feliz por ter feito isso. Hoje, faço meu tempo, tenho autonomia e uma equipe e me sinto empreendedora. Adoro a ideia também de gerar oportunidades, de dar trabalho a outras pessoas. Ainda somos novos, mas a experiência existe há muito tempo e estamos crescendo cada vez mais”, comemora.
Para o professor Bruno Felix, da Fucape, um dos fatores que influenciaram esse movimento foi a mudança nas prioridades de muitas pessoas, que têm priorizado aspectos como qualidade de vida, equilíbrio entre vida pessoal e profissional e propósito no trabalho.
Bruno Felix
Professor da Fucape
"Os pedidos de demissão se tornaram frequentes porque muitos profissionais entendem que esses critérios não estão sendo atendidos. Os avanços tecnológicos também passaram a influenciar as decisões, porque surgiram novas oportunidades e modelos de trabalho, principalmente após a pandemia. Isso tem incentivado profissionais a buscar outras opções, como empreendedorismo ou trabalho mais autônomo"
Ele aponta ainda como causa do aumento nos pedidos de demissão voluntária a busca por melhores condições de trabalho. O professor afirma que é possível perceber que as pessoas estão saindo de empregos mais tradicionais para buscar ambientes mais flexíveis e com benefícios mais atraentes.
O mercado de trabalho aquecido também é considerado um dos motivos que levam os funcionários a pedir demissão. “Dependendo do setor, com uma demanda significativa de profissionais qualificados, isso tudo cria ambientes mais favoráveis para a tomada de decisão”, resume.
O economista e presidente do Conselho Regional de Economia do Espírito Santo (Corecon-ES), Claudeci Pereira Neto, lembra que a troca de emprego também ocorre em setores onde há falta de profissionais qualificados, como é o caso da área de tecnologia da informação.
“É claro que o mercado de trabalho não é uniforme assim, pois há posições onde ainda ocorre dificuldade de recolocação. Em TI, entretanto, falta gente para trabalhar porque a demanda é alta, principalmente no pós-pandemia”, comenta o economista.
A taxa de desemprego no país é de 7,8%, a menor desde 2014, conforme lembra Pereira Neto. "Há muito tempo que a gente não via um índice tão baixo. Quando isso acontece, o tempo de espera para conseguir uma nova ocupação é menor. Então, é por isso que o trabalhador pede demissão, na certeza de que vai ter outra oportunidade em breve. Isso é decorrente de uma economia aquecida", destaca.
A mudança no comportamento das pessoas também é um motivador para o aumento nos pedidos de demissão. O economista lembra que há alguns anos a pessoa se formava e ficava em uma empresa até se aposentar.
Claudeci Pereira Neto
Economista
"O sonho das pessoas era fazer carreira em uma determinada organização. E, hoje em dia, os jovens não querem mais isso, pois eles prezam pela flexibilidade, querem experiência. Essa é uma tendência de mercado, porque não existe mais o sentimento de pertencimento a uma empresa"
Profissionais buscam qualidade de vida
Os novos talentos também não estão mais reféns de trabalhos sem significado. Segundo o psicólogo Peter Noronha, isso, por si só, ajuda a explicar o motivo do recorde de demissões voluntárias. Para ele, líderes e profissionais de RH devem ficar atentos, pois, sem talentos engajados, o negócio e a marca podem ser afetados.
O especialista salienta que alguns pontos explicam esse cenário. Um deles é a busca pelo balanço entre vida e trabalho associada à valorização da flexibilidade. Noronha destaca que o cenário pandêmico deixou claro que existem novos modelos de trabalho (home office, uberização, conteúdo digital, sites que contratam por projetos, entre outras formas) e, principalmente, a importância de se ter o cuidado com a saúde integral.
“O mercado dinâmico e uma maior autoconfiança para empreender também contribuem para esse quadro. O cenário disponibiliza oportunidades mais atraentes e isso traz confiança para que os profissionais considerem avaliar novas propostas. Além disso, as novas regras para ser um MEI e informações disponíveis em órgãos como Sebrae e em redes sociais impulsionam a abertura do próprio negócio”, comenta.
Noronha ainda atribui a alta ao avanço da inteligência artificial (IA). Ao mesmo tempo que a tecnologia elimina funções, traz também novas oportunidades. O psicólogo comenta que uma parcela dessas novas profissões envolve trabalhos remotos, por exemplo.
“As pessoas estão valorizando/priorizando espaços mais autênticos e que respeitem as suas singularidades. Percebo uma intolerância com ambientes nos quais as singularidades dos profissionais não são consideradas. Empresas que têm uma cultura de fato inclusiva, com benefícios específicos para mulheres com filhos ou cargos para pessoas com deficiência, por exemplo, atraem novos talentos”, frisa.
A psicóloga e diretora de Liderança, Cultura e Diversidade do Instituto Brasileiro de Executivos de Finanças do Espírito Santo (Ibef-ES), Gisélia Freitas, complementa que os profissionais também estão em busca de um equilíbrio entre salário competitivo, qualidade de vida, oportunidades de crescimento e um ambiente de trabalho que promova seu bem-estar e desenvolvimento pessoal e profissional.
“Em minha experiência, atuando há mais de 30 anos na área de gestão de pessoas e com pesquisas, um fator crucial no aumento tem sido a falta de lideranças nas organizações. Gestores e chefes têm muitos, mas líderes que engajam e desenvolvem pessoas são raros. Profissionais não pedem demissão da empresa, mas do seu líder! A nova geração não aceita subordinação de quem não os representa ou de quem não agrega valor em sua vida profissional”, avalia.
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