O ano era 1990. O Plano Real ainda não havia sido implantado. O Brasil era apenas tricampeão da Copa do Mundo de futebol masculino. E o computador pessoal e a internet começavam a se popularizar no mundo. Três décadas se passaram desde o ano em que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) foi sancionado. Muita coisa mudou.
A internet se popularizou e as compras digitais caíram de vez no gosto popular. Parte disso devido à praticidade. Recentemente, às limitações de deslocamento causadas pela pandemia do novo coronavírus levaram a um boom das vendas pelos canais digitais.
Agora, neste dia 11 de setembro de 2020, balzaquiano, e diante de uma nova realidade, esse mesmo conjunto de leis precisa se modernizar e se adequar ao novo perfil do consumidor para se manter eficiente, segundo especialistas do setor. A opinião sobre a necessidade dessa atualização é unânime na área do Direito do Consumidor.
Todos, no entanto, defendem que essa legislação é uma das principais heranças brasileiras e que seu alcance hoje precisa ser protegido, para evitar retrocessos.
1990
ANO DE CRIAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
Quando foi criada, em 1990, a Lei 8.078/90 era considerada um grande avanço por ser fundada em princípios que tentam equilibrar relações consideradas desiguais, pois parte do pressuposto de que o consumidor é a parte mais fraca, hipossuficiente e vulnerável. Porém, com o avanço do e-commerce e com o aumento do superendividamento, muitos defendem a inclusão de novas regras para proteger ainda mais o cliente na era digital.
Vanessa Morelo
dirigente do Centro do Consumidor do Ministério Público do Espírito Santo (MPES)
"O Código de Defesa do Consumidor é um marco nas relações de consumo, trazendo grandes inovações, reconhecendo a vulnerabilidade do consumidor e a necessidade de se ter regras específicas para nortear essa relação"
2013
CRIAÇÃO DA LEI DO E-COMMERCE
A promotora de Justiça e dirigente do Centro do Consumidor do Ministério Público do Espírito Santo (MPES), Vanessa Morelo, lembra que, além dos deveres e garantias previstos pelo Código de Defesa do Consumidor, as compras on-line são regulamentadas pelo Decreto Federal Nº 7.962/2013. Essa foi a última atualização realizada na legislação.
Publicado em março de 2013, ficou conhecido como a lei do e-commerce. Ele estabelece que as empresas virtuais devem dar clareza às informações no momento do anúncio da mercadoria, bem como garantir um serviço de atendimento ao consumidor facilitado, acessível e eficiente.
"O decreto também assegura ao consumidor on-line o 'direito de arrependimento', dispondo que a desistência [em até sete dias] da compra deverá ser possibilitada através da mesma ferramenta utilizada para a contratação do serviço ou aquisição do produto", explica Morelo.
Mas, para os especialistas, é preciso haver regras mais rígidas, como aponta o diretor de relações institucionais do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Igor Britto. Segundo ele, as leis atuais não são suficientes para proteger o consumidor de danos que possam sofrer com servidos adquiridos virtualmente.
Igor Britto
advogado e diretor de relações institucionais do Idec
"Temos que gerar mais confiança nas vendas on-line no Brasil e, para isso, o consumidor precisa de direitos e regras específicas. Nós não temos regras sobre a responsabilidade de marketplace, como os aplicativos e grandes lojas de e-commerce. Nesse caso, quem é o responsável por isso, pelo produto não entregue ou de má qualidade, por exemplo? A plataforma ou o vendedor?"
Ainda de acordo com o Igor Britto, a cada dia que passa, novos produtos e formas de se contratar serviços vão surgindo e o código vai ficando defasado. "Isso também dificulta para que os juízes e os Procons resolvam os problemas com contratos assinados pela internet", comenta.
O advogado e professor do Departamento de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Lucas Abreu Barroso, lembra que até mesmo o uso das redes sociais é uma forma de relação de consumo. De acordo com ele, a proteção das relações no mundo virtual será indispensável para as empresas sobreviverem no futuro, já que os clientes vão buscar pela credibilidade delas.
"Hoje, somos consumidores num espectro muito mais amplo do que se imagina. Desde as redes sociais até a compra. Para você estar ali, naquele ambiente digital, você forneceu seus dados e expõe a sua vida. O grátis não existe no mundo virtual, toda informação é computada. O futuro não é promissor para qualquer empresa que tenha mau atendimento e não preza pela relação com o cliente", ressalta.
PROJETOS EXISTEM, MAS NÃO SAEM DO PAPEL
Atualmente, existem dois projetos de lei (PL) para atualizar o CDC que são considerados peças-chave em termos de assegurar o direito do consumidor. No entanto, eles estão há anos parados no Poder Legislativo. Um deles é o PL 3.514/2015 que aborda os contratos internacionais comerciais e de consumo.
O texto dispõe ainda sobre as obrigações extracontratuais e tutelando o consumidor que adquire bens e serviços na internet. Ele está parado na Câmara dos Deputados desde novembro de 2015.
Já o Projeto de Lei 3.515/2015 regulamenta a prevenção e o tratamento do superendividamento no Brasil. O projeto também está na Câmara dos Deputados e não anda desde junho de 2017. O diretor-presidente do Procon Estadual, Rogério Athayde, explica que o superendividamento é um problema antigo do país e que atinge principalmente idosos e pessoas com baixo grau de instrução
Rogério Athayde
diretor-presidente do Procon Estadual
"Hoje, os idosos sofrem muito com a farta oferta de crédito sem a educação financeira. Falta informação e eles estão hipervulneráveis. Muitas vezes, moram sozinhos e querem agradar um parente, amigo ou conhecido e assumem a dívida. Em outras, recorrem ao crédito pessoal devido à insistência de pessoas que trabalham nas financeiras e oferecem o crédito"
A promotora de Justiça Vanessa Morelo acrescenta que o tema é de alta relevância para os órgãos de defesa do consumidor, na medida em que muitas instituições financeiras apresentam propagandas consideradas abusivas, como:
- “Adquira nosso cartão mesmo tendo seu nome negativado no SPC!”;
- Abordando idosos para refinanciarem seus empréstimos por outros com juros e encargos maiores embutidos;
- Levando os consumidores a escolhas equivocadas, muitos que já se encontram em dificuldades financeiras e que acabam sendo induzidos a se endividarem mais ainda.
"Além disso, o problema do superendividamento envolve várias disciplinas, com impactos jurídicos, econômicos, psicológicos e sociais ao cidadão brasileiro, prejudicando milhões de consumidores e suas famílias. Assim, a inclusão dos dispositivos legais que o referido projeto de lei faz no CDC não apenas harmoniza ainda mais as relações de consumo, mas permite o resgate dos consumidores superendividados ao mercado de consumo, beneficiando a própria economia nacional", afirma a promotora.
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