Entre os mais de mil servidores do Espírito Santo, ativos e inativos, que receberam o auxílio emergencial mesmo sem ter direito ao benefício, alguns chamam a atenção por terem salários bem elevados. Um dos casos emblemáticos no Estado é o de uma delegada aposentada da Polícia Civil que recebeu este ano mais de R$ 20 mil por mês em aposentadoria e gratificações.
Ao todo, 604 inativos estaduais tiveram acesso à ajuda de R$ 600. A maior parte deles (75%) está inscrita no CadÚnico, o cadastro de famílias brasileiras em situação de pobreza. Pela regra do programa, eles não precisariam se inscrever para ter acesso ao benefício, contanto que cumprissem os requisitos. Contudo, o governo federal errou ao deixar de identificar que essas pessoas recebem benefícios previdenciários (como aposentadoria) e fez o pagamento.
No caso da delegada aposentada e de outros 147 inativos, não há registro no CadÚnico. Para obter o benefício, esses servidores tiveram que ativamente se cadastrar no sistema da Caixa, para solicitar o auxílio. O nome da servidora não será publicado pela reportagem porque até o momento não é possível dizer se ela foi vítima de fraude ou se realmente pediu o benefício.
Os servidores estaduais contemplados pelo benefício social, que deveria chegar apenas aos trabalhadores informais e desempregados neste momento de pandemia, foram descobertos a partir de um cruzamento de dados públicos realizado pela reportagem de A Gazeta.
Já entre os servidores ativos, 240 não estão no cadastro de famílias pobres. Apesar de a maior parte dos que receberam o auxílio ter salários mais baixos, há casos de médicos e investigadores de polícia que recebem entre R$ 5 mil e 8 mil.
As pessoas fora do Cadúnico e do Bolsa-Família precisaram se inscrever numa página ou num aplicativo criado pela Caixa Econômica Federal. Após o cadastramento, os pedidos seriam analisados pela Dataprev, empresa do governo federal responsável em processar dados trabalhistas, previdenciários e de outros programas sociais federais.
O auxílio foi criado para fornecer um mínimo de renda às pessoas desempregadas, trabalhadores informais e microempreendedores durante o isolamento social que trouxe restrições ao funcionamento da economia. Elas compõem a parcela da população mais afetada pela crise econômica provocada pela pandemia do novo coronavírus.
O pagamento é importante para colocar comida na mesa de muitos brasileiros e injetar dinheiro da economia em um momento de crise nunca vivido pelo país e que não tem previsão para acabar.
Para o professor e mestre em Direito Raphael Abad, a atitude das pessoas que pediram auxílio mesmo sabendo que não poderiam e que não precisam do dinheiro reflete um traço cultural brasileiro, que normaliza a corrupção.
Para o especialista, a atitude denota ainda um desprezo pelo bem público, já que o recurso que está sendo desviado prejudica não só quem de fato precisa da ajuda financeira, mas também todos os pagadores de impostos que, no fim das contas, terão que arcar com o prejuízo.
"O que impede esse comportamento não é o tamanho da punição que a pessoa potencialmente pode receber, mas sim a certeza da punição. Infelizmente, hoje vivemos em um país onde a certeza é a da impunidade", ressalta.
Essa também é a visão da economista da Fucape Arilda Teixeira. Ela avalia que a situação demonstra falta de civilidade e egoísmo e ressalta que esse é um comportamento especialmente prejudicial dentro do poder público que precisa prezar pelo coletivo.
Ela avalia ainda que houve erro da gestão pública em não prever a situação e não determinar algum regramento para punir severamente quem fraudasse o auxílio.
A economista lembra ainda que as falhas e fraudes no auxílio emergencial colocam ainda mais pressão no orçamento público, o que deve levar a um agravamento da dívida brasileira. Segundo projeções da Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão consultivo do Senado, a Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG) encerrará 2020 em 84,9% do Produto Interno Bruto (PIB, soma das riquezas produzidas). A DBGG encerrou 2019 em 75,8% do PIB. O atual secretário do Tesouro, Mansueto de Almeida, estima um rombo de R$ 800 milhões nas contas federais neste ano.
O prolongamento da pandemia pode provocar ainda mais pressão sobre os cofres públicos, já que pode levar a prorrogação do benefício criado para ser apenas temporário. O governo federal fala em pagar mais duas parcelas com valor estimado em R$ 300 cada uma.
"A dívida vai explodir. Mas sabe-se que essa é uma situação excepcional e não há críticas a esse respeito, porque esse gasto precisa ser feito. Contudo, as fraudes comprometem a credibilidade dos programas do governo e podem levar à queda do valor dos títulos, porque os investidores ficarão com medo de um calote", explica Arilda.
Ela acrescenta que o recurso para o pagamento do auxílio emergencial vem da venda de títulos do governo. Se os investidores percebem que o governo possa estar permitindo o mau uso do recurso público, seja em fraudes do auxílio ou em contratos superfaturados, eles vão começar a vendê-los e o preço vai cair.
Somada a isso e ao aumento da dívida está a queda na receita, que contribuirá para o medo de que o governo dê um calote, ou seja, deixe de pagar os investidores.
"Quem compra título do Tesouro é como quem faz uma poupança: quer resgatar aquele dinheiro depois. Se as pessoas têm medo do calote, elas deixam de comprar e o Tesouro perde sua fonte de financiamento. Espero que não cheguemos a esse ponto", afirma a economista.
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