Ela aprendeu o ofício aos 9 anos vendo a mãe fazer as tradicionais panelas de barro. Filha, neta e bisneta de paneleiras, Carla da Victória, hoje com 46 anos, chega ao galpão de Goiabeiras logo cedo e já começa a produção das panelas. Por questões de saúde, entrega seus produtos para outras colegas, que dão os retoques finais, ou seja, fazem o polimento e a queima, antes da venda.
A vida de Carla, que também é conhecida como Cacá, sempre foi de muito trabalho – em meio a preconceitos. Além dela, as irmãs também ganharam a vida como paneleiras. Uma delas, inclusive, continua em um box ao lado de Carla. Como ela mesma diz, praticamente não teve infância, porque sempre trabalhou. A luta também é um marco na vida dela. Foi aos 13 anos que a paneleira se assumiu como uma mulher trans.
Na época, ela não entendia muito bem o que seria isso. Sofreu preconceitos e violência por conta de sua identidade de gênero.
“Não tive muito apoio da minha família. Sofri abuso sexual e até invadiram a minha casa para tentar me matar. Desde o início, contei apenas com o apoio de minha avó, que já faleceu, e dizia que me amaria independentemente de eu ser menino ou menina. Até tomei hormônio por conta própria. Hoje, já sou aceita e minha mãe me valoriza como filha, mas sofri durante muito tempo”, revela.
Os anos se passaram e hoje Carla se identifica como uma pessoa simples e brincalhona. A paneleira conta que ia com a mãe para o local onde são feitas as panelas de barro, famosas no Brasil inteiro, usadas para preparar moqueca capixaba, pirões e muitas outras delícias.
“Saía da escola e ia com a minha mãe para o galpão. Por curiosidade, ficava olhando o que ela fazia e foi assim que aprendi a produzir as panelas. Já são 36 anos trabalhando com isso. O barro chega, faço a panela e no dia seguinte coloco as alças. Chego a fazer 150 peças por semana”, comenta.
Carla nasceu como menino e, apesar de se assumir como mulher ainda adolescente, só conseguiu trocar o nome social há seis anos. Ela nunca trabalhou com carteira assinada, apenas por conta própria.
“Fui começar a entender isso tudo aos 25 anos. Passei muita coisa na escola e parei de estudar quando estava na 5ª série do ensino fundamental. Hoje, as coisas já estão melhores. Apesar de amar a cultura das paneleiras, faço porque preciso. Já pensei em desistir várias vezes, mas acredito que Deus escreve nossas histórias e dou continuidade até Ele permitir”, conta.
O número de pessoas que trabalham na fabricação de panelas de barro vem caindo ao longo do tempo, como observa Carla. Segundo ela, pessoas mais novas não se interessam pelo ofício, o que pode provocar o encerramento da atividade daqui uns anos.
O sonho de Carla é conseguir comprar a casa própria e trabalhar como influencer. Em suas redes sociais, ela produz vídeos contando sua história, faz apresentação de danças, entre outros conteúdos.
O ofício das paneleiras é reconhecido como patrimônio imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). A Associação das Paneleiras de Goiabeiras foi fundada em 1987 e garante a organização do espaço do galpão e divisão das funções na fabricação das panelas, em Goiabeiras Velha, Vitória.
De acordo com o Iphan, o processo de produção conserva todas as características essenciais que identificam as panelas. O produto típico capixaba continua sendo modelado manualmente, com argila sempre da mesma procedência e com o auxílio de ferramentas rudimentares.
Carla da Vitória, ela é uma mulher trans e faz panelas de barro
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