No terceiro dia após começar em um sonhado novo emprego, José Antônio Souza Laia, de 25 anos, sofreu assédio e transfobia. Já Sandy Vasconcelos, de 53 anos, enfrentou muitas palavras fortes e até agressões por ser quem é. O mundo do trabalho é sempre cercado de desafios. Mas, para algumas pessoas, esses desafios são bem maiores, quando não são verdadeiros obstáculos.
Devido ao preconceito, a realização profissional e a autonomia financeira ficam mais distantes para travestis e transexuais, por exemplo. Dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra), apenas 4% dessa parcela da população brasileira estão no mercado de trabalho formal — e somente 0,02% tiveram acesso ao ensino superior.
Para muitos, a realidade acaba sendo o subemprego ou mesmo emprego algum. Outros, felizmente, encontram um caminho no empreendedorismo. Cansados de enfrentar portas fechadas e telefonemas de recrutamento que nunca chegam, alguns travestis e transexuais conseguem romper a barreira da exclusão e trabalhar por conta própria.
No mês da Visibilidade Travesti e Transexual, A Gazeta conta as histórias de José Antônio e Sandy, um homem e uma mulher trans que apostaram no empreendedorismo e no conhecimento para se destacar no mercado de trabalho e driblar o preconceito.
Para a gerente de Empreendedorismo Feminino, Diversidade e Inclusão do Sebrae Nacional, Georgia Nunes, os negócios tocados por pessoas trans representa muito mais do que autonomia financeira. Os locais de trabalho acabam se tornando espaços inclusivos e acolhedores para a comunidade LGBTQIAPN+.
“Esses empreendimentos não são apenas fontes de renda; tornam-se também um símbolo de resiliência, permitindo que essas pessoas assumam o protagonismo de suas histórias e desafiem as narrativas de exclusão que lhes foram impostas”, afirma.
Esse é o caso de José Antônio. Seguindo os passos da mãe, que sempre trabalhou com salão de beleza, José Antônio também atua no ramo. Ele é barbeiro e presta serviço na Mr. Boldness, no Centro de Vitória, barbearia comandada Júlio do Espírito Santo, que também é um homem trans.
“Trabalhar com ele foi um divisor de águas para minha carreira e para minha vida, pois o estabelecimento foge dos padrões das barbearias tradicionais, que muitas vezes são ambientes onde há preconceito e machismo. Lá me sinto confortável em trabalhar”, afirma José Antônio.
O jovem começou a transição em 2019, quando ainda fazia o curso de Filosofia na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Antes de terminar a graduação, durante a pandemia, ele trancou a faculdade e foi fazer um curso de barbeiro no Senac e, na sequência, o curso Técnico de Estética, no CEET Vasco Coutinho, em Vila Velha.
Mas o percurso profissional não foi tranquilo. Antes de trabalhar na barbearia em que está, sofreu um abalo emocional com o preconceito em um emprego anterior.
“Em 2022, tive a oportunidade de trabalhar em uma barbearia famosa. No terceiro dia que estava lá, sofri assédio e transfobia, o me abalou muito. Na época, fiquei muito pensativo", conta José Antônio, que contou com a ajuda da mãe e da avó para montar seu próprio estúdio – apoio familiar que nem todos os trans e travestis podem ter. "Depois disso, fui chamado para dar aula de barbearia nos Centros de Referência da Juventude (CRJ) de Guarapari e São Torquato”, relata.
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Foi nessa época que José Antônio conheceu seu mentor e colega de profissão, Júlio do Espírito Santo, proprietário da Mr. Boldness há quatro anos. A equipe conta ainda com Júlia Baldan Vaz. Cada um dos profissionais têm um CNPJ.
“Fico feliz em proporcionar esse ambiente de cuidado. Muitos não se sentem confortáveis em frequentar barbearias comuns e acabam cortando o cabelo sozinhos e se descuidando da barba”, diz.
Para os próximos anos, José Antônio pretende retomar os estudos da Filosofia, principalmente para se aprofundar no segmento de estética no qual ele atua.

Luta por cirurgias e produção cultural
A trajetória da produtora cultural e atriz Sandy Vasconcelos, de 53 anos, foi marcada por lutas, descobertas e muito trabalho. Ela fez a cirurgia de resignação sexual em 1998, sendo uma das primeiras no Espírito Santo. Nos últimos anos, é empresária, dona da Aprenda Praticando, que oferece cursos e serviços na área de audiovisual e desenvolve outros projetos.
"Antes da cirurgia, pessoas passavam e cuspiam em mim", relata. No mercado de trabalho, não foi diferente.
“A pergunta que me faço desde criança é se somos transparentes ou invisíveis. Não vemos pessoas trans na recepção do hotel ou do dentista, porque o mercado de trabalho ainda é muito difícil para nós. Se as portas não se abrem, como vamos ser inseridas? Vemos muitos homossexuais por aí, mas para as pessoas trans é mais difícil. Ainda existe muito preconceito”, lamenta.
Sandy foi convidada a dar um depoimento no filme produzido e dirigido pela atriz Cláudia Abreu, algo que lhe abriu as portas para trabalhar com outros diretores. “Volta e meia recebo convites de diretores do Rio de Janeiro que receberam indicação do meu trabalho”, relata.

Sandy morou por um tempo na Europa, onde aprendeu sobre animação, produção e direção, realizando diversos trabalhos. Atualmente, ela trabalha na produção de três filmes.
Sandy Vasconcelos
Atriz e produtora cultural
"Optei pelo caminho da cultura e, dentro do meu trabalho artístico, tento levantar essas bandeiras. É necessário ter mais diretoras e membros de equipes trans"
Qualificação faz a diferença
No Espírito Santo, existem espaços que acolhem e oferecem suporte à população trans e travesti, como é o caso da Associação Gold. Além de funcionar como uma rede de apoio, a instituição desenvolve projetos que incluem cursos dos mais diversos ramos, que possibilitam que as pessoas possam abrir o próprio negócio.
“É preciso se sensibilizar e dar oportunidade de trabalho, inclusive nas empresas, para que pessoas trans e travestis possam sair da situação de vulnerabilidade”, ressalta comenta a coordenadora de ações e projetos da Gold, Deborah Sabará.
Além da Associação Gold, o Sebrae oferece cursos on-line de graça que ajudam pessoas transgênero e travestis a expandirem seus horizontes e ainda ajudar na decisão de empreender. Outra opção é fazer um dos cursos oferecidos pela Agência de Desenvolvimento das Micro e Pequenas Empresas e do Empreendedorismo (Aderes).
A gerente de formação empreendedora da autarquia, Stela Rosseto, afirma que os mais procurados são das áreas de beleza e costura. “No final de 2024, tínhamos turmas com pessoas trans entre os participantes", conta.
Os cursos são para o público em geral, mas pessoas trans têm o direito de utilizar o nome social, mesmo que ainda não constem no documento oficial. “Esta é uma forma de cuidar das pessoas com respeito”, opina Stela.
Data marca a luta
O Dia da Visibilidade Travesti e Transexual é comemorado no dia 29 de janeiro. Trata-se de uma das letras da sigla LGBTQIAPN+, que engloba pessoas que não se identificam com o gênero que lhe foi atribuído ao nascimento. São eles: travesti, transgêneros e transexuais.
A data foi escolhida porque nesse dia, em 2004, foi lançada a campanha “Travesti e Respeito”, onde pela primeira vez, lideranças do movimento trans e travesti marcaram presença no Congresso Nacional para falarem sobre a realidade dessa população. O evento foi realizado na Câmara dos Deputados, em parceria com o Ministério da Saúde.
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