Numa casa simples do Bairro das Laranjeiras, em Jacaraípe, na Serra, o que há de mais valor não é visível aos olhos. A fé de dona Maria de Lourdes Pereira é algo que transcende a compreensão de muitos, mas também renova a esperança de outros tantos. Aos 99 anos, ela é uma benzedeira, atividade que começou ainda criança e que é cada vez mais rara de se encontrar.
Dona Maria se recorda de estar trabalhando na roça, em Teixeira de Freitas, na Bahia, quando percebeu o que ela considera “um chamado”. Ela estava na plantação de mandioca e sentiu como se tivesse levado três tapas na testa, mas não havia ninguém por perto.
Com sete anos e sem entender o que se passava, correu para casa para contar o que tinha acontecido para a mãe.
Dona Maria
Benzedeira
"Quando cheguei, antes de colocar o pé na porta, eu senti que aquela pessoa falava assim: ‘pode entrar, a casa é sua. Deus está na frente’. Dali, eu comecei a rezar o Padre-Nosso e a Ave-Maria, e estou até hoje."
Então, foi com base nas orações católicas que dona Maria iniciou-se no mundo das benzedeiras. Na vizinhança da cidade baiana, logo que souberam de seus feitos, a casa da família começou a ser procurada para que a menina abençoasse aqueles que mais precisavam.
Os anos se passaram e ainda é assim. Crianças, adultos e idosos, pessoas sãs ou doentes, com ou sem dinheiro, de perto e de longe, recorrem às rezas da dona Maria, que mora há 65 anos no Espírito Santo.
A benzedeira, agora, não se apega tanto às preces tradicionais e usa uma inspiração que se pode dizer divina para fazer o seu trabalho. Invoca Deus e Nossa Senhora, os santos aos quais tem devoção, e vai seguindo seu ritual para afastar de cada um os males que os afligem.
RITOS
É na varanda de casa que dona Maria recebe os fiéis. Por ali, uma mesa faz as vezes de um altar. Coberta com uma toalha impecavelmente branca, tem imagens de Nossa Senhora de várias denominações – Aparecida, Fátima, Penha – e de santos. Uma vela está sempre acesa e folhagens mantêm-se verdes em um jarro de água.
Dona Maria carrega no pescoço um terço que, junto com um ramo de planta, é usado no momento de abençoar quem lhe pede auxílio. Faz o sinal da cruz e reza em voz alta, oferecendo bênçãos e tentando expurgar dores, doenças, maus sentimentos.
A professora aposentada Maria Regina Baptista há mais de 20 anos frequenta a casa da benzedeira. Foi por indicação do marido, já falecido, e segue buscando apoio nas orações que recebe.
“Mas também venho aqui para visitá-la, fazer companhia. Estar junto nos faz bem, ela é uma pessoa adorável, acolhedora”, destaca a aposentada que, acompanhada dos irmãos Isabel e Daniel, esteve nesta semana na casa de dona Maria. Todos foram benzidos e sempre se sentem mais leves e recompensados após receberem as orações da benzedeira.
#somoscapixabas - Ritual que resiste ao tempo
MISSÃO
Dona Maria também garante estar feliz com o trabalho que realiza por acreditar que seja uma missão, um dom de Deus. Por outro lado, o avançar da idade e a rotina ininterrupta de benzimentos a deixam mais cansada. Ainda assim, não pensa em parar.
Às vezes, deixa o prato de comida de lado para atender quem lhe bate à porta. Nesses chamados, já benzeu pessoa indicada por farmacêutico, que considerou a oração mais eficiente do que o remédio, e até quem estava desenganado pelo médico.
Neste caso, lembra dona Maria, ela mesma pensou que seria difícil a recuperação do paciente. Depois de seis meses no hospital, o médico tinha dado alta para que ele morresse em casa. Mas um carroceiro o levou, numa cadeira de rodas, até a benzedeira.
Dona Maria
Benzedeira
"Quando botei minhas vistas em cima desse moço, minha lágrima escorreu, e falei: ‘Jesus de Nazaré, me dai força!’ Ele chegava a ser cinzento"
Com água benta e galhos de arruda, dona Maria benzeu aquele homem que não havia encontrado cura pela ciência. “Eu benzi esse moço nove sextas-feiras, mas com três dias já não precisava mais de cadeira de rodas e já veio sozinho, aqui em casa, com a bengala. Continuei a benzê-lo até terminar as orações para ele. Hoje, está cavando de enxadão, cortando de facão, fazendo de tudo”, conta, satisfeita.
Há pessoas que também pedem que dona Maria faça o benzimento de suas casas ou ajudem a enfrentar problemas para além das questões de saúde, como um vizinho de quem uma plantação estava infestada de lagartas. Após as orações, os bichos morreram.
ATÉ O FIM
Questionada se faz o próprio benzimento, dona Maria afirma que não poderia trabalhar para si mesma e diz que o ideal seria encontrar outra benzedeira para lhe fazer orações. Contudo, recentemente quando apresentou um problema de estômago, circulou por Vitória, Serra, Fundão e até Aracruz, e não encontrou.
“Não consegui encontrar. Por aqui só tem, primeiramente Deus e Nossa Senhora, depois eu e minhas palavras. Decidi me benzer e falei: ‘seja o que Deus quiser!’”, revela dona Maria, acrescentando que já se recuperou.
Com a voz um pouco rouca e sempre com um sorriso no rosto, a benzedeira conta que pretende continuar com sua missão enquanto viver. E não poderia ser diferente. Mesmo para quem estava em sua casa a trabalho, como a equipe de reportagem de A Gazeta, voltou-se com um abraço apertado e uma breve oração cheia de bênçãos. Que assim seja, dona Maria!l
SERVIÇO
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Dona Maria atende durante a semana, de segunda a sexta-feira, até as 17 horas. O endereço é Rua de Todos os Santos, número 19, Bairro das Laranjeiras, em Jacaraípe.
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