Lixão de São Pedro. Catadores coletando resíduos. Ao fundo, Casebres e  manguezal
Lixão de São Pedro. Catadores coletando resíduos. Ao fundo, Casebres e manguezal. Crédito: Arquivo público de Vitória

Lugar de toda pobreza: o bairro São Pedro 35 anos depois de documentário

Filme mostrou a rotina da população que tirava o sustento do lixo

Publicado em 08/12/2018 às 08h29
Atualizado em 23/09/2019 às 15h40

O ano era 1983 e a pequena Leonilda da Penha Barcelos, com seus nove anos de idade, se divertia no balanço embaixo da casa de madeira, uma palafita construída pelo irmão mais velho. Ao seu redor, o lixo de onde diversas famílias tiravam seu sustento. A cena descrita é do documentário "Lugar de toda pobreza", do jornalista Amylton de Almeida, gravado na região de São Pedro, Vitória, e exibido pela TV Gazeta naquele mesmo ano. De lá para cá, passados 35 anos, a região se expandiu com grande força, e tem 10 bairros com 33 mil habitantes. Um história marcada pela superação na busca por direitos mínimos de cidadania.

"Quando me vi naquele documentário, depois de adulta, relembrei minha infância e senti orgulho, emoção e repensei como tudo aconteceu. Superação é a palavra", relembra Leonilda, hoje com 44 anos. O filme retratou a vida dos catadores de materiais recicláveis, a maioria mulheres, crianças e desempregados que buscavam algo de aproveitável no meio das 320 toneladas de lixo domiciliar, de empresas e até de hospitais despejadas diariamente pela Prefeitura de Vitória. A época segue viva na memória dos moradores orgulhosos do passado de lutas e perseverança.

A ocupação da Grande São Pedro foi reflexo das transformações vividas no Brasil no final da década de 70 com a migração do homem do campo para a cidade. No Estado, os migrantes foram atraídos pelos grandes projetos industriais (Vale e a antiga CST, hoje ArcelorMittal) na Capital. O mangue abrigou os que chegavam do interior do Espírito Santo, Minas Gerais, Bahia e Rio de Janeiro. Famílias numerosas que estavam formando uma nova cidade no contorno noroeste da Ilha de Vitória.

A mãe de Leonilda, 72, se mudou com o marido e os então oito filhos do município de Santa Leopoldina, no Norte do Estado, em 1977 e, desde então, acompanha e vive as transformações do local. Da chegada do lixo, em meados de 1981, à sua extinção, no início dos anos 90. Da construção das casas de madeira no mangue, cercadas por pinguelas, até o calçamento das ruas aterradas com o lixo e a construção das casas de alvenaria.

relembra Mariolina. Ela teve 15 filhos dos quais 10 estão vivos.

Aqui antes era tudo lama, não tinha casas, não tinha nada. Eu trabalhava no lixão porque meu esposo ganhava pouquinho, não dava para sustentar a família toda, que era grande

A FORÇA DAS MULHERES

A ex-catadora de material reciclável Corina de Jesus, 70 anos, também chegou com a família em São Pedro no ano de 1977. Mineira de Governador Valadares, começou a trabalhar no lixão pois o marido estava doente e desempregado. Em seu relato em "Lugar de toda a pobreza" compartilhou sua luta diária: com o dinheiro que ganhava da venda dos recicláveis comprava arroz, feijão, pão, o que conseguia.

"Vim de Valadares, sou mãe de seis filhos, meu esposo é doente, não temos salário nenhum e vivemos de comprar os quilinhos", disse Corina em entrevista sobre como adquiria seus alimentos, com um cenário de mangue tomado por lixo ao fundo. Ela teve mais dois filhos.

Corina faz parte de um grupo de mulheres de força e determinação que moldaram a história da região de São Pedro. Junto a Dona Leda dos Santos, já morta, que na época era presidente da Associação de Catadores, estava sempre presente nas novas ocupações e nos movimentos populares para reivindicar instalações de água e luz para os moradores.

No livro com o mesmo nome do filme, "Lugar de toda pobreza", Amylton descreve um dos conflitos por terra: o espancamento do delegado, na época, Josino Bragança, pelos catadores após ele ter batido em Corina, que estava grávida. A confusão se formou quando os policiais interditaram o lixão por ordem judicial. Mas os catadores foram vitoriosos na Justiça, conseguiram uma liminar concedendo-lhes a reintegração de posse. O livro contém reportagens assinadas por Amylton e Carlos Henrique Gobbi publicadas em A GAZETA na época.

Corina trabalhou com mais 127 ex-catadores na usina de lixo criada após a extinção do lixão, em 1990, e se aposentou após seu último trabalho no posto de saúde de São Pedro. Aos 70 anos, está com a fala comprometida após 11 acidentes vasculares cerebrais (AVC). Em seu encontro com A GAZETA, se emocionou diversas vezes ao assistir aos vídeos e ver as fotos da época do lixão. Hoje, Corina mora em Morada da Barra, em Vila Velha, onde recebe cuidados de uma das filhas.

NOVAS FAMÍLIAS

A urbanização da região de São Pedro, hoje formada por 10 bairros e com aproximadamente 33 mil habitantes, foi em ritmo galopante. No início de 1977, eram poucas famílias ali instaladas, e, no meio daquele ano, já se encontravam diversos barracos a perder de vista. Quando o lixo começou a ser depositado, em 1981, chegou ainda mais gente, com explicou a ex-líder comunitária e professora aposentada Graça Andreatta, de 70 anos.

Graça Andreatta

O grosso do pessoal mesmo chegou em abril de 1977. Meu pai morava em Araçatiba, em Viana. Um dia fomos buscá-lo para passar o final de semana com a gente, em Vitória. Saímos de manhãzinha e quando voltamos, no fim da tarde, a parte de cima do bairro estava toda ocupada

A história de Graça com São Pedro tem início no carnaval de 1977, ano de fundação do bairro. Ela e o marido, Rui Coelho, tinham acabado de se mudar do Rio Janeiro para Vitória e cercaram um lote para morar.

"Todo mundo acha que São Pedro foi invadido. Não foi. Nós fomos à prefeitura saber onde tinha lote vazio, ver a planta da cidade. Um fiscal nos levou ao Morro de São Benedito e, depois, ao que seria São Pedro", relata Graça Andreatta.

Graça passou grande parte da vida em São Pedro, e escreveu o livro "Da lama prometida à redenção", que narra as lutas vividas pelo povo da região. O livro foi traduzido para o italiano e foi parar nas mãos do papa João Paulo II, que veio a Vitória em 1991, em sua visita ao Brasil.

Conta-se que a escolha pela Capital foi após o papa ler o livro de Graça e assistir ao documentário de Amylton. Em Vitória, o religioso visitou São Pedro e celebrou uma missa no local que hoje é chamado de Praça do Papa, na Enseada do Suá.

 

A Gazeta integra o

Saiba mais
espírito santo são pedro vitória

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.

A Gazeta deseja enviar alertas sobre as principais notícias do Espirito Santo.