Willian não é só mais um Silva. O primeiro desembargador negro do Espírito Santo foi eleito em 2011, 23 anos após ter assumido o posto de juiz. "Eu cheguei por merecimento, mas poderia ter chegado antes, também por merecimento", avalia Willian Silva, 64 anos. O capixaba natural de Alegre, no Sul do Estado, se mudou com a família para o Bairro da Penha, em Vitória, ainda criança.
Como o senhor avalia a representatividade no Tribunal?
Não é só o tribunal que tem a maioria esmagadora branca. Somos 28 desembargadores. No Estado, o Poder Judiciário tem aproximadamente 3.500 funcionários, mas nós não temos 5% de negros. O Brasil está em dívida com os negros. Embora seja difícil de acreditar, não faz muito tempo que, pelo simples fato de possuirmos pele de cor preta, mesmo com aptidões profissionais, éramos tratados como mercadoria. E a despeito da abolição da escravatura, os negros foram jogados, esse é o termo entre aspas, no mercado de trabalho de qualquer forma, como se não tivessem preparo algum. E na realidade o preparo era pouco porque as oportunidades também eram poucas. Então, poucos negros tiveram acesso à educação, à saúde. Mesmo com a abolição da escravatura, continuaram dependentes dos brancos porque não foram dadas condições. Essas condições, até hoje, não são dadas de forma isonômica.
As cotas seriam uma dessas tentativas de reparação?
Essa corrida já começa injusta porque os brancos sempre tiveram um acesso mais fácil. Essa diferença você só tira como? Não é tratando todos com isonomia. As cotas devem continuar existindo pelo menos para minimizar as desigualdades. Significa dizer que os brancos sempre foram, e vão continuar sendo por algum tempo, mais preparados, em termos profissionais, pois eles têm mais acesso à escola, tem mais assistência médica do que os negros. As cotas existem para tentar, um dia, atingir esse equilíbrio. Tanto é que cota não pode ser perpétua, tem que ser com o prazo, porque, se atingiu o objetivo, não precisaremos mais de cota.
Como o senhor chegou até aqui?
Sempre gostei de estudar. Você tem que se dedicar mais porque você é obrigado a provar que é o melhor. Cheguei por merecimento, mas poderia ter chegado antes também por merecimento.
Como magistrado, se depara com discriminação?
É hipocrisia falar que não há discriminação, mas também posso falar que hoje você é muito mais aceito, as pessoas estão mais conscientes do que há 15 anos. Pessoas são discriminadas porque são negras, humildes ou por terem determinadas funções. Não me tratam da mesma forma porque sou desembargador. Se não fosse isso, a discriminação seria explícita. Tenho algumas histórias sobre isso. Eu já era juiz, mas morava em Jardim da Penha. Antigamente era hobby, uma terapia, você lavar seu carro. Peguei uma mangueira na rua, naquela época ainda era permitido fazer isso. Enquanto eu estava lá, relaxando e limpando o carro, uma senhora parou do meu lado e perguntou: 'menino, tá cobrando quanto pra lavar? Esse é o último?' Eu sorri e respondi que o carro era meu (risos). Até hoje acontece. Tô em algum lugar e perguntam 'quem é aquele negão?' Aí respondem: 'ele é desembargador.' E aí já sinto que, se não fosse minha a autoridade, o tratamento poderia ser diferente. Saio e continuo vendo do mesmo jeito: não tem preto em quase nenhum lugar onde eu vou.
E na infância, como era?
O meu filho mais velho, um dia me perguntou: ‘pai, você já foi discriminado na escola? Respondi: ‘nunca sofri discriminação porque eu era bom de porrada, meu filho’. Todo mundo me respeitava. Eu era capoeirista. Ninguém mexia comigo porque sabia quem eu era. Mas eu nunca fui de confusão. Eu era do futebol. Quem é do futebol não fica de fora de nada, todo mundo quer o cara perto.
Qual a importância do Dia da Consciência Negra?
Não devemos esperar o dia 20 de novembro para falar sobre essas questões. Temos de adotar uma conscientização diária. O problema é que essas mudanças não vão ocorrer de uma hora para outra, ela é lenta. Estamos querendo mudar o que aconteceu em 300 anos em um dia, isso é impossível.
E na condição de desembargador, como tem agido neste processo de conscientização?
Estudei na Ufes e era o único negro da turma. Era do movimento negro e de outros movimentos sociais na época da universidade. Hoje eu não posso ter lado político, partido político, eu não posso participar de movimentos negros. Hoje eu julgo e não posso me envolver. Se fosse, teria de participar com todos, não posso escolher um. O que tenho feito são ações dentro das minhas decisões. Fizemos uma resolução para normatizar o ingresso de estagiário no Poder Judiciário no Estado todo. Jamais se pensou em reservar cotas para negros. Eu sugeri e nós conseguimos aprovar no Pleno cota para negros.
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