O Brasil recebeu cerca de 5 milhões de escravos africanos ao longo de praticamente três séculos e meio de regime escravocrata. A sociedade brasileira foi a última a abolir a prática no continente americano. Homens, mulheres e crianças negras são considerados seres livres no território nacional há 131 anos. Mas a luta contra o preconceito e a desigualdade não terminou. Ela é travada todos os dias.
Desde 2003, o Dia Nacional da Consciência Negra é celebrado como um marco de resistência e uma oportunidade para fomentar a discussões sobre questões relevantes para o Movimento Negro. A data está regulamentada pela Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que incluiu o dia 20 de novembro no calendário escolar.
O texto também tornou obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira nas instituições de ensino. Para o militante do Movimento Negro e pesquisador das relações étnico-raciais e de estudos afro-brasileiros, o doutor em Educação Gustavo Forde, o dia 20 faz contraposição ao que é pregado no dia 13 de maio, data da Abolição da Escravatura.
Na avaliação de Forde, o Dia da Consciência Negra tem uma importância histórica e relevância quanto memória coletiva. A época também traduz questões sociopolíticas essenciais ao processo de fortalecimento do diálogo e reflexão quanto ao conjunto de episódios que constituíram e sustentam a sociedade brasileira.
É um momento especial para que a própria população negra possa rememorar a sua história coletiva, a sua ancestralidade, reafirmar sua cultura e reafirmar o seu lugar em nível, enquanto grupo social. Significa, sobretudo, apontar que na sociedade brasileira, negros e negras ainda não são considerados sujeitos com mesmo valor social, pontua.
A assistente social Meyrieli de Carvalho Silva é mestranda em Política Social pela Ufes e pesquisa o racismo nas políticas públicas. No entendimento dela, o Dia 20 é uma possibilidade educativa e de enfrentamento ao racismo como um elemento que estrutura as relações sociais.
A combinação de poder e dominação que o racismo estabelece hierarquiza as vidas, conceitua a estética negra como feia e imprópria, demoniza religiões afro-brasileiras, encarcera em massa mulheres e homens negros e, de modo geral, coloca a população negra nos piores indicadores com relação à dignidade da pessoa humana, aponta.
A partir da data de reflexão e celebração, Meyrieli enxerga o período como uma nova oportunidade para a discussão de novas lideranças negras. Segundo ela, não houve justiça e equidade a partir de 14 de maio de 1888, dia posterior à Abolição da Escravatura, ocorrida há 131 anos.
Um dia após a Abolição da Escravidão, negros e negras não foram reparados e nem ressarcidos pelos quase 380 anos de assassinatos, estupros, rompimento forçado de vínculos familiares e comunitários, dentre tantas violações acometidas a população negra no Brasil, ressalta.
Mas os abusos do passado permanecem enraizados na sociedade, provocando graves distorções, como as retratadas na série de reportagens produzidas por A Gazeta, nos últimos cinco dias. As matérias apontam que a desigualdade e o preconceito se manifestam em números. Embora sejam maioria no Espírito Santo, representando 63,3% da população capixaba, as pessoas autodeclaradas pretas e pardas lidam com o desemprego, recebem os menores salários, têm baixa escolaridade, vivem em moradias inadequadas e são os que mais sofrem com a violência.
Com renda inferior aos brancos, os negros são os que mais comprometem o salário com o aluguel do imóvel onde moram, têm menos acesso à internet e também a bens de consumo como carro, moto e máquina de lavar. Para se ter uma ideia, só 3 em cada 10 pessoas pretas possuem carro.
Essas restrições de consumo estão relacionadas à dificuldade em obter crédito, uma vez que os negros são os que recebem os menores salários. A comparação entre a renda de pessoas autodeclaradas pretas e brancas, no setor público e na iniciativa privada, revela um abismo financeiro.
Dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) de 2017, da Secretaria do Trabalho, do Ministério da Economia, apontam que um homem autodeclarado preto em cargo público ganha 32,1% a menos do que um branco no mesmo segmento. Enquanto um homem preto recebe R$ 6.114,22, um branco ganha R$ 9.006,05.
Já a morte de negros no Espírito Santo é quase cinco vezes maior do que a de brancos. As estatísticas revelam a luta diária pela sobrevivência definida pela cor da pele e também a solidão dos negros que conseguem ascender na sociedade. "Não tem preto em quase nenhum lugar onde eu vou", comenta o primeiro desembargador negro do Espírito Santo, Willian Silva, 64 anos. Em entrevista para A Gazeta, ele relembra a sua trajetória até ser eleito como desembargador do Tribunal de Justiça do Estado, em 2011, e faz uma reflexão sobre os atrasos impostos pelo preconceito. "Eu cheguei por merecimento, mas poderia ter chegado antes, também por merecimento", analisa.
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