Seu João Miguel usa até coroa e manto, homenagem a um dos mestres folclóricos
mais idosos do Estado.
Seu João Miguel usa até coroa e manto, homenagem a um dos mestres folclóricos mais idosos do Estado. Crédito: Luciney Araujo/TV Gazeta

Morador de 102 anos comanda tradicional festa de Ecoporanga no quintal de casa

Seu João Miguel é responsável pela Roubada da Bandeira, evento que ocorre há 35 anos no município do Noroeste do Espírito Santo

Publicado em 09/02/2020 às 17h12

Por: Luanna Esteves

Não importa se a coroa é de plástico reluzente ou se o manto é um TNT vermelho com fitilhos dourados: o reinado de seu João Miguel é de uma grandeza que só, com muita ostentação de carinho.

O que afirma o seu poder é o fato de seu aniversário ser a mais tradicional festa cultural do município de Ecoporanga, no Noroeste do Espírito Santo, atraindo toda a comunidade da Prata dos Baianos para seu próprio quintal há ininterruptos 35 anos - sinal de respeito a um dos mestres folclóricos mais idosos em atividade no Estado.

Com as vestes reais, seu João é o festeiro responsável pela divertida e popular Roubada da Bandeira. Essa é uma das muitas histórias que a equipe do “Em Movimento Viaja”, da TV Gazeta, encontrou durante as andanças pelo Estado

Então, vamos viajar: o dia é 24 de junho. A música é animada. Os versos são embalados por triângulo, viola e pandeiro. Há sorrisos e coreografia entre fitas e chapéus de palha. No céu, pipocam muitos fogos de artifício. Está hasteada a bandeira de São João. “É noite de festa!”, alguém celebra. “Vivaaaaaa São João”, entoam em coro.

Mas vamos pedir licença ao santo porque também seu João tem destaque na comunidade, pois, juntos, compartilham o dia do aniversário. Da tradição da reza para o santo, nasceu outra: uma festa guiada por um cidadão espírito-santense de 102 anos muito bem vividos.

“O vô é uma referência na (comunidade da) Prata. Tem amizade com todo mundo, dá conselho para os jovens, sempre com uma pinguinha do lado”, conta, todo orgulhoso, o neto Elizeu Quintino.

E com o riso esperto e o olhar simples, seu João Miguel destaca como chegar à sua idade com saúde:

Seu João Miguel

Mestre folclórico

"Hoje eu vivo da aposentadoria, mas construí minha vida na enxada. Talvez por isso chego nos meus 102 anos com saúde, minha filha. Até me casei de novo com 98 anos e ainda tô ativo, viu?! "

“Minha vida é simples. Gosto de jogar baralho, ir à igreja, ouvir meu radinho com música antiga, assistir jogo na TV e sabe do que eu gosto muito? De farra, minha filha”, apresenta-se. Não é à toa que seu aniversário é um grande evento.

RELIGIOSIDADE

Aliás, essa grande festa popular começou de uma forma bem inusitada. A família, sempre muito simples e religiosa, reunia- se para cantar parabéns para o “vô”. Tinha bolo, fogueira e muita reza, tanto que uma bandeira com a imagem do santo aniversariante sempre era hasteada no quintal.

Um dia, depois que a fogueira virou brasa, a bandeira foi roubada do alto do mastro de quase 20 metros de altura. E não é que o ladrão resolveu devolver no ano seguinte, também no dia 24 de junho! É como dizem, a oportunidade fez o ladrão, mas também fez uma tradição cultural que já é fixa no calendário de festas da cidade.

Hoje, além da família, todo o distrito de Prata dos Baianos, no interior de Ecoporanga, distante 327 km de Vitória, participa do festejo. Na década de 90, cerca de duas mil pessoas chegavam a ir em procissão até a casa de seu João Miguel. 

Seu João Miguel

Mestre folclórico

"Essa festinha minha é a irmandade unida que eu tenho aqui na Prata dos Baianos"

ESPETÁCULO

Pois a festa cresceu. Virou teatro: tem delegado, polícia, advogado, promotor e juíz para investigar e julgar o caso. Virou espetáculo: tem queima de fogos, música típica coreografada. Dançam os estilos conhecidos como “vilão”, “calango” e o “nove”.

A festa também se tornou um banquete: são mais de 300 kg de cachorro-quente, caldo e canja, quase 200 litros de bebida - de quentão a leite com achocolatado -, tudo feito e bancado pela família, sem ajuda de custo do poder público. “Tem até água pra beber, acredita?”, brinca seu João.

Tamanho sucesso fez com que o festejo, que antes acontecia apenas no dia 24, fosse estendido e hoje é celebrado em duas semanas de muita tradição, entre os dias 12 e 30 de junho. No meio de tudo, quando entra o festeiro, todo mundo respeita, reverenciando a figura mais popular da comunidade.

ROUBO DESVENDADO

A Roubada da Bandeira de Ecoporanga já prendeu mais ladrões que Ali Babá, já que a festa é realizada há 35 anos. “Por várias vezes, não descobrimos só um ladrão. Tem vez que é formação de quadrilha”, brinca Odete dos Anjos, que sai de Vitória todos os anos para participar do festejo, às vezes atuando no teatro como promotora, às vezes sendo juíza ou delegada. 

“Tenho muito orgulho dessa festa, que fortalece os vínculos da minha família de um jeito tão alegre, brincalhão e carinhoso com meu tio João Miguel. A festa reúne toda a família, é como se fosse o Natal”, comenta.

Festa da Roubada da Bandeira, tradição na cidade de Ecoporanga, realizada no quintal do seu João Miguel. Crédito: Luciney Araujo/TV Gazeta
Festa da Roubada da Bandeira, tradição na cidade de Ecoporanga, realizada no quintal do seu João Miguel. Crédito: Luciney Araujo/TV Gazeta

É uma brincadeira levada a sério. Funciona assim: na calada da noite do dia 24, depois de acabar a festa no quintal de seu João Miguel, a bandeira fica lá hasteada, esperando ser furtada.

Quem se arrisca subir o mastro leva para casa. No dia seguinte, ao clarear, já começa na comunidade o burburinho de quem foi o ladrão da vez e de que jeito conseguiu pegá-la. Sabe o que faz a bandeira ser tão desejada? Reza a lenda que quem fica em posse dela está protegido da morte e de outros males, como se fosse um talismã.

Acontece que o ladrão só se manifesta um ano depois, em junho. Todos saem em procissão até a casa de seu João com velas acesas, clareando o céu do vilarejo com fogos de artifícios e o ladrão com a bandeira, acompanhado da multidão cantando versos que falam do cotidiano da comunidade.

Na casa de seu João Miguel, o ladrão é julgado, recebe lição de moral e é sentenciado. Os policiais que conduzem o “meliante” são representados pelas crianças da comunidade que tiveram um bom comportamento.

A pena? Não deixar a festa acabar nunca, participando no ano seguinte e garantindo, além da reza, comes e bebes para a comunidade.

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