De uma hora para outra, as tias animadas se aquietaram, os primos barulhentos ficaram em silêncio. Nenhuma piada. Nada engraçado e nada tinha graça. O pensamento estava voltado para o tio Salvador, que encerrou sua batalha contra a covid-19 numa UTI de hospital.
O irmão cantor, que alegrava os encontros em família com histórias engraçadas, às vezes mirabolantes, mas sempre com muita vida; o marido carinhoso com a mulher, com os filhos e os sobrinhos. Certa vez ele mesmo ensinou uma das filhas a desfilar às vésperas de um concurso de modelos e ficou todo orgulhoso após a vitória da menina. Produzia amigos por onde passava... e agora não está mais entre nós.
Algumas doenças são cruéis. Não atacam somente a quem está efetivamente doente. Familiares próximos, distantes, amigos chegados. Todos morrem um pouquinho.
O ataque desse vírus mortal é tão covarde que tirou até a chance de nos despedir. Poucas horas depois da morte: caixão fechado, aproximação proibida, cemitério e sepultura. Sem adeus. Sem o "vá com Deus", sem abraço para dividir a dor da perda. Um vazio que ainda não sabemos como vamos resolver. Com fé, acredito.
Enquanto não chega perto de nós, a pandemia nos remete à cena de caminhar pela avenida Paulista em dia de semana. Aquela multidão de desconhecidos. Milhares. Números apressados. E, de repente, muito particularmente, o coronavírus clareia um nessa multidão que vai embora. Não era o caso 8.878 do Espírito Santo. Era o tio Salvador. Assim como um tio Jorge, uma irmã Ângela, uma filha Bernadete, uma dona Claudia e um sem número de filhos, tios, sobrinhos, pais, avós que estão perdendo a briga pelo caminho.
Como se uma luz fosse acesa, esculpisse uma face e revelasse um rosto. Nos deixando cara a cara com a nossa fragilidade.
* Geraldo Nascimento é jornalista e descreve a perda do tio para a Covid-19, como ocorreu com milhares de pessoas em todo o país
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