Imagine estar em casa e, de repente, um tiro furar o telhado e te atingir em cima da cama? Ou, ainda, estar na missa e um projétil 'cair do céu' aos pés do padre? Apesar de intrigantes, ocorrências como essas têm sido registradas na Grande Vitória.
Com a crescente disputa de gangues rivais do tráfico de drogas no Espírito Santo, confrontos armados têm se intensificado e, consequentemente, os casos de balas perdidas. E não estamos falando aqui de tiros que acertam inocentes que estão na cena do crime em si, mas tem sido recorrente a queda de projéteis em locais bem distantes de onde os disparos foram efetuados: acertam pessoas ou atingem imóveis ou veículos, e ninguém sabe onde veio o tiro.
Em Vitória, por exemplo, uma bala perfurou o telhado de uma igreja e caiu aos pés do padre no meio da missa. Ainda na Capital, uma criança foi atingida enquanto fazia aula de Educação Física dentro da quadra de uma escola em Jardim da Penha. Em Cariacica, uma menina que estava dentro de casa foi ferida na cabeça após um projétil também atravessar a cobertura do imóvel. E ainda o caso mais recente com grande repercussão, o de um garoto de 10 anos que chegou a ficar na UTI após ter sido atingido também dentro de uma escola, em São Cristóvão, em Vitória.
AFINAL, QUAL É O CAMINHO DA BALA PERDIDA?
Fomos atrás de informações sobre o assunto com o especialista Rodrigo Menezes, operador da Coordenadoria de Operações e Recursos Especiais (Core) da Polícia Civil do Espírito Santo e instrutor de sobrevivência policial e tiro tático.
- Por que um projétil pode cair tão longe do local do disparo original?
- Qual é o caminho da bala após o disparo, mesmo em situações de "tiro para cima"?
- Qual distância é capaz de percorrer?
Rodrigo Menezes explicou que, dos tiros disparados para cima, aquele com ângulo de 35 a 40 graus é o que pode chegar mais longe.
Em projéteis chamados de "baixa velocidade", como os de pistola, revólver e submetralhadora, o tiro disparado no ângulo de 35 a 40 graus pode percorrer uma distância de até dois quilômetros e meio.
Já aqueles considerados de "alta velocidade", como os de fuzil, a distância é maior: se disparado do ângulo de 35 a 40 graus, um fuzil de calibre 556 pode chegar até três quilômetros e meio, enquanto o do fuzil 7,62 pode percorrer até cinco quilômetros.
Os trajetos citados nos infográficos acima servem apenas para orientar o leitor sobre as distâncias capazes de um projétil disparado para cima e mostrar a complexidade de saber de onde vem o tiro.
E QUANDO O PROJÉTIL COMEÇA A DESCER?
"Quando a gente fala de capacidade de penetração, que é a capacidade de perfurar alguma barreira, a gente está falando de uma grandeza física chamada quantidade de movimento, ou movimento linear. É a massa vezes a velocidade. A depender do disparo, ele chega com pouca capacidade de perfuração porque ele já está abaixo da velocidade", detalhou o agente Menezes.
O especialista disse que, quando um atirador aperta o gatilho, o projétil sai do cano da arma com máxima velocidade, prestes a ferir alguém com gravidade que esteja na mira dele. No entanto, quando o tiro é em ângulo para cima, o projétil sobe rapidamente, impulsionado pela pólvora. Mas, em determinado momento, quando aquela "força" da pólvora acaba, ele já começa a descer perdendo aos poucos a capacidade fatal de perfuração.
"Ele [o projétil] começa a ser freado pela gravidade e resistência do ar. Quando é freado completamente, ele começa a cair, e aí o que vai ter a relação de capacidade de penetração é o peso dele, porque ele não passa de uma certa velocidade. Ele não atinge uma velocidade alta na queda, por isso não tem capacidade de penetração relevante para causar um dano mais grave, uma morte por exemplo", garantiu.
Rodrigo Menezes
Operador da Core da Polícia Civil e instrutor de Sobrevivência Policial e Tiro Tático
"Se todo mundo estiver no mesmo plano e eu coloco minha arma a 35 graus e atiro, ela vai ser impulsionada e sair do cano com máxima velocidade. Em determinado momento ela é freada, mas continua nessa direção de queda. Quando começa a queda, ela já não está mais impulsionada, a única coisa que a acelera é a força da gravidade. A relação então é da força da gravidade e o peso do projétil"
Apesar de, em grande parte dos casos não ter capacidade para matar, o tiro dado para cima, quando cai, pode provocar ferimentos. "É pouquíssimo provável que um tiro angulado (para cima), que já está em queda, cause uma lesão grave e possa gerar óbito, mas pode causar uma lesão, hematoma, machucado, não a nível que cause morte", garantiu.
Foi o caso de uma menina de 8 anos que acabou ferida na cabeça depois de uma bala perdida atravessar o telhado da casa dela em Jardim Botânico, Cariacica, em janeiro deste ano.
À época, a mãe da criança, uma dona de casa de 35 anos, relatou que ouviu um barulho e olhou para cima, em direção ao telhado da casa. Inicialmente, pensou que seria uma pedra arremessada e que havia quebrado a cobertura da casa, de folhas de amianto, mas, ao olhar para a filha, viu a garota ensanguentada e encontrou a bala no chão, ao lado da criança.
X, 35 anos
Dona de casa e mãe da criança ferida
"Estava fazendo o cabelo da minha filha e escutei o barulho de uma pedra caindo. Ela estava gritando, falando que estava queimando e veio o sangue. Quando vimos que era tiro, saí e pedi ajuda aos vizinhos"
A mulher explicou que só percebeu que se tratava de um tiro quando viu a bala no chão. Desesperada, ela procurou por outras marcas na menina, mas viu que se tratava de um único disparo.
A Polícia Civil informou que "o caso foi registrado como lesão corporal e não houve representação criminal dentro do prazo prescricional de 6 meses. O projétil apreendido foi encaminhado para setor do Departamento de Criminalística - Balística".
COMO OS TIROS DADOS NO MORRO CHEGAM NA BAIXADA?
Em janeiro do ano passado, uma bala caiu aos pés do padre Robinson de Castro Cunha, durante a celebração de uma missa na Igreja Matriz de São José, em Maruípe, Vitória. O culto era transmitido ao vivo. Veja abaixo:
À época, a coordenação de comunicação da igreja ressaltou que era "uma situação triste, mas que está se tornando comum e nossa paróquia atende regiões em volta, como o Bairro da Penha e o Morro do Macaco".
A Polícia Civil informou que foi instaurado um Inquérito Policial (IP) no 2º Distrito Policial para apuração do fato. "Já que é uma investigação em andamento, outras informações não poderão ser passadas", completou a corporação, em nota.
Como um tiro dado em um morro tem força para perfurar o teto de zinco de uma igreja, na baixada? O agente Menezes explicou:
Rodrigo Menezes
Operador da Core da Polícia Civil e instrutor de Sobrevivência Policial e Tiro Tático
"Em uma troca de tiros no morro, por exemplo, é como se você tivesse dando esse tiro angulado: ele tem essa projeção porque está acima da baixada. Do morro, ele não precisa dar esse tiro angulado (para cima). No confronto (quando um tiro é dado para frente) ele já vai ter essa angulação"
TIROS DE FUZIL
Já que tem maior velocidade, é comum pensar que um tiro de fuzil disparado para o alto tem maior chance de machucar alguém na hora que cai, certo? Errado! O agente Menezes disse o porquê:
"Por incrível que pareça, as pontas do projétil de fuzil 556 são mais leves do que as de pistola. Causa um dano maior se você der um tiro direto, porque sai com velocidade alta. Mas, se for para cima, depois de freado numa queda livre, o dano é até menor, porque a ponta é mais leve e o projétil mais leve".
Ele ressaltou que o de fuzil 556 é o mais leve, por isso, acaba com menor capacidade de penetração, quando dado para o alto. O de calibre 7,62 é diferente, mais pesado, então é mais perigoso ao 'cair do céu'.
PRESENTES NO COTIDIANO, MAS SEM REGISTRO OFICIAL
Mesmo que alguns dos casos sejam noticiados pela imprensa, não é possível saber o total de ocorrências no Espírito Santo: isso porque não existe essa tipificação — de "bala perdida" — na legislação. Segundo explica a própria Secretaria de Estado da Segurança Pública e Defesa Social (Sesp), essas ocorrências são notificadas no sistema como tentativas de homicídio.
RELEMBRE OUTROS CASOS NA GRANDE VITÓRIA
Bala cai na cama de menina em Aribiri
A empreendedora Viviane Pereira Valle Luiz, de 34 anos, estava em casa com os filhos quando ouviu um tiroteio, em julho deste ano, no bairro Aribiri, em Vila Velha. Ela chegou a escutar um estouro mais forte, mas, como parecia longe, não se atentou. A família foi viajar e, na volta para a residência, teve uma surpresa.
"Eu estava na cama da minha filha de 5 anos e ela disse que tinha algo no teto. Era um buraco, achei até que um rato tinha feito. Quando olhei para a cama, vários estilhaços do PVC. Aqui em casa é telha, um isopor bem grosso e o PVC. Perguntei para minha filha se ela tinha achado algo na cama, e ela disse viu um 'ferrinho'", contou Viviane.
O projétil ter caído em cima da cama da criança deixou todos assustados. "Na hora meu coração gelou. Os tiros não foram tão perto da minha casa, e eu moro num beco. Em frente à minha casa tem um prédio alto, como que essa bala veio parar aqui?", indagou.
Criança é atingida por bala perdida em escola de Jardim da Penha
Uma menina de 9 anos foi atingida de raspão no abdômen enquanto jogava handebol dentro de uma escola de Jardim da Penha, Vitória, em setembro do ano passado. No meio do exercício, ela sentiu uma dor na região da cintura mas não sabia o motivo.
A menina, então, falou com o professor que achou um projétil caído no chão da quadra. Todos ficaram surpresos com o que aconteceu. A Polícia Civil informa que "as investigações e as diligências sobre o caso estão sendo realizadas pelo 3º Distrito Policial e não há outras informações que possam ser divulgadas, por enquanto".
Adolescente atingida na Praia da Guarderia
Uma adolescente de 12 anos foi baleada durante uma aula de canoagem na Praia da Guarderia, na Enseada do Suá, em Vitória, em junho deste ano. A menina estava se alongando para entrar no mar quando sentiu uma dor no braço. No momento, ela chegou a pensar que tinha sido atingida por um remo.
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