É só começar uma discussão política que a palavra comunista vem à tona. Como uma espécie de insulto, o termo que durante anos foi usado para classificar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Partido dos Trabalhadores (PT) e seus simpatizantes parece que viu a lista crescer no governo atual de Jair Bolsonaro. Aos olhos dos bolsonaristas, qualquer oposição ao governo vira sinônimo de comunismo. E nem mesmo o ex-ministro da Justiça Sergio Moro escapou desse rótulo.
Apesar de o termo comunista ser utilizado com frequência para criticar posicionamentos mais alinhados à esquerda, especialistas afirmam que os movimentos políticos atuais em nada se assemelham ao comunismo descrito por Karl Marx, no século XIX. Este, inclusive, nem sequer chegou a ser alcançado em qualquer parte do mundo. Mesmo assim, a ideia do comunismo tem sido usada frequentemente por governos para criar inimigos, tornando toda opinião contrária uma ameaça ao sistema.
A primeira formulação do comunismo é encontrada na Grécia Antiga, com Platão. Em sua obra intitulada República, o filósofo idealizava a construção de uma sociedade livre e igualitária, com ausência de propriedade privada. Mas foi no século XIX que as ideias comunistas passaram a ser discutidas de forma mais política e teórica. Diante do crescimento da classe operária e das desigualdades sociais, os alemães Karl Marx e Friedrich Engels escrevem o Manifesto Comunista, em 1848.
A obra surge após a Revolução Industrial, em um contexto que previa que a produção de alimento no mundo não iria acompanhar o crescimento da população. Neste cenário, Marx traz a ideia de uma sociedade totalmente igualitária, sem classes sociais e propriedade privada, onde todos seriam livres. E diz que esse modelo só seria alcançado por meio de um amadurecimento da humanidade e da destruição de elementos supressores da liberdade, como o Estado, explica o cientista político e professor da Universidade Federal de Viçosa (UFV) Diogo Tourino.
Alcançar o comunismo, segundo a visão marxista, demandava um processo revolucionário. Era preciso romper com o sistema capitalista para alcançar mudanças. Na Europa, esses ideais inspiraram a Revolução Russa, em 1917. A luta ficou marcada pelo símbolo do martelo e da foice, em referência aos trabalhadores do campo e da indústria e levou à formação da União Soviética, o maior bloco de expressão de ideias socialistas do século XX.
O regime comunista russo foi marcado por autoritarismo, com perseguição e morte da população. Quando Josef Stalin assume a liderança da União Soviética, movimentos violentos passam a ser implantados em prol do comunismo. Essas interpretações totalitárias acabaram se expandido para outras nações, como China e Cuba, onde sistemas opressores foram implantados.
"Ao longo da História o comunismo foi adquirindo diversas nuances, desde o conceito ligado a Karl Marx até propostas anarquistas. Para se chegar à utopia comunista, muitos intelectuais usaram a revolução violenta, como foi o caso de Stalin. Ele supunha que para alcançar este estágio de igualdade havia necessidade de uma ditadura. Ele foi considerado como um traidor do comunismo, pois suas ideias em nada se assemelham ao conceito do termo", declara Sá Motta.
A sociedade idealizada por Marx nunca chegou a ser implementada em nenhum país, segundo Sá Motta, embora ideais comunistas tenham sido adotados em alguns locais, persistindo até hoje.
"Temos países herdeiros da sociedade experimentada pela União Soviética, como a Coreia do Norte, Vietnã, China, Cuba. São exemplo de locais onde, em nome do comunismo, movimentos opressores foram implantados. Vemos eles se afastando muito mais do conceito de comunismo do que se aproximando. A China, por exemplo, tem empresas privadas que atuam boa parte na economia de um mercado capitalista. A visão hoje é que há um recuo dessas nações dos ideais em que foram fundadas", destaca.
Enquanto a Europa experimentava reformulações no seu sistema, no Brasil, a influência das ideias de Marx levava à fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB), em 1922. O partido foi perseguido e ficou por muitos anos na ilegalidade, principalmente durante a ditadura. Apesar de constantes repressões, o grupo nunca representou qualquer ameaça comunista ao Brasil, segundo o sociólogo e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Marcelo Ridenti.
Na visão de Ridenti, nenhum partido que se denomina comunista no Brasil se assemelha à história do PCB. Além de terem uma representatividade pequena, essas representações se afastam completamente da ideia de sociedade sem Estado, atuando de forma democrática.
Rotulado por muito tempo como uma ameaça comunista, principalmente pelos movimentos de direita, o Partido dos Trabalhadores (PT) não apresenta qualquer resquício de comunismo, de acordo com especialistas. Na visão de Tourino, a associação é completamente equivocada e não reflete as decisões tomadas durante os governos em que o partido esteve à frente do Brasil.
A reforma agrária, que é uma das grandes bandeiras do PT, significa distribuição de terra criando propriedades privadas para trabalhadores rurais, o que vai totalmente contra a ideia do comunismo, que é contra a propriedade privada. O governo do PT apresentou um reformismo muito moderado, que buscou congregar ideias ao mesmo tempo democráticas e socialistas. Qualquer relação do Lula ou do PT ao comunismo é completamente errônea e não se baseia na História, completa Ridenti.
Os especialistas são unânimes em afirmar que o comunismo de fato, nunca existiu, e que as representações atuais em alguns países se distanciam muito da ideia apresentada por Karl Marx. Mesmo assim, a palavra comunista ganhou uma conotação negativa.
Como foi inspiração de regimes autoritários, apesar de não terem seguido à risca a cartilha de Marx, a palavra comunista ganhou uma conotação negativa. Nem todos os regimes autoritários foram comunistas, no entanto. Um exemplo é a própria ditadura brasileira (1964-1985), que se impôs, ironicamente, argumentando que pretendia evitar um regime autoritário comunista.
Na história brasileira, a palavra comunista foi manipulada por governos conservadores para se fortalecer, segundo Sá Motta. Durante a ditadura, o discurso de uma "ameaça comunista" passou a ser amplamente explorado, fazendo com que as pessoas rejeitassem e tivessem medo de qualquer ideia de mudança social.
"Existe uma estratégia discursiva de generalizar esse rótulo e aumentar a gravidade ou a sensação de perigo em relação a certas mudanças que incomodam a opinião conservadora. Tanto na Era Vargas quanto na militar, estes discursos foram usados para tentar convencer as pessoas que era preciso defender a sociedade do comunismo. Criou-se uma ameaça que era muito mais um fantasma do que uma realidade para que lideranças conservadoras se mantivessem no poder e com isso instaurassem regimes autoritários".
Especialistas avaliam a presença dessa retórica na campanha de Jair Bolsonaro, em 2018, e atualmente no governo. Com frequência, o presidente reforça o discurso de ameaça comunista para atacar movimentos de esquerda e projetos de reforma social, contrários a sua posição. Para o cientista Diogo Tourino, essa ideia de que qualquer visão progressista é uma forma de comunismo faz com que todas as pessoas contrárias ao governo sejam vistas como inimigas.
"Hoje, o discurso anticomunista ataca qualquer visão que defenda a atuação do Estado para reduzir desigualdades, é usado para deslegitimar toda forma de política social. É uma estratégia do governo para se manter no poder para ganhar apoio nas decisões", finaliza Sá Motta.
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