Vagabunda. Ordinária. Rodada. Puta. Caduca. Balofa. Ler esses termos em uma reportagem pode causar certo incômodo ao leitor. Mas essas são apenas algumas das palavras usadas rotineiramente na internet para criticar mulheres que exercem mandatos políticos no Espírito Santo.
Os ataques à moral, à aparência e à vida privada e sexual de parlamentares e representantes do Executivo, dos mais diversos partidos, inscrevem-se em um fenômeno que não acontece apenas nas redes sociais: a violência política de gênero.
Embora o termo seja novo, esse tipo de violência é antigo e atinge mulheres para limitar e desqualificar a participação delas na política. Especialistas apontam que o crescimentos das agressões, em número e intensidade, é uma reação ao aumento da representatividade feminina em espaços de poder.
OS ATAQUES
Em março deste ano, a vereadora Camila Valadão (Psol) participava da sessão na Câmara Municipal de Vitória, no Dia Internacional da Mulher, quando o colega Gilvan (Patriota) fez um comentário sobre a roupa dela. "Na minha opinião, a vereadora não está com traje formal para a sessão [...] Se dê ao respeito se quer respeito", afirmou.
Camila vestia uma blusa vermelha, de um ombro só. Colado na roupa havia um adesivo com uma frase contra o presidente da República Jair Bolsonaro (sem partido).
Na mesma sessão, o vereador Armandinho Fontoura (Podemos) repreendeu Camila por ter utilizado o termo "todes" para cumprimentar os parlamentares. A palavra é um exemplo de linguagem de gênero neutro, usada de forma inclusiva para se referir a pessoas que não se identificam com o gênero feminino ou masculino.
"Vereadora, corrigindo: bom dia a todos e a todas. Todes não figura na Língua Portuguesa", afirmou Armandinho.
As falas dos vereadores, sem qualquer relação com a atividade parlamentar, ganharam adesão nas redes sociais. Nesse espaço, comentários violentos foram direcionados à Camila Valadão.
Palavras como "dragão" e "tenebrosa" foram usadas por internautas para atacá-la. Além disso, foi sugerido à vereadora que comprasse um vibrador ou "caçasse uma louça para lavar". No Facebook de Gilvan, alguns comentários tentaram deslegitimar a representatividade feminina na política.
Situação semelhante aconteceu com a senadora Rose de Freitas (MDB), quando A Gazeta publicou reportagens sobre o retorno dela ao MDB, em março deste ano. Apesar do foco ser a filiação partidária da senadora, foi a idade de Rose que se tornou motivo de críticas nas redes sociais. "Véia gagá", disse um internauta. "Deve estar caduca."
Comentários sobre a vida sexual da deputada federal Lauriete (PSC) foram registrados em 2019. Naquele ano, a parlamentar anunciou que estava de saída do partido presidido pelo ex-marido Magno Malta, e foi chamada de "rodada". Em um outro momento, a expressão "marmita do Congresso" foi usada para se referir à parlamentar.
Já a vice-prefeita de Vitória, Capitã Estéfane (Republicanos), virou alvo de ataques após ser nomeada secretária interina de Cultura, em fevereiro. Nas redes sociais, as pessoas subestimaram a capacidade intelectual dela.
Os comentários citados fazem parte de um levantamento da reportagem feito nas redes sociais. Eles foram coletados nas páginas de A Gazeta, das mulheres que são criticadas e de alguns colegas de parlamento.
A reportagem também encontrou ofensas à deputada federal Soraya Manato (PSL), à vice-governadora Jacqueline Moraes (PSB), à deputada estadual Janete de Sá (PMN) e à vereadora Karla Coser (PT). Eles serão reproduzidos ao longo do texto.
DIFERENÇA NAS CRÍTICAS
A maioria das críticas das quais mulheres que ocupam cargos eletivos são vítimas não se referem à atividade política, mas à vida privada. Isso, contudo, não acontece quando os alvos são os homens, conforme explica a antropóloga Fernanda Martins.
Fernanda Martins
Antropóloga
"As mulheres costumam ser julgadas pela roupa que vestem, pelo peso, por relacionamentos, se têm filhos. Enquanto os homens são julgados pelo que fizeram ou não durante o mandato, se são bons políticos ou não"
Essa diferença no tratamento pode ser verificada nos comentários da reportagem sobre a mudança de partido de Lauriete, em que Magno Malta também é citado. A maioria das críticas ao ex-senador referem-se ao mandato que exerceu. Já à deputada, coube o julgamento sobre a vida sexual.
"Isso diz muito sobre como a nossa sociedade opera as desigualdade de gênero, posicionando homens e mulheres em lugares diferentes. É como se as mulheres não fossem autorizadas a ocupar espaços políticos e houvesse uma normatização de que nossos corpos podem ser apontados. É uma lógica patriarcal", pontua a antropóloga.
Apesar desses ataques serem mais visíveis na internet, Martins ressalta que eles representam apenas um dos tipos da violência política de gênero. Fora das redes, essas agressões se dão quando as mulheres são excluídas do debate, seja na dificuldade de financiamento de campanhas durante o processo eleitoral, seja quando são eleitas.
"O próprio meio político constrange e oprime a mulher. Elas não assumem posições de comando nos partidos, não presidem comissões no parlamento, não são chamadas para articulações e são constantemente interrompidas e ridicularizadas em momentos de fala."
Situações como as descritas acima têm sido observadas no exercício parlamentar das vereadoras Karla Coser (PT) e Camila Valadão (Psol) na Câmara de Vitória. As duas estão no primeiro mandato e são as únicas mulheres da atual legislatura, em uma Casa com 15 cadeiras para vereador. Apesar de não representar nem 15%, essa é a maior representatividade feminina no Legislativo da Capital nos últimos 30 anos.
"Nós recebemos ataques velados, críticas com tom professoral com a justificativa de que a gente acabou de chegar. Teve um vereador que me mandou estudar! Só que não falam isso com os homens que também estão em primeiro mandato. Eles atribuem a nós, mulheres, a necessidade de explicar as coisas e nos interrompem toda hora", afirma.
De tanto ser interrompida, Karla passou a contabilizar as interrupções de fala: foram 135 vezes nos 100 primeiros dias de mandato. No cálculo, entraram quanta vezes outros vereadores pediram questão de ordem — que é quando a fala de outro é interrompida para tirar dúvidas — ou quando atropelaram a vez da vereadora falar.
Karla Coser
Vereadora
"Parecia que eu estava sendo sabatinada, eu não conseguia concluir meu raciocínio. Eles tentavam descredibilizar meus argumentos, faziam comentários em um tom vexatório"
Camila também percebe as críticas como uma tentativa de desqualificá-la pelo fato de ser mulher e não por divergência política das ideias que ela apresenta.
"Há um objetivo nítido de expor, constranger, nos atacar. Como quando eu fui atacada pela minha roupa, interrompida durante sessão aos gritos dizendo que eu não tenho moral, que não me dou ao respeito e, quando eu ouvi, na última sessão, que eu sou canalha e covarde, que eu e a vereadora Karla somos canalhas e covardes", destaca.
Assim como na Câmara de Vitória, as críticas às vereadoras Karla Coser e Camila Valadão costumam ser feitas de forma conjunta nas redes sociais, apesar de serem duas mulheres de partidos e experiência política diferentes.
Os termos mais comuns encontrados pela reportagem para atacá-las são "vagabundas", "mal-amadas", ordinárias" e "manipuladas".
Mulheres que exercem mandatos no Espírito Santo são atacadas na internet e dentro do parlamento
Mas esses ataques não são restritos a novatas e nem à Câmara de Vitória. A deputada estadual Janete de Sá (PMN), que ocupa uma cadeira na Assembleia Legislativa desde 2001, e a deputada federal Soraya Manato (PSL) também relatam problemas semelhantes, dentro e fora do parlamento. Nas redes sociais, A Gazeta encontrou comentários referindo-se às duas como "dePUTAdas".
"Já fui ameaçada por um deputado que não gostou de uma opinião que dei durante a sessão. Ele disse que ia me pegar na saída. Eu fui até a tribuna e o enfrentei", lembra Janete.
"É uma agressão que vem de todos os lados, de mulheres também. E o objetivo é atrapalhar nosso mandato. Eu tento me blindar disso, porque não posso deixar que esse tipo de crítica prejudique o meu trabalho", conta Soraya Manato, que teve a aparência atacada na internet após uma publicação de apoio ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Na percepção de Janete, a violência praticada dentro do parlamento diminuiu ao longo dos mandatos na Casa, mas ainda existe. Recentemente, ela repreendeu um colega que não permitiu que ela falasse durante a sessão: “Deputado, eu estou pedindo para falar e o senhor não deixa!”
"Muitas vezes a gente precisa bater de frente. Foi dessa forma que eu aprendi a me proteger ali dentro e é o que eu aconselho a todas as mulheres que entram na política", disse a deputada estadual.
O QUE É VIOLÊNCIA POLÍTICA DE GÊNERO
A violência política de gênero é a violência praticada por razões de gênero da vítima, seja pela sexualidade, seja pela orientação sexual. Ela pode ser caracterizada como qualquer atitude que tenha como objetivo excluir grupos minorizados da política.
Segundo a professora do Instituto de Ciências Políticas da UNB Danusa Marques, essas agressões ocorrem muitas vezes em forma de ameaças e ofensas e são uma estratégia política de quem concentra o poder nesses espaços. A ideia é impedir ou dificultar que pessoas enxergadas como "dissidentes", como é o caso de mulheres, tenham voz. Ela observa que a violência aumenta com a representatividade.
Danusa Marques
Cientista política
"A ideia é tornar o ambiente político tão hostil e violento a ponto das mulheres abandonarem os mandatos"
"A violência tende a aumentar quando o número de mulheres cresce no parlamento, já que maior presença feminina significa que esses grupos mais tradicionais na política estão perdendo espaço. Então é uma reação de combate a um processo de mudança, uma estratégia de sobrevivência política", analisa.
SUB-REPRESENTATIVIDADE FEMININA
No ano passado, a vice-governadora Jacqueline Moraes (PSB) foi vítima de comentários violentos na internet após declarar apoio ao candidato do partido dela na disputa pela Prefeitura de Cariacica, e não ao marido, que concorria ao mesmo cargo.
Nos ataques, muitas pessoas tentaram desqualificar Jacqueline enquanto política, atribuindo a ela um "papel" de mulher que era associado ao ambiente doméstico.
"Ouvi comentários de que eu não colocava o meu casamento em primeiro lugar, só porque eu tomei uma decisão diferente do meu marido, como se eu tivesse que ficar embaixo de uma ordenação dele", lembra.
Para Jacqueline, que coordena movimentos no Estado para incentivar candidaturas femininas, a violência de gênero é uma das causas da sub-representatividade de mulheres na política.
"Vejo mulheres que disputam a primeira eleição e depois desistem para se proteger e proteger as famílias desse tipo de violência. E isso é muito ruim. Ter mulheres na política é importante não apenas para mulheres, mas para a democracia. Porque é a partir da diversidade que a gente constrói um retrato mais fiel da sociedade e elabora políticas públicas amplas para a população."
VÁCUO NA LEGISLAÇÃO
Na tentativa de enfrentar a violência política de gênero, a Câmara dos Deputados aprovou, no ano passado, um projeto de lei que tipifica esse tipo de agressão e prevê punições para partidos. A proposta, contudo, está parada no Senado.
Segundo a advogada Danielle Grumeich, especialista em Direitos da Mulher, a falta de uma legislação específica não impede que as práticas sejam punidas, mas dificulta o combate da violência política.
"Temos no Código Penal alguns tipos penais que caberiam, como ameaça, difamação, violência da intimidade, importunação, assédio sexual. Mas quando a gente nomeia uma violência, fica mais fácil ter estratégias de enfrentamento. Países que aprovaram leis específicas nesse sentido têm conseguido combater melhor as desigualdades. Sem dúvidas, há um vácuo legislativo no Brasil."
Danielle Grumeich
Advogada
"Combater a violência política de gênero passa por identificar que essas questões que acontecem com as mulheres não são normais e precisam ser nominadas"
Grumeich aponta, no entanto, que o enfrentamento envolve não só a legislação, mas um trabalho conjunto da sociedade, de partidos, e das pessoas que estão no parlamento, incluindo os homens.
"Dentro do parlamento essas violências só são praticadas porque são aceitas, porque existe um ambiente favorável. Então a gente precisa que os chefes dos Poderes, em todos os âmbitos, tenham ferramentas para coibir esse tipo de comportamento. Porque quando eles não agem e permitem que isso aconteça, eles estão sendo coniventes", avalia.
É isso que tem buscado a vereadora Camila Valadão com uma representação apresentada, no início do mês, contra o vereador Gilvan na Corregedoria Geral da Câmara de Vitória. Camila pediu que as agressões verbais e comentários machistas do parlamentar sejam punidos por quebra de decoro. O relator do procedimento é o vereador Maurício Leite (Cidadania).
"Penso que é fundamental denunciar e falar sobre isso para cobrar do poder público medidas que garantam a execução com qualidade dos nossos mandatos. Não existe democracia se não temos as mesmas condições de exercer mandatos no país", afirma Camila.
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