Apenas 11 quilômetros separam a Ilha do Frade da Grande São Pedro, em Vitória. Mas a realidade que se impõe aumenta em muito a distância entre a pequena ilha ao sul da Capital capixaba e o conjunto de 10 bairros localizados na orla noroeste da cidade. São dois universos dentro do mesmo município em que cidadãos vivem situações completamente opostas e que possuem demandas bastante diversas.
Segurança pública e saúde são, respectivamente, as áreas mais problemáticas de Vitória, segundo pesquisa Ibope realizada entre os dias 11 e 12 de outubro de 2020. A ordem de prioridade muda de acordo com a renda média de quem opina. Para os mais ricos, a segurança pública é a área que merece maior atenção. Para os menos abastados, a saúde precisa ser prioridade na agenda dos próximos gestores.
De acordo com o levantamento do Ibope, 61% dos entrevistados apontam a segurança como a área mais problemática. Em seguida aparece a saúde (45%). Os entrevistados podiam citar mais de uma área. A segurança pública foi citada por 52% das pessoas que recebem até 1 salário mínimo e por 67% da população das classes mais altas. Já a saúde foi apontada como prioridade por 59% dos eleitores com até 1 salário mínimo e 37% entre aqueles com renda familiar superior a 5 salários mínimos.
A engenheira de agrimensura e diretora da Sociedade Amigos da Morada Ilha do Frade (Samifra) Talita Guimarães Fonseca de Pinho é uma das moradoras de Vitória que possui segurança como principal preocupação. Há dois anos, ela, o marido e os dois filhos resolveram deixar a Praia do Canto, pois ansiavam por um lugar tranquilo e bonito para viver.
A família escolheu como morada a Ilha do Frade, bairro nobre de Vitória e que registra, de acordo com o Censo de 2010, a maior renda média mensal por domicílio da cidade (R$ 35.035,32). “Quem busca morar aqui vem pensando que é um lugar tranquilo, perto da natureza. Viemos para cá em busca de qualidade de vida. Mas, em função da quantidade de pessoas que visita a ilha sem respeitar, nós acabamos não tendo isso”, conta.
Ela lamenta o número considerável de visitantes pelo bairro, que integra a Área de Proteção Ambiental (APA) da Baía das Tartarugas e se tornou importante ponto turístico na cidade pelas praias e sua biodiversidade marinha e costeira. “É um ambiente maravilhoso com a natureza, que infelizmente não é respeitada. Aqui vêm visitantes que jogam muito lixo. Tem muitos usuários de drogas. Aqui todos os excessos parecem permitidos”, pontua.
Na Ilha do Frade não há comércio, escolas nem transporte coletivo. E isso não é um problema para os moradores. Talita diz que esse foi inclusive um dos motivos que a levaram para a ilha, que é completamente residencial, quase um condomínio, não fosse o fato de ser na verdade um bairro como qualquer outro de Vitória.
Andar por ali é se sentir como um participante do programa Big Brother. Tem câmeras de videomonitoramento por todo lado. Os moradores da ilha contrataram um serviço de ponta de segurança privada. A todo momento, guardas circulam em suas motos, seja dia ou noite, subindo e descendo pelas ruas ladrilhadas.
No entanto, mesmo com todo o aparato de segurança, Talita se diz preocupada. O sentimento que ela relata é de estar presa dentro da própria casa. “Segurança é um problema sério no Brasil todo. As pessoas que estudaram, trabalharam, não tem a liberdade de circular na rua e isso é muito triste. Quando temos a oportunidade de viajar para um país em que podemos andar na rua, temos vontade até de não voltar. E acho que é por conta da sensação de liberdade. Quando você tem segurança, você se sente livre. Aqui nós temos que ficar presos dentro das nossas casas, independente do bairro”, afirma.
Talita conta que também se incomoda com o fato de que há muitas pessoas fazendo da rua morada e, para ela, muitas são usuárias de drogas. A moradora do bairro mais nobre da Capital confessa ter medo até de passear com os filhos nas pracinhas e de ser surpreendida com assaltos. “Meus filhos não podem brincar na rua, assim como em qualquer outro bairro”, diz.
MESMO ÂNGULO, VISÕES DIFERENTES
O jardineiro Edmar Muniz Costa trabalha na Ilha do Frade há 22 anos, dois deles na casa de Talita. E, como a engenheira, também se preocupa com a segurança em Vitória. Ele afirma que tem visto muita gente de fora circulando pelo bairro. Pessoas em busca de diversão que chegam com suas caixas de som escutam música alta e jogam lixo no chão.
Mas, para Edmar, o entendimento de segurança não é o mesmo que Talita tem. A principal preocupação em Joana D’arc, bairro onde mora, também em Vitória, é o tráfico. “Tem muita violência por causa da guerra do tráfico. A gente mora lá, mas a gente tem medo também”, relata. “Eu não fico mais como antigamente, que eu gostava de ficar sentado na calçada conversando até altas horas na rua com os amigos”.
Todos os dias, ele acorda bem cedo, toma o café, pega sua bicicleta e sai pedalando de Joana D’arc em direção à Ilha do Frade. Ele conta que já são oito anos circulando pela cidade com esse meio de transporte. A escolha foi o que lhe sobrou, já o que o coletivo o aborrecia. “O transporte aqui, pelo amor de Deus... É sempre ônibus muito lotado e poucas linhas. O valor da passagem é caro, você vem em pé e o ônibus muito cheio”.
Na sua visão, o transporte coletivo é o tema mais delicado para Vitória. Em segundo lugar, está a segurança e, em terceiro, a saúde. Edmar relembra que antes, quando ia para o trabalho na Ilha do Frade de ônibus, passava maus bocados. Os coletivos estavam sempre lotados e o ônibus não chegava, como ainda não chega, na Ilha.
Edmar Muniz Costa
Jardineiro
"O transporte aqui, pelo amor de Deus... É sempre ônibus muito lotado e poucas linhas. O valor da passagem é caro, você vem em pé e o ônibus muito cheio"
Quando ia de ônibus, ele descia em um ponto da Avenida Saturnino de Brito, próximo à Praça dos Desejos, e ia caminhando até a residência em que trabalhava. Mesmo sendo um homem ligeiro, como ele mesmo diz, gastava uns 15 minutos de caminhada. “Eu chegava banhadinho de suor. No verão, eu diminuía o ritmo para não chegar tão suado no trabalho”, lembra.
Atualmente, existe no bairro uma van contratada pelos moradores para levar os trabalhadores até o local em que exercem os ofícios de diaristas, empregados domésticos, jardineiros, cuidadores de crianças, entre outros.
Edmar herdou a profissão de jardineiro do pai, Edgar Costa, que, por muitos anos, também trabalhou na Ilha do Frade. O filho diz que, na época, seu pai atravessava a ilha de barco, pois ainda não havia a ponte e nem muitas casas, apenas uma residência.
Os primeiros moradores chegaram à Ilha do Frade no início da década de 1970, quando a região foi loteada e urbanizada pelo médico e ex-governador do Estado José Moraes. A partir daquela década, várias mansões foram construídas, especialmente após a inauguração da ponte que liga a ilha ao aterro da Praia do Canto.
MENOR RENDA, MAIOR PREOCUPAÇÃO COM A SAÚDE
Na mesma época, do outro lado da cidade, surgia a Grande São Pedro, um conjunto de 10 bairros localizados na orla noroeste da capital, numa área de cerca de 3 mil quilômetros quadrados. De acordo com o Censo de 2010, a renda per capita em São Pedro é de R$ 1.592,32, menos de 5% dos R$ 35 mil registrados na Ilha do Frade.
A distância aumenta mais ainda quando falamos dos problemas enfrentados pelos moradores. Segundo a pesquisa Ibope, em São Pedro, a principal preocupação dos moradores é a saúde.
Um dos 33 mil moradores da região é Edeílson Portugal, 37 anos. Dinho, como ele gosta de ser chamado, é jornalista e mora em São Pedro desde os cinco anos. Ele não se sente satisfeito com a situação da unidade de saúde do bairro. “Satisfeito é uma palavra forte. Atende. Mas satisfeito é complicado”, afirma.
A unidade de saúde a que Dinho se refere é a Unidade de Saúde Vereador Nenel Miranda, localizada no bairro de Ilha das Caieiras, na Grande São Pedro. Inaugurada em 2009, a unidade é, ao lado do Pronto Atendimento Municipal de São Pedro, a principal referência de saúde pública no bairro.
A insatisfação de Dinho com o atendimento na unidade de saúde do bairro tem uma explicação. A mãe dele faleceu antes de ser consultada por um médico. “Ela tinha feito cirurgia de catarata e precisava de mais alguns procedimentos, tratava de gastrite. A marcação demorou mais de dois anos e ela acabou falecendo antes”.
Dinho ressalta que a mãe não morreu em decorrência da demora, mas explica que se fosse um caso mais grave, que precisasse da atenção de um médico, poderia gerar complicações.
Os relatos são de demora no agendamento de consultas eletivas e exames, em especial as consultas com médicos especializados. A indignação, porém, dá espaço para um momento de relativização em relação aos problemas. “Aqui é ruim, mas tem lugares onde a situação é muito pior".
Dinho Portugal
Morador de São Pedro
"Outros bairros de periferia sofrem bem mais e, inclusive, os moradores vêm aqui para ter atendimento. Isso também sobrecarrega"
Apesar dos problemas, Dinho valoriza a possibilidade que agora os moradores têm de marcações de consultas on-line. Segundo ele, o sistema facilitou a vida daqueles que precisam de atendimentos na unidade de saúde. “Aquelas filas, com pessoas madrugando na porta da unidade de saúde, acabaram”.
A ordem de prioridades e de fatores de preocupação dos moradores de São Pedro se revela na fala de Dinho. Enquanto comentava sobre a saúde e a perspectiva das eleições deste ano, ele tocou no ponto da segurança pública e, assim, acabou revelando a diferença entre as “bolhas” que constatamos dentro de Vitória. “Aqui é bem tranquilo. Não vai passar alguém e roubar seu celular, como acontece em Jardim Camburi, Jardim da Penha... O problema aqui é mais o tráfico”, compara.
Ele conta ainda que a Guarda Municipal no bairro não tem a função de ronda, de patrulhamento ostensivo, mas de fiscalizar e orientar moradores na entrada e saída das escolas. Agora, na pandemia, como as aulas ainda não retornaram, ele afirma que as viaturas raramente deixam o posto de comando, também em Ilha das Caieiras. A reportagem procurou a Secretaria Municipal de Segurança Urbana (Semsu) sobre as queixas, mas a pasta não se manifestou.
ESPERANÇA TAMBÉM ESTÁ EM FALTA
Outro morador de São Pedro, Éberton Loyola, 38, compartilha algumas das frustrações de Dinho com relação à saúde. Cozinheiro, está desempregado em função da pandemia. Antes, ele trabalhava em um restaurante em Jardim da Penha.
A maior das dificuldades com relação à saúde em São Pedro, para Loyola, é para conseguir consulta com médicos especialistas. “Você marca alguma consulta com médico especializado e tem que esperar mais de seis meses pra ter o retorno”, afirma. Loyola ainda critica o fato de que, na unidade de saúde de São Pedro, muitas vezes quem atende são estudantes de medicina e residentes.
O morador também não poupa críticas à administração da unidade de saúde. Além disso, se mostra desesperançoso quanto às eleições municipais de 2020. Para ele, as promessas são passageiras. “Eles vêm aqui, mostram tudo e, quando acabam as eleições, pronto. Tudo volta ao normal. Durante as eleições, até a polícia e a guarda municipal querem mostrar serviço”, critica.
Em nota, a Secretaria Municipal de Saúde (Semus) afirma que as atividades de residência médica ocorrem no município desde 2007 e que, em 2011, teve início a residência multiprofissional e residência médica em saúde da família e comunidade. A nota ressalta ainda que todos os residentes possuem médicos que atuam supervisionando e formando novos profissionais com qualificação para atendimento no SUS.
A Semus informou também que a Unidade de Saúde da Ilha das Caieiras conta com quatro equipes de Estratégia de Saúde da Família e quadro completo de médicos para uma unidade desse porte.
Já a Secretaria de Estado da Saúde (Sesa), responsável pelos agendamentos de especialidades, informa que programou, no final do ano de 2019, um cronograma para o credenciamento de prestadores de serviços de saúde especializados, que começou a ser realizado no início de 2020. Porém, segundo a secretaria, a pandemia da Covid-19 suspendeu todos os processos de credenciamento, procedimentos cirúrgicos eletivos, cirurgias ambulatoriais eletivas, consultas e exames ambulatoriais especializados.
* Karolyne Bertordo, Lorraine Paixão e Rafael Carelli são alunos do 23º Curso de Residência em Jornalismo da Rede Gazeta e foram supervisionados pela jornalista Ana Laura Nahas.
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