Se depender do ministro Edson Fachin, os políticos poderão ser enquadrados por "abuso de poder religioso" pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) nas eleições de 2020. Titular de uma cadeira no Supremo Tribunal Federal (STF), o magistrado também é membro da Corte que julga a conduta de candidatos a cargos eletivos. Hoje, quem adotar certos comportamentos já pode ser enquadrado por abuso de poder político ou econômico. Mas o ministro quer ir além.
A proposta, no entanto, não encontra consenso no mundo jurídico e tampouco entre líderes religiosos. Juristas questionam se a medida estaria entre as competências do TSE e como seria na prática essa fiscalização. A Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure) e a Frente Parlamentar Evangélica (FPE) consideram genéricos os conceitos apresentados por Fachin.
Em contraponto, há pastores e padres, por exemplo, que avaliam que é preciso, sim, limitar o papel das igrejas em campanhas eleitorais. O assunto deve voltar à pauta do TSE nesta quinta-feira (13 de agosto).
A legislação atual prevê os crimes de abusos de poder econômico e político, que têm como pena a perda de mandato e inelegibilidade por oito anos. Regulamentados por lei, enquadram-se nesses casos condutas que inviabilizam a competição e causam desequilíbrio no pleito, como candidatos à reeleição utilizarem-se da vantagem de estar no cargo para se promover ou um candidato que oferece vantagens econômicas a quem se aliar a ele.
Como as igrejas são consideradas locais de domínio público, também são proibidas fixação de propaganda e entrega de panfletos, por exemplo. Compra de votos e coação eleitoral, seja por violência ou ameaça, também já são penalizadas pela lei.
Na pauta do TSE está, agora, a possibilidade de tipificar e punir possíveis abusos realizados por meio da influência religiosa, sem, necessariamente, envolver abusos econômicos. O ponto discutido trata de pedidos de voto expressos e autônomos, feitos pelos líderes aos membros. Fachin apresentou a proposta no fim de junho, durante o julgamento do caso da pastora Valdirene Tavares, candidata a vereadora de Luziânia, município goiano.
A pastora se reuniu, em 2016, com outros pastores em um templo da Assembleia de Deus para pedir votos. Mesmo que neste caso o ministro tenha considerado que não havia elementos suficientes para determinar a perda de mandato, sugeriu uma proposta que investigue e puna políticos por abuso de poder religioso, já para as eleições de 2020.
"Entendo que a intervenção das associações religiosas nos processos eleitorais deve ser observada com a devida atenção, tendo em consideração que as igrejas e seus dirigentes ostentam um poder com aptidão para amainar a liberdade para o exercício de sufrágio e debilitar o equilíbrio entre as chances das forças em disputa", diz o voto.
Essa decisão afetaria o que acontece em alguns templos. Além da presença de líderes religiosos que ocupam cargos políticos e conciliam as duas funções, é comum em algumas igrejas a mobilização de votos para candidatos específicos. "Às vezes, o pastor faz apresentação do candidato no púlpito e pede votos, algumas vezes chega a dizer que aquele é 'escolhido por Deus'", aponta o advogado eleitoral Ludgero Liberato. São essas condutas, até então permitidas, que entrariam na mira da Justiça Eleitoral.
A questão é que não existe legislação que verse sobre a influência religiosa como uma autoridade pública, aponta Marcelo Nunes, advogado eleitoral. Em seus argumentos, Fachin cita uma lei que, de acordo com Nunes, "fala de um abuso de poder que é ligado à autoridade de um agente público e não de autoridades em âmbitos privados". O ministro equipara, portanto, as lideranças religiosas a autoridades para tipificar o abuso em cima da lei que já existe. O TSE não pode legislar, apenas interpretar e regulamentar leis criadas pelo Legislativo.
Para investigar e punir nesses casos, explica Ludgero Liberato, seria necessário alterar a legislação para definir se é necessário punir e quais os critérios que seriam utilizados para identificar e aplicar a sanção. No Congresso, no entanto, a bancada evangélica e líderes religiosos já começaram a se mobilizar para impedir o enquadramento do novo tipo de abuso.
Sem a definição clara dos critérios de fiscalização, explica o advogado e mestre em Direito de Estado Luiz Eduardo Peccinin, a decisão poderia resultar em um policiamento do discurso dentro das igrejas, o que poderia silenciar os grupos religiosos nas discussões. "Não se pode excluir o cidadão religioso do debate. Eles vão se comportar como outros grupos de interesse como ruralistas ou sindicalistas", aponta.
Peccinin é autor do livro "O discurso religioso na política brasileira: democracia e liberdade religiosa no Estado laico", citado por Fachin no voto dele durante o julgamento em junho.
Para os especialistas, enquanto não for legislado algo específico para essas lideranças, o ideal é manter a análise no que já é previsto por lei. O ministro Alexandre de Moraes também pensa assim. Ele já se posicionou contrário à proposta de Fachin. "Não se pode transformar religiões em movimentos absolutamente neutros sem participação política e sem legítimos interesses políticos na defesa de seus interesses, assim como os demais grupos que atuam nas eleições", sustentou durante a sessão em junho.
Em alguns casos, ações de igrejas também já resultaram na perda de mandato de políticos, mas considerando-se que houve abuso de poder econômico. "Envolvia um evento religioso grande, em um estádio de futebol, com milhares de pessoas, por isso se enquadrou como abuso econômico", relata Nunes.
Embora parte dos líderes religiosos do país já esteja se articulando com a bancada evangélica para barrar a proposta de Fachin, líderes religiosos do Espírito Santo acreditam que algumas condutas devem, sim, ser fiscalizadas e punidas.
O padre Kelder Brandão acredita que é necessário estabelecer, de forma mais clara, o papel das igrejas no processo eleitoral. "Uma coisa é fazer reflexão religiosa em cima da política, outra coisa é a indução do voto através do medo e outras formas de coerção. As lideranças religiosas têm uma influência muito grande sobre os fiéis."
O pastor Enoque de Castro, líder da Associação dos Pastores Evangélicos da Grande Vitória (APEGV), diz que o tema é delicado e precisaria ser analisado com calma, mas concorda que algumas instituições ultrapassam o limite. Ele acredita que, como pastor, tem o direito de aconselhar e orientar os fiéis, mas em tom de opinião que pode, ou não, ser acatada. "Podemos ter uma reunião para falar de política e aconselhar no que eu creio. Agora, levar políticos para dentro da igreja eu sempre combati."
O pastor também considera errada a troca de favores que acontece entre igrejas e políticos. "Se declaradamente um grupo religioso começa a querer usar a religião para influenciar politicamente eu acho que tem que ter punição sim", diz.
Enoque afirma, no entanto, que existe o temor de que se crie uma "perseguição à igreja de forma desmedida". Pequenas reuniões e discurso de pastores diretamente para os membros, em sua opinião, não deveriam ser fiscalizados.
A troca de favores é o que preocupa o cientista político Fernando Pignaton. "Se você considerar que as igrejas do Brasil não pagam impostos, que toda a movimentação de dízimo e contribuição, que são atividades privadas como qualquer outra, não pagam impostos, você tem uma potencialização de estrutura para que esse corporativismo, esse sistema de troca de favores, vá mais longe", defende.
Para Pignaton, além de candidatos que buscam igrejas para negociar a troca de favores, há ainda os líderes religiosos que buscam expressão política, mas em vez de usar o sistema partidário, contam com a estrutura das igrejas para angariar votos. O problema, para ele, não está na representação política da comunidade cristã e, sim, no uso da estrutura religiosa como máquina eleitoral para sair em vantagem.
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