Considerado um dos pontos mais polêmicos do Pacote Anticrime, a criação do juiz de garantias nos processos criminais recebeu uma proposta de resolução, elaborada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), para balizar a aplicação desta função em todo o Poder Judiciário.
O estudo apresentado pelo Conselho no mês de junho defendeu a viabilidade da implementação do instituto do juiz de garantias, sem que haja a necessidade de gastos adicionais por parte dos tribunais. Ele também propôs medidas como rodízio entre os juízes nas comarcas e a criação de um sistema eletrônico para tramitação dos atos.
O Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES), no entanto, apesar de não comentar os pontos específicos sugeridos pelo CNJ, avisa: isso deve gerar novos gastos. Hoje, no Estado, há 57 comarcas que possuem um único juiz com competência criminal e em todas elas o recebimento de processos criminais se dá por meio físico, pois ainda não houve implementação do processo eletrônico. Além disso, há 36 cargos de juízes com competência criminal que estão vagos.
Os juízes capixabas discordam ainda de que esta nova função seja necessária para assegurar a imparcialidade objetiva dos magistrados e haver maior garantia da presunção de inocência, a partir do direito a um julgamento justo, um dos principais fundamentos para a mudança.
A resolução do CNJ ainda precisa ser votada pelo plenário do Conselho para entrar em vigor. Contudo, ela só será apreciada se o Supremo Tribunal Federal (STF) declarar a constitucionalidade dos artigos da Lei Anticrime que criaram o juiz das garantias, e que foram suspensos liminarmente por decisão do ministro Luiz Fux. A resolução do CNJ prevê que a figura do juiz de garantias só deve entrar em vigor 120 dias após a publicação da resolução.
O juiz de garantias, criado pela Lei Anticrime, é um magistrado que atuaria apenas na fase de instrução do processo.
Sem constituir uma nova instância ou grau de julgamento, este juiz iria tomar somente as decisões que exigem ordem judicial durante a etapa de investigação, como a autorização para quebras de sigilo para obtenção de provas, decretação de medidas cautelares, como a prisão preventiva, ou temporária, sempre a pedido do Ministério Público ou da polícia.
Quando o caso é enviado à Justiça, a partir do recebimento da denúncia, ficaria vinculado a um novo magistrado, para atuar no julgamento propriamente dito.
Com o juiz de garantias, não se cria um novo degrau na persecução criminal, mas se divide a competência funcional dos juízes, passando a haver um magistrado para a etapa da investigação e outro para a etapa do julgamento.
Uma divisão puramente funcional não é inédita no Brasil, já que há um juiz para a instrução e julgamento e outro para a execução penal. Assim como nos casos de crimes que vão ao Tribunal do Júri, pois passam por juízes togados e juízes leigos (jurados do Conselho de Sentença).
O modelo é usado em países como Itália, França, Chile, Paraguai, Colômbia e México, entre outros. O ministro Luiz Fux, que suspendeu a criação do juiz das garantias, e próximo presidente do STF, é contra a medida. O atual presidente, Dias Toffoli, é a favor.
Um dos argumentos utilizados para defender o juiz de garantias vem da Psicologia, com a Teoria da Dissonância Cognitiva, pela qual o indivíduo tem a tendência de minimizar elementos que fragilizem suas convicções e buscar outros que as confirmem.
"O ser humano tem uma tendência natural de querer reconfirmar suas decisões. Com o juiz é a mesma coisa. Se eu autorizo medidas de busca e apreensão, isso acaba influenciando meu lado psicológico e reforça minha tendência a condenar. Se eu absolver, é como se estivesse reconhecendo que cometi uma falha na fase anterior", afirma o Doutor em Direito e estudioso do tema, Carlos Alberto Garcete.
O grupo de trabalho dedicado ao tema no CNJ considerou sugestões recebidas de magistrados, tribunais e entidades de classe. Uma das colocações feitas foi de que haja autonomia para os tribunais implementarem as medidas, considerandos as particularidades demográficas, geográficas, administrativas e financeiras de cada Tribunal.
A proposta também destaca que os modelos adotados pelos tribunais devem contemplar, preferencialmente, a tramitação de procedimentos por meio de sistema eletrônico, e que as audiências sob competência do juiz de garantias poderão, excepcionalmente, ser realizadas por meio de videoconferência, com exceção da audiência de custódia.
Para que os tribunais não tenham que aumentar seus custos, o CNJ disponibilizaria aos órgãos do Judiciário um sistema para a tramitação eletrônica dos atos sob a competência do juiz de garantias. Nele, haverá uma série de informações, como registro e tramitação de procedimentos decorrentes do recebimento de comunicações de autoridades policiais e do Ministério Público.
A resolução sugere dois modelos diferentes a serem adotados pelos tribunais. O primeiro modelo, para comarcas com mais de uma vara, poderia haver a criação de uma Vara das Garantias ou de Núcleo ou Central das Garantias, ou por rodízio entre juízes lotados na mesma comarca.
No segundo modelo, para as comarcas com vara única, duas ou mais comarcas compartilhariam de um mesmo juiz de garantias, quando estão a pouca distância uma da outra.
O CNJ recomendou que se fixe um prazo determinado para a atuação de juízes na vara especializada de garantias, com a eventual possibilidade de uma recondução.
O Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES) foi procurado, mas não quis opinar sobre o instituto do juiz de garantias, pois o caso está judicializado. A instituição afirmou, apenas, que no momento, caso seja implantado, "haveria a necessidade de um grande investimento financeiro do Poder Judiciário para a contratação de novos juízes e servidores, o que é impensável diante do panorama econômico".
No estudo do CNJ, no entanto, o TJES se manifestou sobre a implantação desta nova função. Quanto ao rodízio de juízes, o TJES sugeriu que ocorra a dupla distribuição, aos juízes das garantias e de instrução e julgamento, e também que juízes se revezem em uma única vara, ou central.
Para localidades que tenham mais de uma unidade judiciária com competência na área criminal e nas varas de Violência Doméstica contra a Mulher, o Judiciário Capixaba defendeu que seria necessária uma Central de Inquéritos, e a implantação do processo judicial eletrônico criminal.
Já para varas únicas com tramitação de processos físicos, o TJES considera que seria necessário o transporte de processos físicos e que haja juízes substitutos em todas as varas.
Em entrevista à A Gazeta, o presidente da Associação dos Magistrados do Espírito Santo (Amages), Daniel Peçanha, avaliou que a medida não traria benefícios para o Judiciário, tampouco para a população contemplada, nos processos judiciais. Veja a entrevista completa:
Apesar de não ter sido feita uma pesquisa no Espírito Santo, fica patente que a opinião aqui não difere da magistratura nacional, onde 80% dos juízes se manifestaram contrariamente a esse instituto.
Não vejo possibilidade de não haver qualquer aumento de gastos. O mais efetivo seria o aumento da estrutura do Poder Judiciário para comportar essa mudança. Mesmo com as sugestões dadas pelo comitê criado pelo CNJ, haveria minimamente um gasto com desenvolvimento de sistemas e transporte de autos, que são físicos, de uma vara para outra e, em muitos casos, de um município para outro, aqui no Estado.
No Espírito Santo e em vários estados o que terá que ser agilizado é a implementação do processo eletrônico. Nesse cenário que vivemos aqui, de muitas unidades sem juiz titular e sem servidores, o que está aumentando com aposentadorias, será um imenso problema a implementação do juiz das garantias. Sugere-se, por exemplo, que o juiz da comarca ou vara vizinha atue na fase pré-processual. Aqui temos diversos casos em que essas varas ou comarcas estão sendo atendidas por um mesmo juiz. Isso se acentua em casos de férias.
Não vejo como fator de grande influência o juiz da instrução ter tido participação na fase pré-processual. Isso fica demonstrado quando vemos que a maior parte das sentenças de primeiro grau são mantidas pelas cortes superiores, que, na maior parte das vezes, não tiveram contato com o inquérito. O que não se pode e nunca foi consentido é condenação com base apenas nos elementos informativos colhidos na fase inquisitorial.
Aumento na celeridade não ocorrerá. Haverá exatamente o contrário. Criou-se mais um passo e mais uma causa para arguição de nulidade. Quanto ao réu, certamente que criará mais um mecanismo de defesa para o mesmo. Será que é isso mesmo que quer o cidadão? Na nossa realidade, onde um policial faz uma quantidade absurda de prisões e depois de muito tempo é lavado a depor em juízo, alguma vezes anos mais tarde, tirar o inquérito do processo que está sendo julgado acarretará em um imenso prejuízo para realização da efetiva justiça. Também fico imaginando como serão as denúncias do Ministério Público, que terão que ser muito mais detalhadas e volumosas. Isso, por si só, já causará atraso.
Nos juízos com múltiplos juízes, talvez o prejuízo possa ser minimizado com a criação de vara específica, como o Espírito Santo teve até pouco tempo, na Capital. Mas falar-se em rodízio, em um Estado já carente de número de juízes, fica difícil, pois quem iria responder pela Vara do juiz designado? E quando ele voltasse para a vara da qual é titular, isso geraria um imenso número de impedimentos.
Nas comarcas de varas únicas o problema é agravado. O procedimento, físico, terá que circular entra a delegacia, no local do fato, e o fórum em outra cidade. Sem falar que temos casos em que o juiz é o mesmo, tendo que ser chamado um outro juiz, de outra Comarca. Tem-se ainda o problema de que vai retirar a condução das diligências da mão de um juiz que está na Comarca e que conhece mais de perto o problema e as necessidades, além de ficar mais acessível para medidas urgentes.
A implantação do processo eletrônico minimiza, mas não resolve a questão.
Não vejo que um juiz das garantias seria uma outra categoria de juiz. Como disso, já tivemos no Estado uma vara específica na capital que cuidava dos inquéritos.
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