Não é segredo para ninguém que a pandemia do coronavírus trouxe novos problemas para a maioria dos brasileiros. Mas em Cariacica, além dos desafios impostos pela doença, a Covid-19 acentuou questões históricas ligadas a saúde, segurança e educação. O vírus, que já infectou 14.672 moradores na cidade e deixou 492 mortos, sobrecarregou os postos de saúde. A violência e a necessidade de fechar as escolas também tornaram a vida mais difícil.
Os três temas lideram o ranking de problemas do município, segundo pesquisa Ibope realizada em outubro de 2020. Para 64% dos entrevistados, a saúde é o ponto crítico a ser enfrentado pelos gestores que serão escolhidos nas eleições deste domingo (15). A segurança, com 50% da menções, e a educação, com 27%, vêm em seguida.
Morador de Jardim América, Antônio Emídio de Oliveira, de 66 anos, resume as dificuldades que muitos cariaciquenses enfrentam na saúde. “Eu gosto muito de Jardim América, mas a saúde é difícil. Fiz uns exames há seis meses na Unidade Básica de Saúde (UBS) do bairro e até hoje não recebi os resultados”, comenta.
Desigualdade
Renda per capita
-
01
Brasil
Censo 2010
R$ 793,87
-
02
Campo Grande
Censo 2010
R$ 1.307,42
-
03
Flexal I
Censo 2010
R$ 633,59
-
04
Flexal II
Censo 2010
R$ 343,01
-
05
Jardim América
Censo 2010
R$ 1.052,12
Oliveira também relata que o posto de saúde passa por uma reforma há pelo menos dois anos. Na fila da UBS, outros pacientes afirmam que a atual situação do local dificulta os atendimentos.
Além de Jardim América, a unidade atende moradores de bairros vizinhos que não possuem postos de saúde ou enfrentam outros problemas de infraestrutura.
Um deles é Rodrigo Secchin, de 28 anos. Morador de Itacibá, ele depende da UBS de Jardim América para realizar o tratamento de tuberculose do pai. “As salas são divididas com mais de uma especialidade e isso causa alguns transtornos. A espera, por exemplo, se dá em um lugar que não tem cobertura. Se chover, as pessoas ficam na chuva”, comentou.
Matilda Aurora mora em Alto Laje e também precisa da UBS para realizar tratamentos médicos. Na sua opinião, o posto do bairro é precário. Ela relata ainda que precisou acordar às cinco da manhã para tentar um lugar na fila de atendimento. As consultas particulares, ela diz, são muito caras. “Já gastei tudo o que tinha nos exames”, conta.
De acordo com a Secretaria Municipal de Saúde (Semus), a reforma na UBS de Jardim América começou em maio de 2020. Entretanto, a obra está paralisada desde agosto aguardando a aprovação de recursos aditivos. Devido à reforma, alguns serviços foram suspensos. Para os procedimentos de vacinação, os moradores estão sendo orientados a procurar as unidades de saúde mais próximas como Itaquari, Santa Fé e Bela Aurora.
Ainda segundo a Semus, o prazo de conclusão da obra depende do repasse do Governo Federal. Em nota, a Secretaria também informou que, devido à pandemia da Covid-19, cinco profissionais precisaram ser afastados por se enquadrarem no grupo de risco.
Os problemas da UBS de Jardim América são igualmente observados em outros bairros de Cariacica. Moradores da região de Flexal, composta pelos bairros I e II, também apontam que precisam se locomover para outras localidades do município devido a falta de um posto de saúde no bairro.
A ausência de unidades bem estruturadas alimenta a sobrecarga do sistema e força a população a buscar os tratamentos em bairros vizinhos. “Às vezes, por não ter nenhuma forma de locomoção para os postos de atendimento de saúde que são mais afastados, fica mais viável ligar para o 192 e ser atendido em casa”, comenta Judismar Morais, de 44 anos.
Judismar Morais
Coordenador do Instituto Aprender Cultura e morador de Flexal II, em Cariacica
"Cariacica é carente de muita coisa"
Um dos coordenadores do Instituto Aprender Cultura, Judismar é morador de Flexal II há 42 anos e afirma que a região é carente de incentivos por parte do governo à educação, cultura, segurança e saúde.
O problema se repete em Flexal I. Para a estudante Karoline Colli, de 19 anos, a falta de um posto de saúde no bairro é alarmante. Moradora da região há 17 anos, Karoline relata que uma vez o avô precisou de um atendimento urgente e o tempo de deslocamento até a UBS quase foi fatal. “Flexal I é um bairro pequeno, então a gente usa o posto de Nova Canaã. Mas é muito precário em questão de manutenção, remédios e vacinas”, relatou.
Para atender a população, uma UBS foi construída em Flexal II. Entretanto, moradores contam que, apesar de pronta, ela ainda não foi inaugurada. “Já tem dois anos que a UBS daqui de Flexal II foi finalizada. Tem até equipamento comprado, mas não funciona. Os materiais parecem estar se deteriorando com o tempo, os equipamentos, desligados e a estrutura se desgastando”, comentou a fotógrafa Lia de Oliveira, 30 anos, que é coordenadora do projeto "Minas da Quebrada".
Em nota, a Semus confirmou que a unidade está passando por ajustes finais e será entregue no final de novembro. A UBS atenderá casos de urgência, emergência e atenção básica. Ainda de acordo com a nota, a equipe de atendimento deve contar com médicos, enfermeiros, farmacêuticos, técnicos, psicólogos, dentistas, assistentes sociais e auxiliares administrativos.
QUARTO MUNICÍPIO COM MAIS CASOS DE COVID-19
A situação ficou ainda mais difícil com a pandemia. Cariacica é o quarto município do Espírito Santo com mais casos de Covid-19, atrás de Vila Velha, Vitória e Serra. Mas é o terceiro em número de mortes, depois de Vila Velha e Serra.
Apesar dos índices alarmantes e recomendações de isolamento social, muitos moradores precisaram continuar a rotina de trabalho para sustentar as famílias. "Não é toda empresa que autorizou ficar em casa. Eu precisei continuar com a minha rotina, mas sempre com máscara e álcool em gel, enquanto minha família ficava de quarentena”, comentou Judismar Morais, que, além de coordenar o Instituto Aprender Cultura, trabalha como terceirizado em uma mineradora do Estado.
Enquanto em Flexal muitos moradores não tiveram a chance de permanecer em quarentena, Campo Grande, uma das principais zonas comerciais do município, viu várias lojas fecharem as portas no início do ano. O bairro é o quarto maior em número de óbitos no Espírito Santo por Covid-19, com 27 casos.
Lojistas têm reaberto as portas aos poucos com as novas medidas de flexibilização, mas a situação ainda não foi normalizada na região. “Estou fazendo de tudo para manter meus funcionários. Tenho tentado combinar a redução de jornada para promover soluções para os dois lados. Mas, estou com medo de não aguentar uma segunda onda de isolamento social”, comentou Leniuza Ramos, 43, moradora e comerciante em Campo Grande.
Leniuza Ramos
Comerciante e moradora de Campo Grande
"A situação precisa melhorar"
SEGURANÇA FICOU EM SEGUNDO LUGAR EM PESQUISA
Além das preocupações econômicas, Leniuza também destaca a insegurança do bairro enquanto comerciante. Apesar de nunca ter sido vítima de assalto em sua loja, ela comenta que os casos são comuns na região. “Tem muitos assaltos por aqui. Não tem muito policiamento, então é comum ter lojas arrombadas durante a noite”, disse.
Apesar de não morar em Campo Grande, Diana Rodrigues, de 30 anos, trabalha em uma loja de perfumes na principal avenida do bairro e conta que só se sente mais segura devido a movimentação na frente do estabelecimento e a uma central de policiamento próxima. “Quando a polícia vai embora, nós nos sentimos mais inseguras, porque em nossa equipe só há mulheres. Já presenciamos um assalto aqui na porta da loja”, lembrou.
No início da pandemia, Diana conta que ela e as colegas de trabalho ficaram paradas, sem trabalhar. Segundo ela, o movimento já melhorou em relação ao começo da pandemia, mas ainda está distante do que a loja registrou no mesmo período do ano passado. O auxílio emergencial, para ela, tem sido positivo neste aspecto.
“Por mais que a gente esteja na pandemia, muita gente está recebendo o auxílio também. Estamos na frente da Caixa Econômica. Algumas pessoas recebem, saem do banco e acabam parando aqui para comprar”, destacou.
Assim como Campo Grande, Jardim América também se destaca pelo comércio em Cariacica. Comerciante há dois meses, Genilson Pires, 45, tem uma farmácia no bairro. Ele mora em Itacibá e escolheu Jardim América por conta da boa referência que teve de vizinhos e amigos: “Antes de vir pra cá eu me informei com amigos e vizinhos. Me falaram muito bem do bairro, e que, na questão de comércio, dificilmente há assaltos”, pontuou.
Apesar de perceber a presença da polícia, em viaturas e em caminhões, Genilson conta que com a pandemia o fluxo do comércio mudou muito. “As pessoas ainda têm medo de sair de casa”, destacou. O comerciante também relatou que precisou criar estratégias para continuar trabalhando e hoje realiza entregas na região sem custos.
“Eu nunca presenciei nada que me levasse a ter receio pela segurança, mas, como os demais comércios fecham e à noite funcionam mais bares, o que não é o meu público, decidi começar a fechar a loja mais cedo”, relatou.
Entretanto, se na zona comercial de Jardim América é possível encontrar policiamento e menos relatos de violência, Vera Martinelli, de 52 anos, relata uma outra realidade. Moradora do bairro há 40 anos, ela conta que só se sente relativamente segura dentro de casa devido às grades do portão. “Temos verificado muitos roubos aqui na região. Semana passada mesmo, um carro foi roubado aqui na rua”, afirmou.
Moradora da região residencial do bairro, Vera comenta que a pandemia da Covid-19 reduziu o fluxo de pessoas. Ela relaciona a queda do movimento no bairro com o fechamento da escola estadual EFM Dr. Afonso Schwab, situada na frente de casa.
“Se ela estivesse em funcionamento, traria mais movimento para essa região, o que seria muito positivo". Com menos movimento nas ruas por conta do isolamento social, Vera também ressalta: “Acabo percebendo a presença de pessoas que não moram por aqui, como por exemplo, moradores de rua. Antes não os víamos aqui”, ponderou.
Escola Estadual EFM Dr. Afonso Schwab no bairro Jardim América, fechada
Com esse fluxo alterado, os relatos de assaltos e violência no bairro também aumentaram. “Fui assaltada duas vezes, ambas no período da tarde, por um homem que passou por mim de moto”, relatou Isabel Gustamante, de 24 anos. A estudante conta que teve o celular levado na ocasião e que apesar de ter registrado um boletim de ocorrência, não vê policiamento com tanta frequência.
A insegurança relatada pelos moradores de Jardim América e Campo Grande é comprovada pelo Atlas da Violência de 2019. Apenas no ano passado, o município obteve uma estimativa de 57,8 homicídios a cada 100 habitantes. De acordo com dados da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SESP), apenas em outubro de 2020 foram registrados 15 assaltos no município. Em outubro de 2019, já com a atuação da Força Nacional, ocorreram 17 assaltos em Cariacica.
Na região de Flexal, a violência e a falta de segurança se torna ainda mais aparente. Flexal I e II estão entre os 28 bairros de Cariacica que integram o Programa de Cooperação de Segurança Público Brasileiro, com a presença da Força Nacional, desde 2019. Em Cariacica, atuam 100 policiais federais e de órgãos de segurança estadual, sendo 80 nas ruas e 20 nas investigações e perícias.
Essa é a realidade que faz parte do dia a dia de Bruno Pereira, de 37 anos. O professor do ensino fundamental conta que o medo faz parte da vivência em Flexal. “Outro dia eu estava na sala de aula quando ouvimos a sirene da polícia. No corredor, os meninos começaram a gritar: ‘é a polícia, polícia, polícia, polícia, polícia!’. Eu os chamei e falei: ‘Vem cá, por que vocês estão gritando assim?’ eles nem sabiam responder. Não sabiam explicar o motivo de tanto medo”, relembrou.
Mesmo com a presença da Força Nacional, moradores de Flexal relataram que a violência não diminuiu na região. Durante a pandemia, Bruna Baldin, 18, observou também o aumento da violência doméstica no local: “Essa questão deveria ser prioridade dos gestores municipais. Na pandemia, isso piorou porque muitas mulheres ficaram presas em casa com os agressores e aconteceram coisas que a comunidade não viu, então não pôde evitar. É muito dolorido para nós como mulheres ver isso. Ajudamos da forma que conseguimos, literalmente na sororidade”, destacou.
O número de boletins de ocorrência de violência contra a mulher durante a quarentena, entre março e julho de 2020, registrou uma queda em relação a 2019. Neste ano, 400 denúncias foram realizadas, contra 537 no mesmo período do ano passado, segundo dados da Sesp.
De acordo com dados da Agência Brasil, das cinco cidades que recebem o projeto da Força Nacional, Cariacica foi o município com a menor redução no número de homicídios (-8,9%). Além disso, a região também apresentou a segunda menor queda nos dados de ocorrências de roubos (-24,7%).
30 de agosto de 2019 - 11 de janeiro de 2020 - Agência Brasil
Número de homicídios
-
01
Ananindeua
Pará
-65,2%
-
02
Goiânia
Goiás
-47,9%
-
03
Paulista
Pernambuco
-36,4%
-
04
São José dos Pinhais
Paraná
-20,7%
-
05
Cariacica
Espírito Santo
- 8,9%
Durante o período de quarentena, entre março e junho de 2020, o município também registrou um aumento no número de homicídios comparado ao mesmo período em 2019. Neste ano, de acordo com dados da Ssep, foram registrados 85 casos, contra 65 no ano passado, mesmo com a atuação da Força Nacional em Cariacica.
30 de agosto de 2019 - 11 de janeiro de 2020 - Agência Brasil
Número de ocorrências de roubo
-
01
Goiânia
Goiás
-40,8%
-
02
Paulista
Pernambuco
-31,6%
-
03
São José dos Pinhais
Paraná
-28,2%
-
04
Cariacica
Espírito Santo
-24,7%
-
05
Ananindeua
Pará
-17,3%
A poucos dias das eleições, os moradores agora precisam escolher os vereadores e prefeito que irão cuidar da cidade pelos próximos anos. Morador de Campo Grande há 26 anos, João Paulo, atualmente, trabalha vendendo máscaras de pano que a mãe produz e ressalta a importância de escolher com consciência os próximos representantes legislativos. “Me sinto no dever de cidadão. Estou acompanhando as pesquisas, mas ainda não decidi meu voto. Preciso escolher alguém”, comentou.
* Maiara Dal Bosco, Taisa Vargas e Vinícius Viana são alunos do 23º Curso de Residência em Jornalismo da Rede Gazeta e foram supervisionados pela jornalista Ana Laura Nahas.
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