A perpetuação da força e da influência do presidente Jair Bolsonaro (PL) uma vez que ele deixar o Planalto vai depender do sucesso e das atitudes do governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a partir do ano que vem. A análise é do cientista político e professor da FGV CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil) Jairo Nicolau.
"Se ele (Bolsonaro) resolver ser uma liderança social, fazer live, correr o Brasil, acho que pode ser no mínimo incômodo para o governo. Ele é hoje um líder que tem 58 milhões de votos nas costas e é admirado e querido por parte significativa dos seus eleitores. Claro que se a economia estiver bem e a gestão estiver bem, as coisas serão melhores. Quanto melhor o governo, mais Bolsonaro vai perdendo força."
Ele é uma das presenças confirmadas no Pedra Azul Summit, que acontece nos dias 18 e 19 de novembro em Pedra Azul, Domingos Martins.
Para A Gazeta, o estudioso do processo eleitoral brasileiro analisa as diferenças territoriais, sociais e ideológicas que deram vitória à Bolsonaro em 2018 e que o fizeram sair perdedor do pleito deste ano. “Foram as mulheres que deram a vitória à Lula”, aponta.
No livro “O Brasil dobrou a direita”, o senhor analisa o perfil do eleitor que colocou Bolsonaro no poder em 2018. O senhor apontaria hoje, professor, alguma diferença entre o eleitor daquela época e o eleitor que votou nele neste ano?
Há uma diferença grande nessa eleição que é o comportamento do eleitor dos territórios metropolitanos das grandes cidades brasileiras. E ele foi decisivo para que o Lula vencesse. Porque, comparando os territórios, entre as eleições de 2022 com 2018 no segundo turno, a gente observa que há muita semelhança. No Nordeste, neste ano, o Lula teve os mesmos setenta por cento do Haddad. No Sul e no Centro-Oeste do Brasil, Bolsonaro ganhou com patamares semelhantes. No Norte, a eleição se dividiu, mas foi mais ou menos repetindo 2018, um pouco melhor para o PT agora. Mas a grande diferença foi no Sudeste, onde em 2018 o Bolsonaro abriu uma grande vantagem nas grandes cidades, onde mora grande parte dos brasileiros. O Bolsonaro ainda venceu (neste ano). Porém, a diferença agora é que essa vitória foi menos forte e ela não compensou a vantagem que o PT abriu. O Lula foi muito maior do que Haddad (nos grandes centros) e Bolsonaro de 2022 foi menor do que Bolsonaro de 2018.
Há também diferenças do ponto de vista social?
Nesse sentido, eu acho que as divisões se aprofundaram. Vamos lembrar que Bolsonaro ganhou entre os eleitores de baixa escolaridade em 2018, e dessa vez quem ganhou foi o Lula. Bolsonaro concentrou sua votação nos eleitores de ensino médio e superior, com renda de dois a cinco (salários mínimos). Que não são pessoas ricas, mas, na distribuição do Brasil, são pessoas remediadas. Há uma outra diferença: dessa vez há um corte mais forte do voto relacionado a identidade de cor do eleitor, o que não foi tão expressivo em 2018. Agora, Bolsonaro ganhou entre os eleitores que se consideram de cor branca e o Lula entre os que se definem como de cor preta e pardos. Ou seja, o Brasil ficou socialmente mais dividido com o Lula do que havia ficado com Haddad. Em relação ao gênero, em 2018, Bolsonaro abriu uma enorme diferença entre homens e empatou (com Haddad) entre as mulheres. E agora houve um empate entre os homens, ou seja, o Lula tirou a diferença entre os homens, e abriu uma diferença entre as mulheres. Foram as mulheres que deram a vitória a Lula.
Extrema-direita, anti-PT, bolsonarismo raiz, esses grupos diferentes que elegeram Bolsonaro em 2018 votaram novamente nele neste ano?
Em 2018, a minha impressão analisando os dados, olhando até no tempo e comparando com 2022, é que aquela coalizão que se organizou em torno do Bolsonaro parecia algo de momento. Havia o bolsonarismo das redes sociais, que era sobretudo masculino, que seguia Bolsonaro nas redes há mais tempo e que construiu a ideia do mito. Por isso, acho que pouca gente já imaginava que ele pudesse vencer, né? Porque ele era um um candidato e falava pra um nicho muito específico. O que aconteceu ao longo da campanha, pra ele sair dos 20% e chegar com 55% (dos votos) que ele chegou, ou seja dobrar a eleição dele, é que ele foi fazendo um arrastão. Conquistou no primeiro turno o apoio mais forte do mundo evangélico e do conservador católico, ele foi no final do primeiro turno ganhando voto em São Paulo, na capital e no interior, que era tradicionalmente o eleitorado do PSDB, a classe média de direita, que não era necessariamente de ultradireita, alguns segmentos intelectuais mais conservadores… foi se montando uma coalizão em torno dele quase “no susto” pra vencer. Havia um ambiente antipolítico que ele captou bem, a Lava Jato, o antipetismo forte. A eleição de 2018 é mais um uma dimensão do improviso que deu certo. Em 2022, encontramos um Bolsonaro diferente. A estrutura de campanha é diferente, agora ele tem dinheiro, agora ele tem tempo de TV, agora ele tem o megapartido na mão, a máquina estatal na mão. Ele chega nessa disputa com uma base social diferente. Ou seja, ele tem uma capacidade de liderança muito grande, e eu acho que ele fez uma coalizão eleitoral diferente, ainda que o voto conservador tenha ido basicamente pra ele, é uma visão diferente, porque ela é uma coalizão que tem um apoio de políticos tradicionais, candidatos a governador que haviam vencido em Estados importantes.
Mesmo com a eleição de Lula, o senhor acredita que a direita tenha saído fortalecida dessas eleições? Que direita é essa?
A eleição teve dois turnos e o primeiro turno, embora tenha ficado lá longe, expressa mais a configuração política do Brasil. E esse turno mostrou uma potência muito grande da direita. A gente não pode olhar a vitória do Lula como expressão das posições políticas dos brasileiros, ela está melhor expressa no primeiro turno. E esse Brasil é um Brasil conservador. É um Brasil de direita que tem um predomínio congressual da direita, mas não da mesma forma que em 2018. Se você olhar pro congresso (em 2018) aqueles 52 deputados que foram eleitos com Bolsonaro no PSL, o perfil deles eram de pessoas que, em muitos casos, nunca tinham disputado uma eleição. Agora, a gente tem uma direita mais tradicional. Mesmo entre aqueles ligados ao bolsonarismo, eu acho que são menos excêntricos, não na sua essência pessoal, mas menos de fora do mundo da política. É uma bancada mais orgânica, uma direita mais orgânica.
Os movimentos antidemocráticos que surgiram depois do segundo turno, que seguem ocupando a frente de instalações militares, correm o risco de fazer barulho suficiente para prejudicar os planos do presidente eleito de fazer uma transição com certa tranquilidade?
A gente não pode subestimar esse movimento do ponto de vista do tamanho e da persistência. São pessoas insatisfeitas, mas não dá pra saber exatamente se há ali uma ideologia. Eu acho que não há. Parece que é uma certa mistura de frustração com a derrota, que eles não contavam, com mais uma teoria da da conspiração de que essa derrota foi consequência de roubo. Essa turma que foi pra rua e que não aceita o resultado das urnas, eu acho que não tem outro nome, é a ultradireita. Porque justamente é característica da extrema-direita o fato de não aceitar o jogo democrático. Bolsonaro é uma pessoa imprevisível em certas circunstâncias. Então é sempre bom ter prudência. Mas a minha impressão é que o foco hoje não está nele. Está na equipe de transição, em como vai ser a economia, com as políticas de salário mínimo, o foco se desloca do Bolsonaro e do governo dele pra outras coisas. Daqui a pouco ele vai ter que pensar em um caminhão de mudança, em onde ele vai morar. Acho que não tem muito espaço e tempo pra aventura. Mas o silêncio dele é uma boa, porque mantém as pessoas mobilizadas, falando essas loucuras, transformando ele no mito. Eles ficam esperando uma notícia que vai reverter o quadro, como aquele relatório das Forças Armadas. E se a pessoa tem tempo pra ficar na rua sentada, ótimo. O desafio do governo (Lula) é parlamentar, é de aprovar as medidas, implementar as políticas. Mas ele vai ter que lidar com esses personagens, com Bolsonaro, que a gente não sabe o que ele vai fazer da vida.
Havia umas previsões meio "apocalípticas" para o caso de Bolsonaro perder por uma margem pequena, que acabaram não se concretizando. Esses movimentos dos bolsonaristas surpreenderam?
Acho que a surpresa foi eles terem aparecido. Ninguém imaginava. A nossa fabulação sobre a derrota tinha mais uma dimensão armada: conflitos, insurreições, PM. Eu não entrei nessa porque eu sei que, por alguma razão, a política brasileira não tem ultrapassado a fronteira da polarização retórica para o confronto armado. Mas não vejo identidade nesse movimento ainda. Pode ser que tenha, ou pode ser que todo mundo vá para casa depois da terceira vez. Eles vão parar de falar (nas ruas) que a eleição foi roubada e vão ficar repetindo isso nas redes (sociais). Mas não vão ficar sentados lá na praça do Exército falando que a eleição foi roubada, porque aí vira um negócio de doido.
Diante de um resultado tão apertado, a melhora da economia brasileira é a chave da pacificação?
Eu acho que tem um elemento que facilita a pacificação, que é o comportamento do presidente Lula, da coalizão que ele está montando, mais seguro, mais moderado. Ele está montando uma equipe de transição que é bem mais moderada. Então a gente tem uma sinalização para a moderação. De 2015 pra cá, são sete anos como se a gente tivesse vivendo sempre à beira do abismo: impeachment, eleição polarizada, facada, Bolsonaro, confronto. Nos EUA, quando acabou o governo do Trump, a queda na audiência de Política nos canais e nos jornais foi gigantesca. A gente tem no Brasil um grau de interesse por política que tende a esmaecer também. Não é normal as pessoas ficarem o dia inteiro, durante sete anos, compartilhando notícias de política no WhatsApp. É pras pessoas se divertirem. Acho que a vitória de Lula tem um caráter de arrefecimento. Mas tem a questão do que vai sair do comportamento do Bolsonaro. Se ele resolver ser uma liderança social, fazer live, correr o Brasil, acho que pode ser no mínimo incômodo pro governo. Ele é hoje um líder que tem 58 milhões de votos nas costas e é admirado e querido por parte significativa dos seus eleitores. Claro que se a economia estiver bem e a gestão estiver bem, as coisas serão melhores. Quanto melhor o governo, mais Bolsonaro vai perdendo força.
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