Maioria na população, as mulheres são sub-representadas na política brasileira. Embora em fevereiro tenham sido celebrados os 90 anos da conquista do voto feminino e, hoje, elas somem mais da metade do eleitorado no Espírito Santo, apenas 10% estão filiadas a partidos. E a legislação ainda precisa manter cotas de gênero para que as siglas garantam o mínimo de mulheres nas disputas. Esse cenário é de 2022, século XXI. Imagine o que não se passava no Brasil há 200 anos, no período da independência. Pois, a despeito da sociedade da época, muitas foram à luta e as mulheres também fizeram história.
É bem verdade que a participação das mulheres na Independência do Brasil sofreu um apagamento porque os relatos daquele período estiveram centrados na figura do homem branco. Mas o resgate histórico feito até o momento demonstra que o movimento que levou o país a se emancipar de Portugal começou antes de 7 de setembro de 1822, se estendeu para depois dessa data simbólica e teve envolvimento direto de lideranças femininas.
A historiadora Giovanna Trevelin conta que, no seu mestrado em História Social, dedicou-se a pesquisar o século XIX, a vinda da família real para o Brasil e a produção artística no país. Ao analisar um período específico, passou a ter contato com outros recortes e percebeu a ausência da atuação das mulheres. Decidida a produzir conteúdos para as redes sociais sobre a temática, aprofundou seus estudos e chegou a pelo menos cinco nomes, apesar de saber que outras tantas tiveram participação nas lutas daquela época.
JOANNA ANGÉLICA
Freira, ela residia no Convento da Lapa, em Salvador, na Bahia, e usou o próprio corpo para defender o local da invasão de portugueses. Era fevereiro de 1822, e a tropa estava à procura de brasileiros revoltosos e de armamentos. Aos 60 anos, Joanna Angélica não queria permitir a entrada e se pôs de braços abertos diante dos militares, que passaram por cima da religiosa após a matarem com golpes de baioneta. Para a história da independência, a freira foi considerada heroína; na Igreja Católica, uma mártir.
MARIA QUITÉRIA
Primeira mulher a integrar o Exército brasileiro, Maria Quitéria ocupou esse espaço, a princípio, se disfarçando. Ela havia fugido de casa e cortado os cabelos. Com as roupas do cunhado, apresentou-se ao serviço militar como soldado Medeiros para lutar pela Independência.
Giovanna Trevelin afirma que, pouco tempo depois, Maria Quitéria foi descoberta e o pai queria levá-la embora, mas o capitão do grupamento não deixou porque ela sabia manusear muito bem as armas e era importante no enfrentamento às tropas portuguesas. Mais tarde, ela foi reconhecida por Dom Pedro I por seus serviços prestados e recebeu a medalha Imperial do Cruzeiro do Sul, uma ordem que havia sido criada pelo imperador em comemoração à aclamação da Independência.
MARIA FELIPA
Ex-escravizada, era uma marisqueira da região do Recôncavo Baiano. Segundo Giovanna Trevelin, se juntou a outras mulheres para lutar contra os portugueses. Por ser pobre, preta e mulher, registros sobre os feitos de Maria Felipa ficaram por muito tempo relegados, e as demais nem tiveram seus nomes reconhecidos. A recomposição sobre a atuação da marisqueira e do seu grupo foi feita a partir de história oral — fontes que ajudam a compreender o passado.
As mulheres queimavam embarcações para afastar os portugueses. Os relatos referem-se a 1823, isto é, após a aclamação da Independência. A historiadora explica que o "grito do Ipiranga" ficou centrado no Rio de Janeiro e em São Paulo, enquanto outras províncias ainda resistiam à investida da Coroa Portuguesa, dadas as dimensões continentais do Brasil. Tanto é que a Bahia comemora a Independência em 2 de julho, data em que a população derrotou as tropas ainda fiéis a Portugal, mesmo depois do 7 de Setembro.
MULHERES DE SAUBARA
Município do Recôncavo Baiano, Saubara reuniu mulheres que também foram importantes na luta pela Independência, embora seus nomes tenham sido apagados na história. As memórias que remontaram àquela época apontam que as esposas e mães de soldados se vestiam de branco, no momento de levar mantimentos aos homens que lutavam pelo território e assustavam as tropas portuguesas.
"No imaginário da população, elas se vestiam de branco, se escondiam e, quando apareciam, eram como fantasmas. Mas, durante o processo de Independência, elas lutaram corpo a corpo mesmo", revela Giovanna.
De todo modo, a história popular não se perdeu e, até os dias atuais, as "Caretas do Mingau" — principal alimento dado aos soldados brasileiros — relembram esse movimento de resistência. A historiadora diz que a manifestação é uma das mais antigas e importantes da região e reivindica, justamente, o reconhecimento da importância feminina no processo de Independência.
MARIA LEOPOLDINA
Primeira esposa de Dom Pedro I, Maria Leopoldina já exercia influência sobre o marido a respeito da sua permanência no Brasil, quando o rei, Dom João VI, queria que o filho retornasse a Portugal.
"Ela influenciava em toda a questão de comandar o território. Desde o 'Dia do Fico' (9 de janeiro de 1822), já estava por trás das ideias de que ele deveria permanecer no país, pois era isso que o povo desejava", lembra Giovanna, acrescentando que Leopoldina era uma mulher bastante instruída e, inclusive, tinha dado aulas de História para o marido, então príncipe regente.
No dia 2 de setembro de 1822, em sessão do Conselho de Estado, Maria Leopoldina conduziu no Rio de Janeiro uma reunião com ministros de Dom Pedro I, que, na ocasião, estava em São Paulo. Desse encontro, saiu a carta que, cinco dias depois, chegou às mãos do príncipe, o levando a aclamar a Independência.
MARIA GRAHAM
Viajante inglesa que esteve no Brasil no período da Independência, a pintora e escritora Maria Graham é, para Giovanna Trevelin, uma importante personagem do ponto de vista histórico porque é uma exceção ter registros femininos daquela época.
"Ela escreveu um diário da viagem ao Brasil. Era muito próxima à Leopoldina, tinha relatos sobre a Maria Quitéria, ou seja, o diário dela é uma fonte documental através da perspectiva de uma mulher", valoriza a historiadora.
Professora de História da Ufes, Leonor Franco de Araujo observa que os poucos nomes femininos que se sobressaem nos relatos sobre a independência do Brasil refletem a sociedade da época. Início do século XIX, a conformação social e cultural é dominada pelo patriarcado, pelo machismo e paternalismo que vão ser base para a construção da República e, até hoje, permanecem em sua estrutura.
No período da Independência, as mulheres que poderiam vislumbrar os estudos, por exemplo, eram as brancas e cristãs; as demais nem mesmo eram consideradas. Mas, mesmo para essas que seriam privilegiadas, aponta Leonor, não era dada a oportunidade de participar da vida pública.
"Dentro do patriarcalismo europeu que vem para o Brasil, a mulher deveria ficar no recôndito do lar. Para ela, cabia o espaço privado, deveria se concentrar nas tarefas de âmbito doméstico. A socialização girava em torno de ser boa filha, mãe, esposa e dona de casa e, por isso, era afastada desses processos políticos de transformação", pontua a professora.
Na avaliação de Leonor, uma das poucas exceções é Maria Leopoldina, que teve uma criação diferenciada, por um pai que era cientista e liberal. Assim, a filha teve a oportunidade de estudar, e sua sociabilidade não era doméstica; ela era uma pesquisadora.
"A história oficial que permeou a nossa mentalidade, o imaginário, a história contada no Brasil e na maior parte do mundo e está subjugada à matriz europeia é heteronormativa e masculina. Sempre foi uma história que falou dos homens, pesquisou os homens e, portanto, invisibilizou as mulheres", frisa Leonor, diante dos poucos registros históricos femininos.
Para mudar esse contexto, opina Giovanna Trevelin, é preciso subverter as narrativas consolidadas, apontando outros pontos de vista e, assim, construir novas referências. Ela cita como exemplo a pintura "Independência ou Morte", de Pedro Américo, que predomina nos livros de história que abordam o fim da colonização portuguesa.
Entretanto, há outros registros importantes do período, como o de Georgina de Albuquerque, que reproduziu a "Sessão do Conselho de Estado", justamente no momento em que Maria Leopoldina presidia o encontro com ministros que antecedeu o grito do Ipiranga. Uma mulher retratando outra mulher, que, ressalta Giovanna, também precisa ser referenciada, para a história ser contada sob novos ângulos — inclusive o feminino.
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