Em quase 80 anos de história, um fato inédito marca a Câmara de Vitória: três mulheres vão ocupar, no mesmo período, cadeiras no Legislativo municipal. Desde 1947, ano de início da primeira legislatura, houve apenas 10 vereadoras na Capital — contando suplentes, em substituição temporária — e nunca mais de duas simultaneamente. Mas, a partir de 2025, a bancada feminina ganha mais espaço, com a reeleição de Karla Coser (PT) e a estreia de Ana Paula Rocha (Psol) e Mara Maroca (PP).
É fato que, proporcionalmente, a representação política ainda está abaixo da presença feminina em Vitória, município do Espírito Santo que, conforme o Censo 2022, tem mais mulheres do que homens. Elas somam cerca de 54% da população da Capital. Na Câmara, serão apenas 14% no período de 2025 a 2028, ainda que retratem um avanço. Na legislatura atual, somente Karla exerce o mandato — Camila Valadão (Psol) também havia conquistado uma cadeira, porém deixou a Casa quando foi eleita para a Assembleia Legislativa em 2022.
O mesmo índice, de 14%, é a participação das mulheres no Senado Federal, enquanto 17% estão na Câmara de Deputados, segundo aponta Francesca Columbu, coordenadora do curso de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, no campus Campinas (SP), ao destacar que a sub-representatividade feminina é grande em espaços de poder pelo país.
Professora do Ifes e pesquisadora do tema, Dayane Santos de Souza Barbosa lembra que, no Congresso Nacional, o Espírito Santo já teve, ao mesmo tempo, quatro mulheres deputadas federais (2011 a 2015), numa bancada de 10, mas houve uma queda vertiginosa. Hoje, há apenas Jack Rocha (PT).
"Isso é um retrocesso. Se houvesse, realmente, investimento e preocupação dos partidos — e da sociedade também — talvez tivéssemos mantido esse resultado e até avançado para uma equidade de representação. Então, é uma vitória ter três mulheres eleitas para a Câmara (na Capital), mas ainda é uma representação muito baixa. Estruturalmente falando, as coisas não mudaram muito desde 1947", analisa.
As três vereadoras eleitas para a próxima legislatura têm uma trajetória política que antecede em muito os mandatos que vão exercer. Com participação em movimentos sociais, comunitários e partidários, cada uma já deu contribuições para o município e acredita que, na Câmara, tem a possibilidade de ampliar suas realizações e alcançar mais pessoas.
Ana Paula, filha de Isaías Santana e Maria da Penha, duas lideranças em Vitória, afirma que ela e seus irmãos — um deles, Lula Rocha, também um importante líder em prol dos direitos humanos, que morreu há três anos — cresceram sob a perspectiva de que a luta coletiva transforma vidas. Tem ainda como inspiração a avó, dona Rita, que partilhava a própria comida na comunidade do Romão. Com essas referências, a futura vereadora do Psol também se engajou em diversos movimentos, entre os quais o estudantil da Ufes, grupo em que lutou pelas cotas raciais na universidade.
"É uma família aquilombada. Entendemos a política como uma ação cotidiana. Fazemos política no carnaval, nas lutas comunitárias por água e escola, quando conseguimos construir uma rede de solidariedade na comunidade para que outras mulheres estudem e sejam cuidadas", pontua.
Professora da rede pública há mais de 20 anos, Ana Paula também está envolvida, entre outras iniciativas, com a educação popular em um projeto de preparação de jovens para o Enem criado por seu irmão. Para este ano, são mais de 400 matrículas, contemplando comunidades da Grande Vitória, entre as quais bairros do "Território do Bem", na Capital.
Outra vereadora de primeiro mandato será Mara Maroca, liderança comunitária que, segundo destaca, sempre trabalhou em áreas sociais, particularmente na Grande São Pedro e em bairros vizinhos. Nas suas andanças pelas comunidades, ouvia as queixas da população e decidiu que era o momento de levar essas demandas para a Câmara Municipal.
"Ainda existem muitas necessidades para serem atendidas, principalmente nos bairros periféricos. Na parte alta, falta acessibilidade; para crianças especiais, faltam atividades esportivas, lazer. Na verdade, muita coisa precisa melhorar em saúde, educação, segurança, transporte público", relaciona a vereadora eleita pelo PP.
Reeleita com 7.256 votos, a maior votação na Câmara de Vitória nas Eleições 2024, Karla Coser atuou por um tempo nos bastidores da política, ocupando funções na direção do PT estadual até ser coordenadora da campanha do pai, o ex-prefeito João Coser, para a Câmara Federal, em 2018. Naquele ano, dois fatos a impactaram significativamente, a ponto de decidir participar da vida pública de outra maneira.
"O primeiro foi o assassinato de Marielle (Franco), que me marcou muito. Era uma mulher que falava de pautas que eu defendo. Eu me via nela, era uma real representatividade. Eu não a conhecia, mas acompanhava o trabalho. Outro fato foi a eleição de (Jair) Bolsonaro. Cheguei à conclusão que não queria ficar só nos bastidores", lembra.
Karla observava a falta de protagonismo das mulheres, muitas vezes oferecendo as melhores ideias, mas que ficavam em posições de organização e nunca eram "a cara do projeto". Assim, ela decidiu disputar as eleições municipais em 2020, contrariando a vontade do próprio pai, político histórico do PT e hoje deputado estadual. A vereadora ressalta que muita gente acredita que João Coser a moldou para ser candidata, mas a verdade é que ele foi o primeiro eleitor que precisou convencer.
Com a ampliação do número de mulheres na Câmara de Vitória, a expectativa é que as pautas femininas também tenham mais espaço. Karla já traz o tema para o debate no atual mandato, mas espera que a bancada das três vereadoras transforme mais ideias em projetos no município.
"O mote da minha campanha foi a construção da cidade para as mulheres. Queremos serviços públicos que funcionem, para elas e seus filhos, que sejam bem atendidas", destaca a vereadora, citando como exemplo a necessidade de cobrar mais do Executivo o fortalecimento de equipamentos como a Casa Rosa, que acolhe vítimas de violência.
Karla frisa, ainda, a necessidade de lutar por mais especialidades de saúde para suprir o aumento de algumas demandas, como a de geriatria, em virtude do envelhecimento da população, e a de neuropediatria, para as crianças com neurodivergência, como o Transtorno do Espectro Autista (TEA).
Ana Paula, por sua vez, vislumbra uma atuação baseada nas próprias experiências.
Para a vereadora eleita do Psol, é preciso deixar de lado pautas ligadas à moralidade e ao controle dos corpos alheios, como foi observado ao longo da atual legislatura, e passar a debater a cidade e suas reais necessidades. Entre as suas sugestões, estão meios para fazer, de fato, o enfrentamento à violência contra mulheres e oferecer mais oportunidades para a juventude.
Mara Maroca defende que as discussões na Câmara tenham relação com os interesses dos moradores de Vitória. "Muitas vezes inventam algo e não notam se é o que a população necessita. A cidade precisa melhorar em muita coisa e temos que discutir com as pessoas primeiro, saber o que elas querem".
A vereadora do PP sabe que haverá desafios para emplacar as pautas que considerar relevantes e, talvez, até dificuldade de ser ouvida.
Karla, que vai para o segundo mandato, considera a violência de gênero um dos grandes problemas a enfrentar nos espaços de poder. Ela se recorda de episódios com os quais precisou lidar na Câmara, como no dia em que sugeriram lhe dar mamadeira e chupeta, insinuando que a vereadora não tinha maturidade, ou mesmo que às mulheres cabe apenas o papel de mãe.
Num contexto como esse, avalia Karla, uma mulher que, porventura, esteja assistindo a uma sessão na Câmara pode não se sentir estimulada a ingressar na política, temendo pelos ataques.
Karla Coser destaca que é preciso haver mecanismos de combate. "Mas eu estou muito feliz e esperançosa com a próxima legislatura. Além da minha eleição, e de ter sido a mulher mais bem votada da história, mais duas foram eleitas. Conheço a Ana Paula de militância, e de outros espaços, e a Mara é uma liderança comunitária com trabalho de base importante. Estamos fazendo história, mas ainda espero que um dia tenhamos pelo menos 50% das cadeiras ocupadas por mulheres".
A violência na Câmara é reflexo de uma sociedade extremamente machista, na avaliação de Ana Paula. "Ser mulher no Brasil é um desafio; na política, outro. Tudo é colocado para violentar nossos corpos. Para mim, também nunca foi fácil. O que possibilitou a chegada até aqui foi justamente a organização de movimentos, como o de mulheres negras", frisa a vereadora do Psol.
Paralelamente a esses movimentos que impulsionam candidaturas femininas, a história na Câmara com a eleição das três ganha outro componente importante: todas são negras. Ana Paula é preta. Karla e Mara se declaram pardas, mas essa identificação, conforme os parâmetros do país, as inclui na população de negros. A vereadora do PT considera esse um aspecto técnico, e não se enxerga no grupo pelo tom da pele, mas se junta às outras duas na defesa de pautas e políticas antirracistas.
Para Ana Paula, é imprescindível colocar mulheres negras em lugares de decisão política. "A gente quer se ver no orçamento, quer conseguir incidir políticas públicas que melhorem de forma objetiva a vida do nosso povo. Vamos chegar à Câmara como uma ocupação mesmo", exalta.
A professora Dayane Barbosa acrescenta que, se a mulher não é incentivada, não participa desde cedo do espaço público, se não entende que faz parte desse contexto, é difícil depois se candidatar, querer estar à frente. "A falta de socialização política vem com um ambiente hostil à presença das mulheres, e não só delas, mas também dos que classificam como diferentes — negros, público LGBTQIA+, pessoas de periferia".
Alguns avanços até têm sido observados ao longo do tempo. Francesca Columbu cita que, no Brasil, há uma legislação (Lei 9.504/1997) de fomento à participação feminina, ao estabelecer cotas de no mínimo 30% de candidaturas de um dos gêneros. A obrigatoriedade passou a valer em 2009. Assim, ao menos esse percentual tem de ser preenchido por mulheres nas campanhas. A Justiça Eleitoral também determinou, a partir de 2018, que os partidos políticos reservem pelo menos 30% dos recursos do Fundo Eleitoral para candidaturas femininas, bem como o mesmo percentual para espaço na propaganda política na rádio e na TV.
"Há um movimento para a representatividade feminina, mas o que observamos, até por essa nova rodada de eleições, é que ainda é insuficiente. Em muitos partidos se insere a candidatura feminina para que haja a imagem de um partido plural e diverso quando, na verdade, os investimentos principais continuam sendo para as campanhas de homens", constata.
Ao analisar o perfil da bancada feminina, Dayane Barbosa também mencionou a falta de apoio. "São três nomes muito interessantes: duas de oposição (Ana Paula e Karla) e uma da situação (Mara), alinhada com o prefeito (Lorenzo Pazolini - Republicanos). E têm perfis diferentes. É muito bom ter esses nomes, acho algo positivo. E também o empenho dos partidos nessas candidaturas. No geral, o que acontece é um baixo empenho dos partidos nas candidaturas femininas".
Karla fez essa ponderação ao falar da sua eleição e das futuras colegas de bancada. "Tanto a minha candidatura quanto a delas teve apoio dos partidos. E o que isso significa: colocar recursos financeiros, dar visibilidade. Quando o partido apoia, a candidatura se torna mais competitiva. É importante que olhem e construam candidaturas femininas durante quatro anos, e não só dois, três meses antes das eleições. As mulheres não querem ser laranjas (para cumprir a cota dos 30%), não aceitamos mais isso!"
Para Francesca Columbu, um dos caminhos — não muito simples de seguir — seria tornar o sistema de cotas e ações afirmativas mais presentes, não só nas candidaturas, mas nas cadeiras políticas. Isso significaria, em vez de reservar 30% de cota de gênero, ter reserva de assentos para mulheres na Câmara e no Senado. Mudando no Congresso Nacional, haveria repercussão nos Estados (Assembleias Legislativas) e nos municípios (Câmaras de Vereadores).
Dayane Barbosa também defende uma reforma política mais profunda, que pudesse visar essa paridade, mexer em pontos que favoreçam a eleição de mulheres. Isso, além de cobrar dos partidos o cumprimento das regras eleitorais e, para os que não cumprem, punição mais rápida e eficaz. "E incentivar a consciência política dos cidadãos e cidadãs para essa vontade de participar, que passa também pela educação. E, nós, como sociedade, queremos mais mulheres nesses espaços".
Independentemente dessa possibilidade de mudanças, Francesca reforça que a sociedade também tem seu papel na construção de mais representatividade na política. "Sempre falamos que é importante ficarmos atentos a se, num lugar de tomada de decisão, há rostos femininos, negros, indígenas. Há uma discrepância entre o Brasil real e o do meio político, da tomada de decisões, como é a sub-representação de gênero", conclui.
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