Laura Matias Fonseca, de 8 anos, começou a jogar futsal com quatro anos
Laura Matias Fonseca, de 8 anos, começou a jogar futsal com quatro anos. Crédito: Vitor Jubini

Menina craque no futsal é impedida de jogar em campeonato do ES

Laurinha, de 8 anos, ganhou espaço após uma tarde de brincadeira e ajudou time a se classificar para torneio estadual, cujas normas não permitiram que ela jogasse

Tempo de leitura: 6min
Vitória
Publicado em 27/06/2022 às 18h16

Com um par de chuteiras e de laços no cabelo, Laurinha conquistou o espaço em uma escolinha em Vitória depois de "jogar de igual para igual" com os meninos e ajudou o time a se classificar para o Campeonato de Futsal do Espírito Santo — no qual não pôde participar por ser... menina. "Mas por que ela não jogou o torneio feminino?", talvez você se pergunte. A resposta é tão simples quanto dura: porque não existe uma disputa estadual para jogadoras da idade dela.

Hoje com oito anos, Laurinha, que é de Ilha das Caieiras, na Capital, passou quase metade desse tempo com a bola no pé, muito por influência do tio Joel. "Ela brincava com ele e assistia aos jogos na TV. Quando percebi que ela realmente gostava, procurei uma escolinha para ela e, aos quatro anos, ela começou a treinar", conta a mãe, Laís Matias Adolfo.

Para conseguir uma vaga para a filha, Laís precisou fazer uma pequena peregrinação pela Grande Vitória. "Fui em umas quatro escolas, mas não tinha nenhuma menina e algumas falaram que não dava para colocar junto porque ela era muito pequenininha perto dos meninos de seis e sete anos", lembra.

Nessa busca por espaço, Laís foi orientada a procurar o Cruzeiro da Ilha, que fica na Capital. "Só que o Cruzeirinho só tinha meninos a partir de seis anos, então pedi para deixar ela brincar para eu poder voltar para casa mais tranquila." Foi quando a coragem e o talento potencial da Laurinha entraram em campo.

Laís Matias Adolfo

Mãe de Laurinha e estudante de engenharia sanitária ambiental

"Quando o técnico viu o jeito que ela jogava, ele falou que ela podia continuar treinando"

Participando de campeonatos desde o ano passado, a capixabinha já acumula sete medalhas, que são guardadas pela avó-coruja. "Ela sempre jogou os amistosos e a copa das escolinhas. Nos torneios municipais, participou de todas as fases e conseguiu a classificação para o Estadual", diz a mãe.

EXPECTATIVA X REALIDADE

Diante da futura disputa, Laís enviou os documentos para fazer a federação e inscrição da filha, mas teve uma desagradável surpresa. "Responderam que ela não poderia jogar porque era um campeonato masculino", disse a mãe, que também já foi impedida de entrar em quadra quando adolescente.

Laura Matias, 8 anos, atleta de futebol
Atualmente, Laurinha treina futebol três vezes por semana, além dos dois dias de futsal. Crédito: Vitor Jubini

Para tentar reverter a situação, ela disse que procurou a Federação Espírito Santense de Futebol de Salão (FESFS), sem sucesso. "Fiz uma campanha, mas fiquei sabendo que ela realmente não jogaria na quinta-feira. O campeonato era no final de semana e eu tive que avisar. Ela chorou, chorou e chorou", conta.

Laís Matias Adolfo

Mãe de Laurinha e estudante de engenharia sanitária ambiental

"É complicado de a gente aceitar hoje em dia que uma criança está sendo impedida de fazer o que gosta por ser do sexo feminino"

Apesar de não poder entrar em quadra junto do time, Laurinha viajou até Guarapari e apoiou os companheiros na disputa em novembro do ano passado. "Ela estava uniformizada, mas ficou do lado de fora e comemorou o vice-campeonato do time, que chegou à final", lembra a mãe.

PARA MUDAR O FUTURO

Para tentar impedir que a situação se repita e deixar ainda mais clara a insatisfação, Laís Matias fez um abaixo-assinado na internet, intitulado "Deixem a Laurinha jogar", que reuniu quase 7 mil assinaturas. "Queremos que Laurinha possa jogar os próximos campeonatos", diz o texto do documento.

Laura Matias, 8 anos, atleta de futebol
Laurinha se inspira na atacante Marta, a "rainha do futebol", eleita seis vezes a melhor do mundo. Crédito: Vitor Jubini

Apesar de ainda não ter surtido o efeito esperado sobre o regulamento da competição, o abaixo-assinado fez com que a história de Laurinha chegasse até a escolinha de futebol R9, no bairro Itararé, em Vitória, onde hoje ela joga na zaga — e ainda assim já balançou a rede várias vezes.

Iago Ronconi

Treinador na R9

"A Laurinha já chegou jogando campeonato. Ela está bem acima da média, tanto que na primeira competição ela fez um golaço de falta"

Atualmente, a miniatleta treina cinco vezes por semana: duas na quadra e três no campo. Mesmo vendo o futebol como mera diversão, Laurinha tem consciência que, com as chuteiras laranjas, vai ajudando o mundo do esporte a ser menos machista e a caminhar rumo a uma maior igualdade.

"Se uma menina jogasse, poderia motivar outras, mas se não tem incentivo, como é que vai ter o campeonato? Já passei por situações como essa e não imaginei que ela passaria por isso tão cedo. Muito novinha ela já teve a primeira situação de enfrentamento de injustiça", conclui a mãe dela.

O QUE DIZ A FEDERAÇÃO DO ES

Presidente da Federação Espírito Santense de Futebol de Salão (FESFS), Arnaud Agostinho Cordeiro Filho garante que a Laurinha não pôde disputar o Campeonato Estadual porque, em uma eventual classificação do time para a Taça Brasil, toda a disputa seria invalidada, prejudicando cerca de 200 meninos.

"Se eu enviar uma súmula do campeonato masculino com a participação de uma menina, a Confederação Brasileira de Futsal não reconhece o meu campeonato e o campeão perde o direito de disputar o torneio em nível nacional. Infelizmente, as instituições superiores são extremamente machistas", afirma.

Laura Matias, 8 anos, atleta de futebol
Laurinha joga de zagueira no futebol e como ala na quadra de futsal. Crédito: Vitor Jubini

Sobre ela ter podido jogar outros torneios, Arnaud alega que não foram campeonatos regularizados junto à federação. "Ela disputou campeonatos da comunidade ou com outras escolas que não são filiadas. Em torneios extraoficiais, partidas mistas podem acontecer sem problemas."

Já para realizar um campeonato feminino, o presidente da FESFS explica que são necessários quatro times, no mínimo. "Por questões culturais, os pais ainda inibem meninas mais novas a jogar bola e não consigo ter time na idade da Laura. Só consigo formar campeonato depois dos 14 anos", alega.

Segundo ele, por enquanto, a procura é baixa até para promover um torneio feminino extraoficial a fim de motivar a prática do esporte pelas garotas. "Se eu tivesse 10 ou 15 meninas, talvez me motivasse, mas ela foi a única a querer participar em dez anos. Além disso, o custo é alto", diz Arnaud.

O QUE DIZ A CONFEDERAÇÃO BRASILEIRA

Procurada pela reportagem, a Confederação Brasileira de Futsal (CBFS) afirma que segue os critérios adotados pela Federação Internacional de Futebol (Fifa), sendo os campeonatos divididos por gênero (masculino e feminino) e por idade (sub-7 ao adulto), "não sendo adotada a categoria mista".

"As federações estaduais têm autonomia na organização dos respectivos campeonatos, inclusive para definir critérios classificatórios. Porém, as entidades estaduais têm o dever de observar os regulamentos, diretrizes, estatutos e decisões da CBFS e da Fifa a todo momento", esclarece.

A confederação também garante que é "grande fomentadora do futsal feminino, contando com diversos campeonatos nas mais diversas categorias (sub-15, sub-17, sub-20, adulto etc), tendo grande orgulho de ter por oito vezes seguidas a atleta Amandinha como melhor jogadora de futsal do mundo".

O QUE DIZ A FIFA

Em nota, a Federação Internacional de Futebol (Fifa) afirma que não tem regra relacionada a jogadores de sete anos.

Procurada novamente após este posicionamento, a CBFS diz não ter afirmado que precisa seguir as diretrizes da Fifa, mas que segue a divisão de categorias. “Não é possível a participação de meninas em campeonatos masculinos, nem de meninos em campeonatos femininos, tendo em vista a inexistência de categoria mista.”

Questionada, então, se teria interesse em passar a aceitar a participação ou criar um torneio misto, a entidade ainda não respondeu. Assim que um retorno for dado à reportagem de A Gazeta, este texto será atualizado.

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