Como elas têm contribuído para a construção civil no ES?
Atentas e cautelosas, muitas engenheiras civis e arquitetas capixabas vêm conquistando e fazendo história no mercado, com competência e jogo de cintura inigualáveis. Para este 8 de março, Dia Internacional da Mulher, A Gazeta conversou com algumas dessas profissionais que fizeram e ainda fazem história no Espírito Santo.
Quando se fala em construção civil, as mulheres ainda são minoria nos canteiros de obras e nas posições de liderança das empresas. Para se ter uma ideia, atualmente no Estado, o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Espírito Santo (Crea-ES) tem registradas somente 2.770 engenheiras. Já os homens são 7.244 inscritos. Ou seja, existem 2,6 vezes mais profissionais do sexo masculino do que do feminino no ramo.
Outra informação do Ministério do Trabalho que confirma isso em nível nacional é que, em 2021, apenas 10,85% da participação dos trabalhadores formais na Construção Civil no Brasil foi de mulheres.
Mas isso não tem impedido que elas tomem a frente de iniciativas, tornando-as pioneiras e responsáveis por grandes transformações da área.
Um exemplo é a engenheira civil Delva Gomes de Oliveira, que além de ser mãe de três filhos, é uma das fundadoras de uma das maiores construtoras capixabas em atividade no mercado, a Morar.
A empresa surgiu da união entre ela e o também engenheiro Sebastião Jayme de Almeida, em 1981. De lá para cá, a construtora entregou casas, apartamentos, salas comerciais, loteamentos e empreendimentos hoteleiros a partir do histórico de empenho do casal, que se formou na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) em 1967 e aterrissou em Brasília em meio à efervescência da construção da então nova capital do país, onde ficou por 14 anos estudando e ganhando experiência sobre o mercado.
Delva Gomes de Oliveira
Engenheira civil e cofundadora da Morar
"Sebastião, meu companheiro, nunca exigiu que eu fosse dona de casa e sempre me incentivou, o que me ajudou a exercer a profissão com serenidade."
Segundo ela, durante esses mais de 40 anos de existência, a Morar sempre pautou-se na igualdade entre homens e mulheres. "Nosso processo seletivo prevê testes de conhecimento, mas o que acontece é que as mulheres costumam se sair melhor”, diz Delva, rindo.
Hoje, diferentemente do que se vê no mercado, elas são cerca de 70% do quadro de profissionais da construtora, e a empresária acredita que a distinta participação feminina se refletiu na proporção de homens e mulheres na Morar. “Engana-se quem acha que elas não são capazes, porque elas dão conta, sim!”, destaca.
Por falar em pioneirismo, a primeira mulher a se formar em Engenharia Civil no Espírito Santo foi a Emilia Frasson. Há 63 anos, ela se formava na Ufes e foi a 16ª inscrita no Crea. Também é ela quem ilustra a capa deste especial, uma fotomontagem produzida pela designer Karen Nascimento.
No final de 1960, Emilia fazia um juramento para exercer a profissão eticamente e, por mais que não tivesse percebido, estava comprometendo-se também a fazer jus a todas as mulheres que seguiram a carreira a partir de então no Estado.
E ainda tem Angela Maria Randon, a engenheira com o maior número de obras realizadas no ES. Ao todo, foram impressionantes 6.387 ARTs – sigla para Anotação de Responsabilidade Técnica. Isso significa dizer que essa foi a quantidade de contratos de obras que ela planejou e/ou executou durante os 45 anos de profissão.
Modesta, Angela afirma que só atingiu esse patamar porque teve a oportunidade de atuar por muitos anos em São Gabriel da Palha, Noroeste do ES, onde havia pouca oferta desse tipo de trabalho. Nessa região, também prestou muitos serviços para empresas e prefeituras ao longo da carreira.
“Por mais que os homens sentissem resistência com minha presença na obra, com ‘jeitinho’, fui conquistando amizades e, principalmente, a confiança dos colegas”, narra.
Angela Maria Randon
Engenheira civil com maior número de obras realizadas no ES
"Lembro que, quando eu chegava em um canteiro de obras, os homens que trabalhavam, olhavam e diziam 'nossa, o que esta mulher está fazendo aqui? Até parece que ela sabe de alguma coisa...'. Depois de anos, não havia mais nenhum construtor que aceitava fazer uma obra sem minha supervisão."
Ela ainda está na ativa, com o escritório que leva seu nome há décadas, mas pretende encerrar os trabalhos em breve para focar na capacitação de jovens na área.
Mesmo sendo responsáveis pelo crescimento das cidades capixabas ao longo dessas últimas seis décadas, essa nunca foi uma tarefa fácil.
Além de superarem as inseguranças pessoais de mergulharem em uma profissão até hoje considerada masculina, passaram por outras dificuldades, como a culpa por não estarem mais presentes na vida dos filhos e o medo de represálias de chefes e colegas homens. Para ultrapassar essas adversidades, precisam, até hoje, mostrar que são excelentes no que se propõem a fazer.
“Embora as mulheres sejam alunas mais aplicadas, os homens já são criados pela família para serem engenheiros e chegam na faculdade com mais desenvoltura”, analisa Maristela Gomes, que é professora de Engenheira Civil na Ufes, formada na mesma universidade em 1988 e a primeira e única mulher, até agora, a ocupar o cargo de diretora do Centro Tecnológico.
Os números mostram que isso não é mera impressão. No ano passado, a empregabilidade das mulheres girou em torno de 13% a 16% na Engenharia Civil, a maioria seguindo carreira em escritórios. Em obras, ainda vemos poucas mulheres nos canteiros colocando a mão na massa – com o perdão do trocadilho.
A diretora da Proeng, Cláudia Rocha, que cuida da parte administrativa há 30 anos no grupo empresarial, garante que ela, particularmente, gosta de trabalhar com mulheres. “Atualmente, em Vitória, nosso time administrativo é 100% feminino, e o quadro de engenheiras, certamente, ultrapassa 50%. No geral, percebo que elas são mais responsáveis, conseguem dar conta de diversas atividades e demandas ao mesmo tempo e parecem entender melhor o que acontece dentro da empresa. Não é à toa que elas estão cada vez mais em tudo!”, argumenta.
Cláudia analisa também que parte do crescimento de mulheres no mercado da construção civil se deve à mudança de valores sociais dentro de casa, onde a responsabilidade doméstica é mútua.
Cláudia Rocha
Diretora administrativa da Proeng
"Hoje em dia, vejo que as funcionárias contam mais com o apoio familiar. Lembro que, na minha época, era consenso que lugar de mulher é em casa."
Quando ganham confiança nos canteiros de obras, no entanto, são reconhecidas pela equipe por serem mais perfeccionistas. Elas também se destacam em soft skills, ou seja, nas habilidades comportamentais relacionadas à maneira como lidam com o outro e consigo mesmas em diferentes situações. Entre as características mais comuns vistas nelas estão a empatia, a cordialidade e a boa comunicação dentro de um grupo de trabalho.
De acordo com a diretora de Recursos Humanos do Sindicato da Indústria da Construção Civil no Estado (Sinduscon-ES), Apasra Sipolatti, as mulheres têm atuado em diversas atividades da construção civil capixaba. “São engenheiras e arquitetas, mas também pedreiras, serventes, carpinteiras, ajudantes de obras, técnicas em edificações e segurança do trabalho”, enumera.
Apasra reconhece que, embora a presença feminina seja crescente no canteiro de obra, ainda está em curso um processo de conscientização da sociedade para que se consolide a presença feminina no setor.
120% nos últimos 20 anos
Aumento no número de mulheres atuando na construção civil no Brasil, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Isso pode ser atribuído à maior receptividade das empresas contratantes, ao incentivo público e privado para capacitação e aos avanços tecnológicos que estão mudando os processos de trabalho. Isso porque a força braçal é cada vez menos determinante no mercado da construção civil. Por isso, pelas competências comportamentais, as mulheres conseguem superar as desigualdades do setor e quebrar mitos da inferioridade intelectual delas.
De estagiária a presidente
Aline Stefanon virou protagonista do mercado atual de construção civil ao assumir a posição de presidente da Morar em fevereiro deste ano.
Com uma trajetória de mais de 25 anos na empresa, ela foi contratada para um estágio na área de Segurança do Trabalho, em 1998. Após concluir o curso técnico, Aline entrou no curso de Arquitetura na Ufes e continuou estagiando em outras áreas da construtora.
Ao assumir novos desafios dentro da empresa, chegou à vice-presidência de Operações, posição que até então ocupava antes de assumir a presidência da construtora.
Mesmo nunca tendo se sentido discriminada pelo fato de ser mulher, ela se sente realizada e orgulhosa do que alcançou ao longo da vida depois de muita luta: “À medida que fui mostrando meu trabalho, fui conquistando aceitação pelos colegas, fornecedores e clientes. Além disso, sempre contei com o apoio de várias mulheres que atuam na Morar”.
A pioneira
Emilia Frasson, de 93 anos, formou-se em Engenharia na Ufes há 63 anos e conta como foi sua trajetória.
Emilia Frasson é a primeira mulher engenheira do ES
Emilia Frasson encontrou no trabalho de confecção de grandes bolos a admiração pela Engenharia. Aos 25 anos de idade, pediu permissão à avó, que a criava, para cursar Engenharia e, com somente quatro meses de curso preparatório para o vestibular, em março de 1956, começou a estudar na Ufes.
No primeiro ano, estudou em uma turma com 19 alunos: três moças e 16 rapazes. Uma delas não prosseguiu por questões pessoais, e a outra acabou perdendo as provas do segundo ano. Dois anos depois, a classe tinha 26 homens e apenas Emilia de mulher.
Emilia Frasson
Primeira engenheira mulher capixaba
"No início do curso, teve algumas molecagens dos rapazes. Quando começamos a ter aulas práticas de topografia, eles queriam que as moças ficassem na frente. Dessa forma, a gente subia primeiro na rocha para fazer medições, e eles poderiam nos olhar lá debaixo."
Formou-se em 16 de dezembro de 1960, na quinta turma da Faculdade de Engenharia do Espírito Santo, tornando-se a primeira mulher a se formar no curso de Engenharia Civil no Estado. Depois disso, trabalhou no departamento de obras do campus, no escritório particular, na Alfândega e na Justiça Federal.
Também foi responsável pela construção de vários dos primeiros prédios de Jardim da Penha e da orla da Praia da Costa. À medida que o tempo foi passando, viveu no século 20 patriarcal indo contra a corrente: foi a provedora da família com vários agregados – incluindo Giacoma Frasson, filha que deu suporte na entrevista concedida para esta reportagem.
Trabalhou como servidora pública na Ufes até 1988, quando se aposentou, mas continuou atuando no escritório particular de engenharia, em especial com cálculo estrutural. Aos 87 anos, decidiu fechar o local.
Engenharia nas veias
Filha e sobrinha de engenheiros, Rachel Menezes, que hoje é diretora da MZI Incorporadora e da Associação Empresas do Mercado Imobiliário do Espírito Santo (Ademi-ES), sempre teve como inspiração homens e mulheres na profissão.
Quando ainda não se tinha preocupações com isso, Rachel visitava canteiros de obras quando era criança junto com o pai. Encantada com o trabalho, prestou vestibular para Engenharia Civil e se formou em 2001 na Ufes.
Aos 19 anos, começou a acumular experiência em quase todos os domínios da profissão, inclusive pegando pesado na obra. “Atribuo onde estou hoje à vasta experiência que tive durante a vida. Aprendi tanto o planejamento quanto a técnica, mas também tive muita prática em toda a cadeia da construção civil. Isso, certamente, foi importante para eu conquistar o cargo de gestão que ocupo atualmente”, reflete.
Ela reconhece os privilégios que teve e tem consciência de que não faz tanto tempo que as mulheres estão entrando no mercado de trabalho. Também vê em outras mulheres trabalhadoras com quem convive traços detalhistas com a função que exercem, até as que escolhem não deixar de lado os cuidados com a família.
Empreendedora nata
Rubia Zanelato, proprietária e fundadora da Kemp e diretora do Sinduscon-ES, também tem um histórico familiar que influenciou a escolha pela área de atuação.
À exemplo do irmão, que fez escola técnica federal na área de engenharia, Rubia fez Edificações em 1989 e prestou vestibular para a Ufes, formando-se em Engenharia Civil em 1998.
Com um mindset de empreendedora desde cedo, quando faltava ainda um ano para se graduar, abriu a Kemp, que funcionava na modalidade de empreiteira, prestando serviços para construtoras. Ao longo do tempo, começou a fazer reforma de condomínios e obras corporativas e públicas.
Depois de mais de 25 anos, a empresa, hoje, é referência no mercado imobiliário, em especial na região do bairro Praia de Itaparica, em Vila Velha.
Rubia Zanelato
Proprietária e fundadora da Kemp e diretora do Sinduscon-ES
"Por muito tempo, ser mulher, em qualquer tipo de profissão, pressupunha ter que lidar com inúmeras barreiras. Acredito que seja porque as pessoas acham que nós temos menos competência. As mulheres estão se destacando cada vez mais, e as empresas estão escalando CEO mulheres. É a prova de que não podemos deixar o padrão definir a gente. Temos de buscar e conquistar nosso lugar!"
Desafios e expectativas
A professora Maristela Gomes aponta alguns desafios para que as mulheres sigam na carreira, principalmente quando têm uma família.
“Acompanhei amigas e alunas ao longo do tempo. Sempre vi em seus olhos a culpa por não estarem presentes na família. A Engenharia Civil consome os profissionais física e intelectualmente e envolvem atividades que exigem constante concentração, formação e atualização de conhecimentos. Por outro lado, a atividade familiar também é demandante. Com frequência, as mulheres não conseguem equilibrar os pilares da vida”, destaca Maristela.
Rubia concorda. Assim como ela, muitas profissionais da área têm jornada tripla. “Sou esposa, mãe de uma criança de 10 anos e empresária. Procuro buscar equilíbrio espiritual, profissional e pessoal para ter sucesso nessas arestas que sustentam os pilares da minha vida. Acredito que podemos ter filhos e trabalhar na área. Basta sonhar, organizar-se e buscar o apoio da família e dos nossos companheiros”, reflete.
A engenheira e integrante do Crea-ES Ana Cristina de Estrada viveu inúmeros percalços durante a carreira, cercada, ainda, por crises econômicas e políticas, não apenas no Brasil, como também em Honduras, onde trabalhou por alguns anos.
Ana Cristina de Estrada
Engenheira civil
"As engenheiras vão enfrentar muitas mudanças e paradigmas da própria empregabilidade e economia, além de novos sistemas de computadores, projetos e novas formas. Por isso, eu digo: se você fez o curso porque realmente gosta disso, você vai passar por anos turbulentos, mas vai chegar um dia em que vai conseguir o seu reconhecimento."
Contribuinte do Crea desde 2000, na atual gestão de conselheira, foi convidada para um programa da mulher para iniciar o processo de consolidação da política de equidade de gênero do Crea. “É um importante trabalho que chama as mulheres para se envolverem nos desafios de ser mulher”, explica.
Formada há 40 anos em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), após atuar em diversos escritórios capixabas e acompanhando obras no campo e construção de pontes, já foi servidora pública municipal na área de transporte e questões de trânsito urbano e é referência em engenharia social com foco na educação para trânsito.
Mesmo afastada das obras civis, lembra dos desafios que enfrentou na vida: “Em Honduras, sentia que alguns colegas tinham um certo ressentimento por eu ganhar quase o mesmo que eles. Como se os homens se sentissem inferiorizados por trabalharem com uma mulher ganhando o mesmo salário que eles”.
Machismo também na Arquitetura
A Arquitetura carrega um peso menor de ser uma profissional masculina do que a Engenharia, mas o ramo está longe de oferecer um ambiente propício para o desenvolvimento de carreiras femininas.
Em 2020, foi divulgado o primeiro diagnóstico de Gênero na Arquitetura e Urbanismo, promovido pela Comissão Temporária para a Equidade de Gênero do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU) brasileiro (CTEG). O estudo apontou uma lacuna entre as condições das mulheres e dos homens na profissão, tanto no âmbito profissional como no privado.
A pesquisa mostrou que as arquitetas e urbanistas são, em média, tão qualificadas quanto os homens, mas têm salários ou rendimentos inferiores. Os números não apresentaram nenhuma diferença substancial na qualificação dos homens e das mulheres, a não ser nos percentuais de profissionais com mestrado profissionalizante, em que o feminino supera o masculino em 85%, e com doutorado, no qual o masculino é 56% maior que o feminino.
Os homens com mestrado profissionalizante ganham duas vezes mais do que as mulheres. Já as mulheres com doutorado, curiosamente, ganham mais do que os homens.
Em todos os outros níveis, o rendimento médio feminino é inferior ao masculino, e somente as mulheres com doutorado e pós-doutorado apresentaram um rendimento médio acima do piso.
O levantamento apontou também uma diferença de rendimento médio entre homens e mulheres de quase R$ 1.700. Quanto maior a faixa salarial, maior a superioridade dos percentuais masculinos em relação aos femininos.
Formada há mais de 32 anos em Arquitetura na Ufes, Regina Morandi praticamente fez toda a carreira em canteiros de obra. Conta que decoração e design de interiores nunca foram sua praia. Sempre deu preferência para desenvolver projetos verticais e se tornou conhecida no mercado quando passou a apostar na construção de edifícios, lojas, casas e hotéis.
Com toda essa expertise, uniu-se há cerca de um década com um sócio, com quem prestou serviços às maiores construtoras e incorporadoras capixabas por anos.
Hoje, não atua diretamente com elas, mas acompanha construções e se dedica à vida pessoal e ao esporte, após perceber que o estresse estava afetando a sua saúde.
Regina Morandi
Arquiteta
"No nosso campo de prestação de serviço de projeto, é comum vermos uma procura maior por homens em edifícios, mas as mulheres sempre são demandadas para decoração. Acredito que seja porque alguns contratantes ficam preocupados com o tempo que a maternidade pode ocupar. No entanto, garanto que muitos clientes nossos preferem profissionais femininas aos masculinos, porque somos mais maleáveis e mais empáticas, além de exercermos as atividades de forma mais criteriosa e mais atentas aos detalhes."
Parceria de sucesso
Jaqueline Lopes, de 52 anos, é uma mulher que vive desafios na profissão de arquiteta. Junto com a engenheira civil Amanda Barbosa, de 30 anos, é proprietária da construtora Donna Obra. O nome vem de “mulher” em italiano, e com esse conceito e muita sintonia no trabalho, fundaram, em agosto do último ano, uma empresa que oferece planejamento e execução de obras no ES.
Comandando em média 20 funcionários, entre eles muitos homens, Jaqueline afirma que, se por um lado, não se sente constrangida por isso, pois sente total confiança da equipe e dos clientes; por outro, prefere trabalhar com outras companheiras. Ela afirma acreditar de olhos fechados na competência das profissionais mulheres.
Jaqueline Lopes
Arquiteta e sócia da Donna Obra
"Sempre buscamos recrutar mulheres para nosso time. Apesar de termos muitas arquitetas parceiras, não conseguimos contratar tantas como gostaríamos. Elas são mais cuidadosas e detalhistas, ótimas para trabalhos que exigem um olhar atento e caprichoso no planejamento. Mas a verdade é que, por termos prazos apertados, não conseguimos muitas candidatas."
No campo mais íntimo de sua vida, ela lamenta também a culpa inconsciente que sente por trabalhar fora de casa. “Às vezes, eu penso que poderia estar mais presente na vida da minha filha, do meu marido e da minha mãe. Sei que não preciso me sentir assim, mas não consigo deixar esses pensamentos me afetarem de vez em quando”, desabafa.
Além disso, a arquiteta confessa uma sobrecarga que vive. “Como proprietárias, temos de gerenciar a obra e a equipe, garantir que o serviço está sendo cumprido com excelência, vigiar a formalidade dos processos da construção, monitorar os custos… É um trabalho físico, mas também mental, somado, ainda, ao fato de que nosso expediente não tem hora para acabar, o que afeta nossa vida pessoal. Mas eu e Amanda não poderíamos estar mais felizes com nosso trabalho”, conta.
Ela acredita que a mulher pode estar onde quiser, inclusive no meio da obra, ao lado de outros homens, e gostaria que todas acreditassem no potencial delas: “Vejo ainda muita resistência delas de assumirem trabalhos na construção civil, quase como um freio invisível que as impede de seguir o caminho na profissão. Nós precisamos nos educar para valorizarmos nosso próprio trabalho sem culpa”, frisa.
As que estão chegando agora
Alunas e recém-formadas dos cursos de Engenharia Civil e Arquitetura precisam lidar com as inseguranças na graduação, nos projetos de extensão, nos estágios e, mais ainda, na busca pelo primeiro emprego.
“Mesmo que a Engenharia Civil tenha muitas mulheres – principalmente em comparação a outras engenharias, como a elétrica e a mecânica –, nas oportunidades de estágio, a gente ainda vê vagas que recrutam preferencialmente pessoas do sexo masculino ainda hoje, o que é bem frustrante”, lamenta a engenheira recém-formada pela Ufes Júlia Zanotelli.
Ela descreve, ainda, outros momentos incômodos: “Eu nunca trabalhei de fato em obra, apenas em escritório, onde nunca senti nenhuma diferenciação entre estagiários do sexo masculino e do sexo feminino. Entretanto, quando eu ia em obras visitar, muitas vezes, o pessoal responsável só cumprimentava o estagiário do sexo masculino e o engenheiro”.
Para driblar situações como essa, uma outra recém-formada, Fernanda Lahass, está unindo um grupo de mulheres capixabas da construção civil. “A ideia surgiu conversando com várias colegas. Todas elas reclamaram das mesmas questões em relação à mulher no mercado de trabalho. Decidimos, então, criar um grupo no WhatsApp para compartilhar relatos, vagas para fortalecer as mulheres, criar networking e até ideias de projetos futuros”, conta.
“Dentro dos projetos de extensão da faculdade, temos uma visão do mercado. Mas a gente ainda se surpreende quando vemos preconceito contra mulheres ainda hoje, como homens fazendo piadinhas e o difícil ingresso no mercado, o que desmotiva várias profissionais”, revela.
Júlia também vive essa desilusão, mas enxerga oportunidades: “Minhas expectativas são de conseguir seguir o caminho da parte acadêmica, fazer mestrado, doutorado e conseguir ser referência naquilo que eu estudo. Antigamente, os autores de livros da Engenharia eram majoritariamente homens, mas hoje a gente consegue ver muitas pesquisadoras geniais atuando na pesquisa, sendo destaque e tomando espaço, o que acaba animando pessoas que ainda estão na graduação para seguir também nesse caminho”, conta.
Já Gilliane Bravim, arquiteta também formada pela Ufes em 2021, sente que, por mais que as mulheres tenham conquistado muito nos últimos anos, a nossa cultura subestima o conhecimento da arquiteta, mesmo ela sendo autoridade no assunto.
“Quando conversamos com um cliente sobre algum ponto relevante, eles começam a duvidar e não acreditam nas soluções que recomendamos para o projeto ou acham que só estamos preocupadas com a questão estética, mas, muitas vezes, é uma medida necessária. É frustrante, porque é como se os homens não dessem valor para o fato de termos estudado anos para exercer a profissão”, confidencia.
“Não conheço nenhum homem que tenha desistido da profissão por frustrações com o mercado, porém conheço várias mulheres que tiveram de se afastar da Arquitetura, porque é muito desafiador continuar em frente. Algumas vezes, a paixão pela profissão não é suficiente”, exprime ainda.
O que esperar para o futuro?
Para além do grupo criado pelas engenheiras recém-formadas, empresas e órgãos públicos têm se movimentado para promover igualdade no tratamento dentro dos canteiros de obra e possibilitar que mais mulheres alcancem posições de liderança na construção civil.
Um exemplo disso é a Grand Construtora. A diretora de Relacionamento & Consumer Experience da construtora, Joana Barbosa, explica que, em fases de acabamento e rejunte em obras, a empresa prioriza as trabalhadoras mulheres: “Nosso time, há alguns anos, era composto somente por homens. Em especial para entregas de apartamentos de luxos, como o Taj, recrutamos uma equipe totalmente feminina por elas terem como característica serem mais detalhistas e terem um capricho maior no processo final. A diferença no resultado é perceptível. Talvez por isso, muitas empresas estão se inspirando nesse modelo de time”.
Joana reforça, no entanto, que foi um processo natural. “Não temos processos seletivos exclusivos para mulheres, e sim foram escolhas que tomamos sem perceber. Os resultados positivos foram uma consequência disso e, hoje, os Recursos Humanos também incentivam momentos familiares e permitem expediente flexível para que elas consigam trabalhar com mais tranquilidade”, aponta.
No âmbito do poder público, o Crea capixaba também institucionalizou a luta feminina no mercado por meio do ingresso ao Programa Mulher e Mútua do Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (Confea) em 2021.
Criado em 2019, o programa visa promover uma série de ações, como capacitações e orientações para mulheres engenheiras, tomando como base as diretrizes internacionais de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), mais especificamente o ODS nº 5, que visa à igualdade de gênero.
De acordo com o Confea, as mulheres registradas no conselho nacional correspondem a apenas 19,6% do total de profissionais. Já no Crea-ES, representam 22%.
“O Programa Mulher trabalha para incentivar as mulheres a entrarem nas áreas de engenharia, agronomia e geociências por meio da capacitação de profissionais já formadas para que, assim, possamos proporcionar uma maior participação das mulheres no mercado de trabalho e o igual reconhecimento de suas competências e contribuições”, explica a coordenadora do projeto, Mariana Mansk.
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