Até onde o olhar alcança, tudo o que se vê é lixo. São garrafas pets, brinquedos, sacolas plásticas, restos de equipamentos eletrônicos, entre outros objetos que estão espalhados pelo manguezal do Parque Municipal da Manteigueira, em Vila Velha. São restos do consumo humano que viajam pelos canais e rio, sendo arrastados pela força das marés e que vêm se acumulando nas raízes da vegetação.
“Eu fiquei abismado com a quantidade de lixo que vi ali”, relata o biólogo Marco Bravo. Ele avalia que a camada de lixo enterrada no local, sob a lama do manguezal, é expressiva. “Provavelmente, há uma grande camada ali de mais de metro de lixo enterrado.”
Morador da região, o guia ambiental Jorge Calazans foi quem levou a reportagem de A Gazeta ao local. Há pelo menos um ano ele tenta, por iniciativa pessoal, tirar o lixo da região, sem muito êxito. “Durante umas 3 horas por dia, de manhã, ficava recolhendo o lixo. Tirei 98 sacos, fora o que derramei lá, em volta do círculo dos sacos que eu coloquei”, relata, ao se referir ao trabalho que realizou em julho de 2022, quando o mangue se encontrava em situação muito semelhante à deste ano.
Enquanto caminha pelo manguezal, vai mostrando o que encontra: tampa de vaso, liquidificador, restos de televisão, geladeira, pneu e tanque de roupa em meio a centenas de garrafas pets, brinquedos e sacolas plásticas.
Jorge Calazans
Guia ambiental e morador da região
"Tudo o que flutua vem parar aqui e não sai. Se não tiver uma ação para recolher, fica aqui o resto da vida"
Uma realidade bem diferente de quando se avista a região do alto. “Com a vista aérea, você só vê a vegetação, mas quando você entra na parte mais baixa, se surpreende com a quantidade de lixo”, observa o biólogo Marco Bravo.
O parque foi criado em 1993, com 168,30 hectares de área, segundo a prefeitura local. É uma unidade de conservação que abriga fragmentos da Mata Atlântica e área de manguezal na foz do Rio Aribiri.
O caminho do lixo
Lançado às margens dos canais em Vila Velha, como é o caso do Canal de Aribiri — como é conhecido o Rio Aribiri —, o lixo é levado para o mar nos momentos de elevação da maré ou de chuvas fortes. No caminho, ele encontra o manguezal do Parque Municipal da Manteigueira. E quando as águas baixam, com a redução da maré, o lixo fica por lá. Ao longo do tempo vão sendo formadas camadas sucessivas de resíduos.
Marco Bravo
Biólogo
"Naquela região, forma-se uma barreira através dos caules e das raízes do manguezal, que acabam sustentando aquele resíduo, e na maré baixa ele acomoda no solo, formando camadas cobertas pela lama"
Percorrendo o Canal de Aribiri foi possível verificar muito lixo descartado de forma irregular, a maioria amarrado em sacolas plásticas. Encontramos ainda móveis, além de pneus e material de construção. Um tanque, assim como o que um dia foi um sofá, se sobressaíam em meio à lama.
O mesmo acontece com o lixo que é jogado na Baía de Vitória e que contamina outros manguezais da Grande Vitória.
Morte da vegetação
O lixo acumulado na área vai se decompondo e contaminando, com metais pesados e corantes, o solo e a água, matando as árvores e a fauna, pondera o biólogo. Ao ver as imagens, ele observa que uma das características do manguezal é ter uma vegetação densa, fechada e entrelaçada.
Marco Bravo
Biólogo
"O solo é lodoso, e uma árvore ajuda a proteger a outra contra o vento e, de certa forma, contra o solo, que é instável. Mas o que se vê ali são clareiras abertas, grande espaçamento entre a vegetação, o que indica que morreram muitas árvores do manguezal"
O diretor-presidente do Instituto Goiamum, Iberê Sassi, observa que os propágulos, que são as sementes do mangue, não conseguem se enraizar no local ou porque a lama é muito pegajosa ou muito poluída. “E mesmo que ela consiga se fixar, não vai crescer, porque não tem um ambiente saudável.”
Ele observa ainda que a deposição de lixo no local vai criando camadas, impedindo não só o enraizamento das sementes, mas a aeração do local. “O solo acaba ficando impermeável. E tem ainda a degradação, a mistura do plástico se deteriorando com os produtos químicos que vieram e se depositaram ali, o que cria um efeito tóxico para o solo do mangue, que é terrível.”
Fauna comprometida
Outra afetada pela poluição é a fauna, com os animais morrendo, não só pela contaminação, mas pela falta de oxigenação e de alimentos.
Marco Bravo
Biólogo
"Praticamente não tem mais fauna ali. Os caranguejos acabam morrendo contaminados pelo lixo, os peixes acabam consumindo os fragmentos de plástico"
E acrescenta: "Se a gente fizer uma análise dos peixes daquela região, os poucos que ainda existem, pode ter certeza que o aparelho digestório está cheio de plástico".
Ao caminhar pelo local, não foi possível avistar nenhuma espécie típica do mangue, como caranguejos, aratu, peixes e pequenos répteis, entre outros. “Muito raramente a gente vê um aratu, que fica nas árvores. Mas o principal, que é o caranguejo, a gente vê muito pouco. O lixo cobre a área onde ele escava e não tem local para reproduzir. Nesta área, ele não consegue se reproduzir”, relata Calazans.
Mas, além do lixo, há um outro problema, aponta Iberê: o esgoto. “Mesmo se não tivesse o lixo, ainda assim o esgoto seria um impedimento para a regeneração do mangue”, pondera.
Lixo no manguezal do Parque da Manteigueira
Riqueza perdida
A destruição de mangues, como o do Parque Municipal da Manteigueira, em Vila Velha, entre outros, causará impacto direto na economia capixaba, como avaliam os ambientalistas. “O manguezal e a restinga são muito importantes para a conservação das espécies, fundamentais para a vida aqui na Grande Vitória”, assinala Bravo.
No caso do mangue de Aribiri, pode afetar, inclusive, o canal de Vitória, por assoreamento. “Pode afetar o canal de Vitória, por onde passam navios, e é onde passa boa parte da economia do Espírito Santo. Sem ele, o solo não é retido, e acaba indo para o canal, promovendo assoreamento”, destaca Bravo.
Iberê Sassi destaca ainda que toda produção pesqueira da costa do Espírito Santo depende dos manguezais. “Depende da boa preservação dos manguezais, porque todo pescado, incluindo camarão, peixes nobres, mero, badejo, quando adultos, entram no manguezal, se reproduzem e vão embora. Os filhotinhos crescem por causa da enorme riqueza de nutrientes, e deles vem a produção.”
Lembra que é do mangue que vem toda a produção das tradicionais panelas de barro, patrimônio capixaba. “Todo pescado da linha costeira, que aliás é 90% do pescado capixaba, é capturado na costa até, no máximo, duas ou três milhas da praia.”
E tudo o que o manguezal produz por ano é mensurável e pode indicar o quanto é importante para a economia capixaba. “Do caranguejo que vai para a mesa, a panela de barro, além das tradições alimentares como sururu, peixes e crustáceos que fazem parte da culinária, tudo mensurável economicamente.”
Ouro ponto importante, segundo Sassi, é que o manguezal capixaba é um dos mais ricos, do ponto de vista biológico. “Produz o dobro de outros manguezais. E sem contar a produção turística e o famoso crédito de carbono”, destaca.
O alerta
Calazans alerta para a morte do manguezal e destaca que ela vem ocorrendo gradativamente. “Se nada for feito, se não tivermos cuidado, essa parte do mangue vai acabar, e parece que já está acontecendo”, diz
Ele recorda que, no passado, era possível aproveitar a prainha da região. “Anos atrás, tinha uma prainha limpa, com areia, nesta margem. A gente brincava, tomava banho.”
Conta ainda que a pesca era farta e muito utilizada pelos moradores. “Muito peixe, siri, mariscos variados, como sururu, budigão… Fazia fila de barco nessa curva pegando sururu. Era um tapete de sururu. Enchiam o barco. Eu mesmo já vim aqui várias vezes. Hoje a gente não consegue mais em decorrência de tanta poluição”, desabafa.
Canal de Aribiri
Prefeitura: "Há limpeza constantes dos canais"
A Prefeitura de Vila Velha, por intermédio de Maurício Milanezi, coordenador de unidades de conservação, explica que diversas ações de limpeza vêm sendo realizadas, não só nos canais e rios, mas também em áreas de preservação, como os manguezais. Porém ele explica que a cidade ainda enfrenta dificuldades com o descarte irregular de lixo.
“A população tem que estar ciente que esses descartes irregulares em área de preservação são totalmente ilegais. A prefeitura tenta remover, faz uma constante limpeza dos canais, mas precisamos do apoio da população para manter o equilíbrio ambiental”, assinala.
Maurício relata que, no Parque da Manteigueira, onde fica o manguezal afetado pelo lixo, a prefeitura conseguiu eliminar três pontos viciados de lixo. “Havia até invasão, que conseguimos reverter”, conta. O município também fez o fechamento da área do parque na região da Estrada de Capuaba, que era aberta.
A maior parte do lixo depositado de forma irregular nas ruas, margens de rios e canais da cidade, explica Maurício, é levada pelas chuvas ou pela maré. “Como a maré é constante, o leva e traz de resíduo é diário. Pode fazer a limpeza hoje que amanhã tem lixo de novo, porque a população ainda tem o costume de não fazer o descarte regular dos resíduos.”
O município se prepara, segundo o coordenador, para obter uma embarcação que será utilizada no monitoramento ambiental. “Não só do Rio Aribiri, mas de outros corpos de água, o que nos ajudará a visualizar melhor as situações e nos ajudar a fazer planejamento de como atuar”, explica.
O Parque da Manteigueira, explica Maurício, é utilizado como polo de educação ambiental para comunidades e escolas. “No dia que o guia ambiental foi ao local, em 2022, fazer a coleta do lixo, estávamos lá atuando também”, acrescenta, ao se referir à atuação de Calazans no mangue.
No momento, a unidade de conservação está fechada para reformas. Mas, em data ainda não agendada, a prefeitura se prepara para realizar uma nova limpeza no mangue do parque. E acrescenta que, se a população encontrar descarte irregular de lixo, informe à Ouvidoria, pelo telefone 162, ou ainda no site da prefeitura.
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