Publicado em 6 de janeiro de 2021 às 22:53
- Atualizado há 5 anos
As instituições não estão funcionando. Ao menos não como deveriam na sede do Legislativo dos EUA, onde nesta quarta (6) um invasor sem camisa, carregando a bandeira nacional e usando um chapéu peludo com chifres no estilo viking, virou símbolo de uma fissura inédita na maior potência mundial. >
O homem era um dos apoiadores insuflados pelo republicano Donald Trump, 45º presidente americano, a pressionar congressistas a não reconhecer a vitória do 46º eleito pelo povo americano, o democrata Joe Biden. Seu desejo foi uma ordem, e parte da trupe marchou até o Capitólio.>
Ativistas que alternavam dois tipos de cobertura facial, máscaras contra a Covid-19 e bonés "Make America Great Again", impulsionam a imagem de uma nação fragilizada no que sempre reivindicou como seu grande ativo: o posto de guardião da democracia mundial.>
As cenas de caos em Washington nada deixam a dever a tantas outras que se impregnaram na história de países associados a governos autoritários.>
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"Se aqui no Brasil as instituições não funcionam direito, lá imaginávamos que funcionassem", diz o cientista político Guilherme Casarões, professor da FGV (Fundação Getúlio Vargas). A posse de Biden, marcada para o próximo dia 20, será um novo teste para a resiliência do regime democrático.>
"Mas a princípio fica o gosto amargo de perceber que a transição pacífica de poder, uma das marcas mais longevas da democracia americana, está sendo posta a prova", afirma. "Os sinais são péssimos.">
Os EUA nunca foram uma terra cândida para políticos. Quatro presidentes foram mortos ainda no exercício do cargo: Abraham Lincoln (1865), James Garfield (1881), William McKinley (1901) e John Kennedy (1963). Outros dois acabaram feridos em tentativas de assassinato: Theodore Roosevelt (1912, já ex-mandatário) e Ronald Reagan (1981).>
Contestação sempre houve --vide a recontagem de votos que atravancou a eleição de 2000, quando o democrata Al Gore questionou a liderança do republicano George Bush filho e, por fim, admitiu a derrota.>
O pioneirismo, segundo Casarões, é acompanharmos "um candidato derrotado incitar seus apoiadores a impedir a consagração do vitorioso, o que é absolutamente sem precedentes na história americana".>
Trump não é o primeiro a passar uma única temporada na Casa Branca. Outros que já foram rejeitados após um mandato solo: George Bush pai, Jimmy Carter, Herbert Hoover. Todos saíram sem chiar.>
Quando o ex-apresentador do reality "O Aprendiz" não aceita ser demitido por seu povo, e com endosso de correligionários que por quatro anos normalizaram seu abuso de poder, passa ao mundo o recado de que "os EUA viraram a Venezuela", afirma a estrategista política Ana Navarro-Cárdenas, que tem no currículo passagem por administrações republicanas.>
É também uma mensagem racial, diz. "Imagine um monte de pretos e pardos irrompendo no Congresso, sentando na cadeira do Senado, invadindo a sala do presidente da Câmara. Como Trump teria reagido?">
"Hoje vimos o clímax da retórica antidemocrática de Trump, condizente com o que ele disse durante todo processo eleitoral", diz Thiago Amparo, professor de direito internacional e direitos humanos na FGV e colunista da Folha. "Ao não repelir os invasores, Trump se mostrou ao lado de um golpe sem precedentes à democracia nos EUA. E reforça que invadir o Congresso é um privilégio de apoiadores brancos, já que protestos antirracistas não recebem o mesmo tratamento leve.">
Para Casarões, a essa altura já podemos chamar o que aconteceu na capital americana de golpe, ou tentativa de um. "Engraçado é que alguns analistas americanos disseram que a chegada de Trump ao poder representava uma espécie de latinoamericanização dos EUA. Chamando até de 'um novo Brasil'.">
Já em 2016, o empresário e então neófito eleitoral sustentava que, se fosse vencido pela democrata Hillary Clinton, era falcatrua na certa. No último quadriênio, Trump "veio nutrindo a narrativa de fraude eleitoral, e o contexto todo da pandemia permitiu que ele concretizasse essa versão, com a adesão aos votos pelo correio", diz o cientista político. "Tudo baseado em conspiração, em fofoca.">
Para o professor de relações internacionais Oliver Stuenkel, autor de "O Mundo Pós-Ocidental", a influência de Biden no mundo será menor do que a de antecessores. "A energia deles ia para assuntos externos, pois tinham privilégio de contar com a estabilidade doméstica." Os EUA, diz Stuenkel, "podem agora ter os tipos de mazela que democracias mais frágeis enfrentam, como ameaças de morte contra políticos".>
Jair Bolsonaro, adepto de uma "estratégia dolorosamente similar à de Trump", também se farta do cardápio conspiratório, segundo o professor. Difícil não pensar numa reprise para a eleição de 2022 caso Bolsonaro perca no Brasil. "O presidente brasileiro, que gosta de pensar em si como o 'Trump dos trópicos', provavelmente não reconheceria o resultado.">
Verdade, embora seja preciso apontar "uma diferença crucial" entre o Trump original e o dos trópicos, diz Casarões. As Forças Armadas e a Polícia Militar estão muito próximas de Bolsonaro, enquanto uma carta de dez ex-secretários de Defesa rechaçando parceria militar "mostra que o presidente com desejos golpistas não vai contar com apoio das Forças Armadas nos EUA".>
Em artigo para a conservadora Fox News, Karl Rove, republicano que assessorou George Bush, diz: "O que aconteceu no Capitólio deveria embrulhar o estômago de qualquer pessoa que ame a América. Sim, a Primeira Emenda da Constituição concede o direito a protestar pacificamente. Mas ninguém tem o direito de forçar portas e quebrar janelas para encerrar uma reunião constitucionalmente prevista do Congresso.">
"Nunca desistiremos", bradou Trump num ato vizinho à Casa Branca, a Marcha Salve a América, pouco antes da insurreição contra o Capitólio. Nas cortes, o presidente em fim de carreira acumula mais de 60 derrotas em ações que questionaram a lisura eleitoral. As instituições, por ora, continuam funcionando.>
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